31 de março de 2020



A vida Invisível de Eurídice Gusmão - Martha Batalha




"Se Eurídice queria casar? Talvez. Para ela o casamento era algo endémico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. Tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor. O que Eurídice realmente queria era viajar o mundo tocando sua flauta. Queria fazer faculdade de Engenharia e manter-se fiel aos números. Queria transformar a quitanda dos pais num armazém de secos e molhados, o armazém de secos e molhados numa empresa distribuidora de grãos, e a empresa num conglomerado. Mas ela não sabia que queria tanto...
Eurídice tinha abafado os desejos, deixando na superfície apenas a menina exemplar. Aquela que não levantava a voz ou o comprimento da saia. Aquela que não tinha sonhos que não fossem os sonhos dos pais. Aquela que só dizia sim senhora ou não senhor, sem nem mesmo se perguntar para o que é o sim, ou por que disse não."

Usar só metade da atenção para encarar a vida.
A frase vem algures a meio do livro, e serve para revelar a seco como Eurídice atravessa toda a sua vida.

Uma família de origem Portuguesa no Brasil, duas filhas, anos 40 até anos 60.
A história passa-se no Brasil mas podia passar-se em Portugal, ou em qualquer outro país do mundo.
Mulheres não tem sonhos, tem obrigações...obrigações simples... cuidar da casa, do marido e dos filhos... cuidar da casa, do marido e dos filhos.

Nos dias de hoje, Eurídice ao primeiro olhar é um lamento. 
Uma menina que cresce a agradar os que a rodeiam, mas cheia de sonhos, de iniciativa empresarial que é continuamente recalcada ao longos dos anos pela simplicidade dos pais, pela insegurança do marido e pela indiferença dos filhos.
Mesmo assim, Eurídice vai arranjando sempre formas de se reinventar, de sonhar, de ganhar por si própria a autoconfiança que ninguém lha dá.

Nos dias de hoje, esta forma de viver é no mínimo um pouco estranha, mulheres que não cumprem os seus sonhos por imposição de terceiros (pais, maridos, filhos). Mulheres submissas a um trabalho e  a uma vida de vazio.
Será que é estranha? Será que nos dias de hoje a vida da maioria das mulheres é tão diferente assim?
Provavelmente a resposta será;
Os tempos serão outros, os caminhos são mais amplos, as oportunidades mais vastas. O sucesso empresarial de uma mulher já não é visto com desconfiança nem desprezo. Os seus caminhos não são descaradamente bloqueados por outros...
Esta parte já me ultrapassa e deixo á consideração de cada um de nós tentar perceber a realidade ou as realidades atrás de cada porta.

Eurídice é uma personagem cheia de inocência, a quem a vida esvaziou de ternura e tempero. Eurídice usa só metade da atenção para encarar a vida.

Será só Eurídice?





30 de março de 2020


"... fazer de um bloco de apontamentos a minha atenção.!"


Não sei falar. Nunca soube. O que fica é um vermelho-vivo intenso, um desconforto, uma sensação de inquérito. Perco-me nas palavras, na tentativa de não magoar ou ofender o outro, de não saber defender o que penso. É uma cobardia exposta e latente, que me torna aos olhos dos outros fútil e vazia.
Fico exausta quando falo. É uma exaustão até á intimidade, e sinto que a mais das vezes não disse nada do que queria, nada do que devia.
A minha mãe têm uma ciência que admiro... toda a minha infância admirei-a por essa ciência. Minha mãe pouco fala em público, também se esconde nos subterfúgios da multidão, mas é capaz de atirar a frase certa na hora certa, e deixar a todos profundamente admirados. 
Não tenho a sua capacidade. Comigo fica tudo por dizer, e cria-se um labirinto daquilo que sou e daquilo que mostro, que mais pareço um bicho fechado numa jaula chamada humanidade.
O meu melhor amigo, sou eu própria, as melhores conversas são comigo própria. As opiniões, os registos, as revoltas, as tristezas... tudo é discutido, analisado, conversado intimamente.
É tão fácil ser ridicularizado neste mundo, assim como é tão fácil ter várias ideias contraditórias neste mundo. Nunca saberemos o que é certo e o que é errado.
Não sei falar, nunca soube, assim oiço, vejo, abarco e derivo.
Apanho tudo os que os olhos e os sentidos podem alcançar. Acumulo em mim, todos os poros de todos os géneros. Todos os restos de coragem e mariquice alheia, toda a humildade e arrogância. Todas as páginas de livros, todas as personagens irreais.
Quero ser todos e não ser nenhum.  

25 de março de 2020


O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa



Tenho 43 anos, e a minha paixão pela leitura começou desde cedo. Lembro-me que nas minhas férias de Verão, fazia com frequência o caminho para a Biblioteca Municipal, há "cata" de livros para ler.
Foram anos em que lia de quase tudo, e porque eram livros da Biblioteca e não pagava por eles, comecei muitos sem os acabar.
Mas sempre houve títulos que nunca consegui ler, e apesar de agarrar, escolher, folhear, das edições mudarem e a capa parecer mais atractiva, Fernando Pessoa, foi sempre um autor distante, inacessível, "demais", para mim.
Com o tempo, dos livros da Biblioteca passei para os livros das livrarias. Aí a escolha passou a ser mais selectiva, folheava mais, escolhia  mais,  mas o Fernando Pessoa, continuava "demais", para mim.
Perto dos 30 anos, comprei um CD de Maria Betânia, "Imitação da Vida". Quem quiser procurar e conseguir encontrar recomendo... todo o CD basea-se em textos e poemas de Fernando Pessoa... Top!... Maria Betânia a declamar o poema "Num meio-dia de fim de primavera", do livro O Guardador de Rebanhos" de Alberto Caeiro... Top!..
Mas Fernando Pessoa, continuava a ser "demais", para mim... pegava, largava...
"Demais", era o medo.
"Demais" era a certeza que uma vez agarrado com as duas mãos, folheado com a alma e lido com total entrega nada seria igual.
Em Dezembro passado dediquei-me a perder o medo do "demais", e comprei pelo Natal esta edição do Livro do Desassossego.
Em Janeiro, coloquei-o na lista da frente, e de espírito aberto, lápis afiado na mão, descobri que Fernando Pessoa e o Livro do Desassossego faz-nos rir com os [Conselhos às mal-casadas?],
"(As mal-casadas são todas as mulheres casadas, e algumas solteiras.)"

 faz-nos sonhar com a [Maneira de bem sonhar],
“Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar para amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.
-Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.

-Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, na dor e no bem-estar, sê o teu próprio ser."

faz-nos olhar para dentro de nós, e como vemos os outros com a [Litania da Desesperança?],
“ Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros?”

faz-nos pensar com a [Lagoa da Posse],
“O que é possuir? Nós não o sabemos. Como querer então poder possuir qualquer coisa? Direis que não sabemos o que é a vida, e vivemos… Mas nós vivemos realmente? Viver sem saber o que é a vida será viver?”

faz-nos voltar a tentar sonhar[Maneira de bem sonhar]
" Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio."

"Eu nunca fiz senão sonhar... Nunca pretendi ser senão um sonhador."

Mexe principalmente com todas as convicções, certezas e pensamentos que temos de nós próprios e dos outros. 
E ao mexer com esses pensamentos, ao mostrar-se despido de qualquer ligeireza, expõem-se puro na sua essência, e evidência que cada um de nós também é composto por imperfeições.
"Nunca sabemos quando somos sinceros. talvez nunca o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.
Por mim não tive convicções. Tive sempre impressões."

"Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Com isto ou sem isto a vida dói-me."

O que se torna mais invulgar nesta obra, é a actualidade dos pensamentos, tendo em conta a data dos mesmos. 
Os primeiros tiveram inicio em 1913, e os últimos em 1934. Não nos podemos esquecer que o Livro do Desassossego é apresentado como um diário de pensamentos soltos, mas a actualidade está lá, o que pode significar que ou Fernando Pessoa estava muito á frente do seu tempo, ou a roda da nossa sociedade não se modificou tanto assim.

"Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos."

Nestes tempos de incerteza que hoje vivemos a verdade crua de Fernando Pessoa em 1917, chega a doer.
"Cada um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa cair. Temos que arrimar-nos a um esteio, que pôr a mão pequena numa outra mão; porque a hora é sempre incerta, o céu sempre longe, e a vida sempre alheia."