UM QUARTO SÓ MEU(3)
Há uma semana fiz algo impensável. Fui vê-la. Ou melhor, fui atrás dela depois de sair triste e desamparada daquele almoço que lhe deveria ter sido sufocante. Ela não conhece quase ninguém e vê-la encheu-me de pena, abandonada no canto da mesa, metida consigo própria e trocando frases soltas com um ou dois.
Fiquei com o coração apertado quando saiu cedo, mais a mais porque eu não tive a dignidade de me dirigir a ela, nem para um cumprimento.
Bati à sua porta e ela recebeu-me cabisbaixa mas cheia de generosidade.
Fui um desastrado com ela. Fiz graças sem sentido e magoei os seus sentimentos. Para a compensar terei que a ajudar nas suas dificuldades. Vou tentar! Prometo que vou tentar!
Consegui convencê-la a caminhar comigo e com o meu cão Dali. Ele é velho e respigão e já não gosta tanto assim de se mexer. Ela tem medo de cães, e mostrou um certo receio dele quando nos conhecemos, mas ele respigão ou não, gostou muito dela.
Provavelmente até será mais fácil ela gostar dele do que de mim. Ele não é desastrado, nem da sua boca saem disparates pegados como a minha debita continuamente.
Perguntei-lhe se conhecia o Parque João José Luis. Respondeu-me que não.
Não! Fiquei confuso, afinal o parque fica em frente à paragem da carreira e ela vai nela todas as quartas-feiras.
-Porque não? Não sabes onde fica? Como não sabes? Expliquei-lhe e respondeu-me que não, nunca lá entrou.
Como podem reparar eu faço muitas perguntas e estou sempre a falar. Ela gosta de estar calada.
-Porquê? Acho que foi o primeiro sítio onde fui quando cheguei.
Não soube responder. Olhou-me com um ar de descaso. Vi a sua mente a fervilhar, quem sabe a procurar uma resposta decente. Acabou por afirmar que estava frio, que tinha muito frio e que não se queria constipar, não podia constipar-se, foi a expressão que utilizou como se fosse algo que ela tivesse muita atenção para que não acontecesse.
-Talvez no Verão. Agora está muito frio para andar por aí.
Tem uma voz suave e doce. Gostaria muito de a ouvir com mais frequência, mas ela é meticulosa e refugia-se no seu próprio sorriso discreto e no seu olhar assombroso de um azul profundo como os mares da Escandinávia.
Convencê-la foi tão difícil como conseguir ouvir a sua voz, e depois de muita argumentação da minha parte, lá aceitou encontrar-se comigo na terça-feira seguinte, pelas sete e vinte e cinco da manhã.
O meu turno no Hospital terminava pelas sete da manhã e eu parecia um menino de escola a olhar para o relógio de cinco em cinco minutos.
Foi o primeiro dia que saí a horas. Fiz as rondas com uma solicitude feroz e despedi-me da Branca e da Virginia dois minutos antes das sete.
-Onde vai o moço tão alegre?! - Branca é um doce e muito traquina. Perspicaz. Já teria topado o brilho no meu olhar.
Apenas sorri-lhe e disse-lhe que precisava de acompanhar alguém. Ela devolveu o sorriso. Como são desenvolvidas as mulheres, como as subtilezas não lhes escapam. Como são atentas e entendem, deduzem à mínima diferença.
Como ela entendeu-me apenas com um pequeno olhar, com uma atenção displicente que nos observa sem que se dê conta.
Eu tinha uma disponibilidade mais sentida para o doente, um olhar mais íntimo, fiz mais rondas do que o costume. Não me deitei a noite toda e troquei conversas profundas com dois ou três que tinham um ar assustado por terem de passar a noite nas urgências.
Um médico não faz isso. Um médico trata e vai-se embora. Deixa essas miudezas para as enfermeiras e para as auxiliares.
Vi-a ao longe sentada no banco do Parque. Deveria ser pontual. Deveria cumprir com as sua obrigações com empenho e responsabilidade.
Encolhia-se sentada no banco. Vestia um casaco largo e aparentemente quente, mas não o suficiente para a proteger do frio. Porque teria tanto frio? O medo também produz frio, e por vezes eu descobria-lhe umas expressões de medo no olhar.
Estava distraída quando cheguei, porventura no mundo dela, que estava a léguas de distância do meu.
Agora ao olhá-la a uma distância tão curta, -quase que a toco se esticar o meu braço,- entendo que ela vive sensações e sentimentos que eu nunca tive e isso, de certa forma torna-a mais rica e fascinante do que eu.
-Bom dia Alice!
Sobressaltou-se com a minha voz, mas sorriu.
-Bom dia Elias.
-Estás cá?
-Sim! Não sou um ardil. Sou mesmo eu.
-Não foi isso que eu perguntei. Parecias distante. Quero saber se trouxeste o corpo, e se trouxeste também a tua alma.
-Oh! Isso.
Fez um ar sério, como se eu tivesse tocado num assunto intocável.
-Vai-se lá saber. A alma faz o que quer.
Sentei-me ao seu lado, sem pedir licença. Eu não tenho essas subtilezas. Sou muito prático, quem sabe, a raiar a arrogância e um pouco insensível. Os dramas são apenas isso, dramas! Tento dar sempre uma realidade diferente às preocupações e angustias das pessoas. Quero ser o contrabalanço para o seu desespero. Por vezes é apenas isso! Momentos de desespero infundado que terá de ser travado.
Por vezes o melhor que dizem de mim é que sou pouco dado.
-Vamos comer ou vamos andar? O que queres fazer primeiro? - acabei por perguntar-lhe.
Olhou-me confusa e não soube o que responder. Senti-lhe um ar de descaso, aquela expressão que fazemos quando sentimos alguém a meter-se na nossa vida.
Não queria a sua resposta, por isso levantei-me e pedi que esperasse por mim.
Fui ao café mais próximo e trouxe duas boleimas de maça e dois copos de papel com leite e café bem quente.
Comemos em silêncio. Ela come devagar. Apertava o copo entre as mãos. Uma tentativa inútil de as aquecer.
Reparei que estavam frias quando lhe entreguei o copo e consegui roçar as minhas nas dela.
-O frio aqui é tramado não é?
Respondeu-me com o olhar e com um leve assentimento de cabeça.
Era doce olhar para ela. Era como uma melodia, uma canção de embalar que se ouve e que nos dá vontade de chorar pela sua beleza.
Ela não é particularmente bela, mas tem um olhar de resignação e pouca vontade em se embelezar. Nenhuma maquilhagem, nenhum verniz nas unhas, um leve batom do cieiro nos lábios, um leve perfume a rosas, e aqueles olhos penetrantes diferentes de tudo o mais.
Não se expõe, mas acredito que arrebata olhares quando entra numa sala. Basta o seu olhar, basta o seu despreendimento.
Como é que eu entro lá dentro? Estes pensamentos assolavam-me a mente enquanto mastigava a minha boleima.
De repente, também eu, precisei de um pouco de silêncio. Era aqui que consistia a dignidade humana. A capacidade ou não de suportar e entender as razões do silêncio.
Ela já tinha chegado lá. Ela entendia-o perfeitamente. Ela era enamorada dele. Eu tinha muito que caminhar.
Comecei por falar das pessoas da vila, das que ela não conhecia e que seriam quase todas.
Procurei algo que a pudesse interessar e reparei que gostava de ouvir-me. Gostava também de ficar calada, por isso não fiz perguntas. Falei simplesmente.
Ficou profundamente curiosa com o António. Descrevi-o como um fora da lei, mas uma flor de pessoa.
Incentivei o seu desejo de saber. Ela precisava de procurar, de sentir-se no meio de nós.
Ela não poderia continuar ali, inacessível, sozinha. E eles, eles estavam pelados por conhecê-la, por dizer-lhe mais do que um simples bom dia, mas do que um simples e maroto sorriso.
Ela tem um sorriso maroto. Parece uma menina a esconder uma asneira que lhe deu muito prazer cometer, mas deve ser a mulher mais bem comportada que eu conheço.
Levantei-me e pedi-lhe a mão com um gesto.
-Anda! Vamos conhecê-los.