A vida Invisível de Eurídice Gusmão - Martha Batalha
"Se Eurídice queria casar? Talvez. Para ela o casamento era algo endémico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. Tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor. O que Eurídice realmente queria era viajar o mundo tocando sua flauta. Queria fazer faculdade de Engenharia e manter-se fiel aos números. Queria transformar a quitanda dos pais num armazém de secos e molhados, o armazém de secos e molhados numa empresa distribuidora de grãos, e a empresa num conglomerado. Mas ela não sabia que queria tanto...
Eurídice tinha abafado os desejos, deixando na superfície apenas a menina exemplar. Aquela que não levantava a voz ou o comprimento da saia. Aquela que não tinha sonhos que não fossem os sonhos dos pais. Aquela que só dizia sim senhora ou não senhor, sem nem mesmo se perguntar para o que é o sim, ou por que disse não."
Usar só metade da atenção para encarar a vida.
A frase vem algures a meio do livro, e serve para revelar a seco como Eurídice atravessa toda a sua vida.
Uma família de origem Portuguesa no Brasil, duas filhas, anos 40 até anos 60.
A história passa-se no Brasil mas podia passar-se em Portugal, ou em qualquer outro país do mundo.
Mulheres não tem sonhos, tem obrigações...obrigações simples... cuidar da casa, do marido e dos filhos... cuidar da casa, do marido e dos filhos.
Nos dias de hoje, Eurídice ao primeiro olhar é um lamento.
Uma menina que cresce a agradar os que a rodeiam, mas cheia de sonhos, de iniciativa empresarial que é continuamente recalcada ao longos dos anos pela simplicidade dos pais, pela insegurança do marido e pela indiferença dos filhos.
Mesmo assim, Eurídice vai arranjando sempre formas de se reinventar, de sonhar, de ganhar por si própria a autoconfiança que ninguém lha dá.
Nos dias de hoje, esta forma de viver é no mínimo um pouco estranha, mulheres que não cumprem os seus sonhos por imposição de terceiros (pais, maridos, filhos). Mulheres submissas a um trabalho e a uma vida de vazio.
Será que é estranha? Será que nos dias de hoje a vida da maioria das mulheres é tão diferente assim?
Provavelmente a resposta será;
Os tempos serão outros, os caminhos são mais amplos, as oportunidades mais vastas. O sucesso empresarial de uma mulher já não é visto com desconfiança nem desprezo. Os seus caminhos não são descaradamente bloqueados por outros...
Esta parte já me ultrapassa e deixo á consideração de cada um de nós tentar perceber a realidade ou as realidades atrás de cada porta.
Eurídice é uma personagem cheia de inocência, a quem a vida esvaziou de ternura e tempero. Eurídice usa só metade da atenção para encarar a vida.
Será só Eurídice?