23 de dezembro de 2021

 


UM, DÓ, LI, TÁ - M.J. ARLIDGE



Sinto que caí numa armadilha e que já não há nada a fazer. Parece que a série de Helen Grace já vai longa e pronta para continuar. Viro a contracapa e encontro-lhe mais oito livros. A partir daqui é tratar de ler a série da melhor maneira possível!

Um, dó, li, tá, é um jogo de escolhas. Pares raptados por uma misteriosa mulher que os deixa encurralados num local onde não podem fugir. Sem água, sem comida, sem privacidade. Apenas com uma pistola e um recado. Se queres viver, mata.
É uma metáfora para o verdadeiro motivo dos crimes. Esta construção é soberba.

A condição humana e o nosso instinto de sobrevivência só se demonstram em situações extremas. A maneira como os raptados se revelam é outra das particularidades deste livro.
Eles estão completamente expostos e apenas tem uma única escolha. Matar ou morrer. 
Alguns demostram capacidade para mais do que isso. Há sempre os que se sacrificam pelos outros.
Outra coisa interessante é a fragilidade. Este livro também fala de vulnerabilidade. Do cidadão comum, mas também da própria Helen Grace.
Ela é uma inspetora que sobe a pulso com uma aura de inabalável. Só, distante e fria. Porventura até calculista. Não alimenta muitas paixões entre os seus, mas ela é a mais frágil de todos.
Pior do que isso, ela é o alvo principal desta história.
E isso é que torna esta Helen Grace e quem sabe os próximos livros tão interessantes.


21 de dezembro de 2021

 


MATT HAIG NA WOOKACONTECE




Tenho na minha estante para ler "O mundo à beira de um ataque de nervos" de Matt Haig.
Comprei-o compulsivamente. Alinhava no tema para um projecto que tenho em mãos, mas ao desfolhar as suas páginas perdi um pouco o interesse.
Existe uma premissa em que eu acredito com regularidade. Diz, que todos os livros, ou quase todos são há partida bons livros e que a escolha para os ler, na maioria das vezes impõem a nossa aceitação à história.
Eu, acredito nessa premissa. Muitas vezes é o livro que me escolhe. Não sou eu que o faço. Ele está sossegado na estante e pode estar lá meses, mas haverá um dia em que os meus olhos se demoram nele, e a magia acontece. Provavelmente porque era a altura certa para o ler.
Matt Haig está nesse limbo. 
Fui buscá-lo para iniciar o texto deste post e agora ele está aqui a olhar para mim com aquele ar de súplica, desejoso que lhe abra as páginas. Vitorioso, porque acredita que chegou a sua vez. 
Como são caprichosos os livros, meu Deus!
-Não posso! Estou a acabar um livro - respondo-lhe contrariada, mas a passar suavemente com os meus dedos pelas suas páginas. Li o inicio sem querer.
-Encontra espaço para mim - é a resposta que ele me devolve. 
Não é um pedido. Ele sabe que será. Começo a sentir-me presa à sua urgência.

Não vou alongar-me muito na entrevista que li do Matt Haig ao WOOKacontece. Leiam por favor.
Sublinhei algumas frases.
É isso que pretendo transcrever aqui. Não, texto meu. Texto, palavras dele.
Quanto aos seus outros livros, já estão na minha lista de compras.


"Quanto mais lemos, mais o mapa de nós próprios se torna preciso."

"Para ser escritor é necessário talento, mas também é preciso ter determinação e resiliência. É dificil porque, para escrever bem é preciso ter alguma sensibilidade e prestar atenção ao que se passa à nossa volta, mas depois, para ser publicado é preciso ter uma carapaça dura."

"Ás vezes, ser romancista é isso, também: conseguir fazer com que pareça que sabemos mais acerca do tema sobre o qual estamos a escrever do que realmente sabemos."

"As pequenas coisas nunca são realmente pequenas."

"Não ande em torno da sua vida, viva-a, simplesmente." 

Outras possibilidades do autor que eu vou querer ler;



"E se o modo como vivemos estivesse programado para nos deixar infelizes? Toda a sociedade de consumo assenta na ideia de nos criar o desejo de ter o último modelo, em vez de nos contentarmos com o que temos; somos encorajados a sairmos de nós e a querermos outras vidas: uma receita quase infalível para a infelicidade."





"Tal como basta apenas um instante para se morrer, também basta um instante para se viver. Fecha-se simplesmente os olhos e deixa-se que todos os receios fúteis se esvaiam."





"Se pudesse escolher a melhor vida para viver, o que farias?

Prémio Goodreads para melhor livro de ficção - Finalista dos British Book Awards para o melhor livro de ficção.







"O livro do conforto é uma coleção de singelas lições aprendidas em tempos difíceis e sugestões para melhorar os dias menos bons."

14 de dezembro de 2021

 


ORGULHO E PRECONCEITO - JANE AUSTER


Há muito que oiço falar deste livro. Oiço e leio várias opiniões que estimulam a sua leitura.
Confesso que não sou de clássicos. Acho que nesse aspeto sou um pouco limitada. Não tenho grande lista de obras desse género. Já tive. Creio que as minhas primeiras leituras foram muito baseadas em clássicos. 
Não sei se já referi aqui, mas os meus primeiros tempos de menina dada a leituras compulsivas foram suportadas pela Biblioteca Municipal e isso, acreditem, pode e é, uma grande vantagem. O limite do que podemos ler é esse mesmo, ilimitado. 
Nessa altura, recordo que nunca fui muito inclinada para leituras próprias da minha idade, mas por estes mesmos clássicos que agora tenho tanta dificuldade em pegar.
Por norma, hoje em dia, são livros que ficam a meio e acabo por ficar um pouco dececionada comigo própria.
Leitura conjunta com o Clube Manta de Histórias, escolheu para Dezembro a leitura deste livro, e eu pensei que seria desta. Comprei uma edição da "BookCover" editora, muito bonita e muito acessível e descobri no site da editora outros clássicos que eu vou tentar aventurar-me no futuro.

Quanto a Orgulho e Preconceito. Bem! É melhor começar do princípio. É, não é!
Esta história tem um tempo próprio. O século é muito diferente do nosso, por isso a maneira de escrever, e a própria realidade social são diferentes.
Confesso que tive dificuldade no início em enquadrar-me nessa mesma realidade, e ainda andei no primeiro e no segundo dia a apalpar terreno na esperança fervorosa de não abandonar o livro.
Recordei as palavras amáveis de Virginia Woolf no seu ensaio "Um Quarto só seu". Na maneira como ela recorda a escritora Jane Auster, e na forma abnegada em como ela se dedicou à escrita. 
Prossegui então, com alguns atrasos nos dias seguintes, mas cheguei ao ponto em que abandonar o livro deixou de ser uma opção.

Elizabeth Bennet, a personagem capaz de arrebatar o espirito, é das poucas personagens femininas da história com convicções, ideais e até com capacidade para compreender a realidade que a rodeia.
No entanto as aparências enganam. Aliás, as aparências enganam sempre, mas Elizabeth, mesmo com a sua capacidade em compreender os outros, é também arrebatada pela ilusão.
O seu relacionamento com Mr. Darcy, torna-se assim interessantíssimo por esta dualidade. Mais do que tudo pela sua própria capacidade em compreenderem-se um ao outro.
Não estava à espera de uma história assim. Tão pouco com um desfecho tão favorável para as personagens.
Acredito que naquele tempo essa realidade não era uma opção válida, mas alegro-me que o orgulho de um e o preconceito de outro, os pudessem aproximar, e não separar.
Que essa perceção mútua, foi também capaz de os fazer compreender as suas fragilidades como indivíduos e acima de tudo, compreenderem tudo o que teriam de alterar de si próprios para poderem estar disponíveis um para o outro. 

Nos dias que correm seria uma história comum. Duvido mesmo até que seria uma história. Talvez esta última perceção não seja mais do que um erro de leitura da minha parte. As convenções sociais, embora mais esbatidas existem, e dificilmente as classes sociais se misturam. É certo, que hoje, quase tudo é permitido e aceite. Mas mesmo assim, não deixamos de passar por orgulhos e preconceitos.

Mr. Bennet, é também ele um personagem e tanto.
Não pela sua atitude benevolente e permissiva. Demitida até das suas obrigações de pai. Mas realmente pelo que pensa. A sua desilusão no próprio casamento é um sinal claro que o assunto é algo sério e não deve ser visto com leviandade.
O seu concelho a Lizzy, quando lhe dá o consentimento para casar-se com Mr. Darcy é tocante, e se o lermos condignamente, até acho que vale a pena pensarmos nele, no derradeiro momento de dizermos o "sim".
"E agora torno a dar-lhe o meu consentimento, se a isto está decidida. Mas aconselho-a a pensar melhor. Conheço o seu temperamento, Lizzy, penso que jamais seria feliz e equilibrada a não ser que estime realmente o seu marido, a não ser que o possa considerá-lo o seu superior. A sua vivacidade e inteligência colocá-la-iam numa situação de grande perigo num casamento desigual. Ser-lhe-ia difícil salvar a sua reputação e a sua felicidade. Minha filha, não me dê o desgosto de a ver impossibilitada de respeitar o seu companheiro de vida. Você não sabe a seriedade do passo que está a dar."
A capacidade de compreendermos o passo que estamos a dar é por vezes diminuta e os casamentos tem o fim à vista. Hoje em dia isso é perfeitamente normal e aceitável, naquele tempo, ficava apenas o desrespeito e a mágoa em casamentos iguais ao de Mr. Bennet.
Ele compreendia isso perfeitamente, a sua mulher fingia que não. 
  



5 de dezembro de 2021

 




O LIVRO DO DESASSOSSEGO - FERNANDO PESSOA

(Maneira de bem sonhar)





"-Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar para amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.
-Nunca pensas no que vais fazer. Não o faças.
-Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, na dor e no bem-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando porque a tua vida-real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus atos da vida-real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.
Torna-te para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.
E se alguém te disser que isto é falso e absurdo, não o acredites. Mas não acredites também no que te digo, porque se não deve acreditar em nada.
-Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso."


 

A VIDA NO CAMPO - OS ANOS DA MATURIDADE - VOL.II



Ainda não acabei de ler este livro. Ler A Vida no Campo de Joel Neto, é ler com maturidade.
Já não recordava a sensação de tranquilidade que o primeiro volume trouxe há minha alma, e por já quase não sentir o seu cheiro, adiei a sua leitura. Faço-o com muitos livros que chegam à minha estanque e esperam eternidades para serem lidos.
Eles esperam por nós, eles esperam sempre por nós. Os livros são pacientes e benevolentes. São românticos e agradecidos e nunca, nunca nos cobram favores.
O livro na sua capacidade de devoção é acima de tudo um Deus adormecido nas nossas estantes e perpetuamente bem disposto.
Ainda haverá o dia em que eu não os tenha à minha espera. Ali, na estante do meu quarto, encostada à mesa de cabeceira, os mais próximos. Aqueles que ainda não foram lidos. Os que ainda estão por vir.
E eles mudam de cima para baixo, de baixo voltam a passar para cima, e de vez em quando saltam para a mesa de cabeceira ansiosos porque serão os próximos.
A sua ansiedade por vezes é desmesurada, porque por ironia do destino, muitas vezes voltam à estante numa segunda, terceira, quarta escolha.
Também existem os que chegam e ocupam logo o seu lugar de primazia e existem aqueles que esquecidos na estante, um dia, sem justificação aparente é ele que olha para mim e pede, súplica a sua existência naquele preciso momento.
Não sei se vos acontece ouvirem o canto da sereia, a melodia de razão e sentirem a necessidade sem motivo de pegarem naquele livro. O som do seu chamamento!

Divago, divago... queria apenas falar da "A Vida no Campo" de Joel Neto. 
Como dizia Fernando Pessoa, "As cidades mudam, mas os campos são eternos."
As cidades nem são feitas para a chuva. Já deram conta, que quando chove a cidade desintegra-se? 

"A minha araucária resistir-lhes-á. A minha araucária resistir-me-á a mim. A minha araucária resistirá àqueles que me viram vivo e resistirá com certeza aos meus livros, esses com que também eu vou tentando vencer a morte, num jogo tonto com que tantos escolhemos enganar-nos, porque como nenhum outro, e mesmo sabendo que nos enganamos, conseguimos enganar-nos tão bem e durante tanto tempo."

Estou no início deste livro, por isso, e porque o conceito em si, fascina-me, vamos acompanhar esta leitura!



 


O PRINCIPE DA NEBLINA - CARLOS RUIZ ZAFÓN





Esta é a história de Max, da sua irmã Alicia e do seu novo amigo Roland.
Peço desculpa porque apenas vou falar do primeiro livro desta trilogia. Coloco a capa do livro que tem o conjunto dos três livros, porque é o livro que adquiri, mas apenas li, ainda, a primeira história que tem o nome de "O Príncipe da Neblina"
Uma história sobre a juventude e a amizade na juventude. Uma história que aflora, a possibilidade do primeiro amor. Como ele pode ser intenso e eterno, apesar de ser tão fugaz.
O enredo é simples, uma história sobre a amizade, sobre a lealdade e sobre as promessas que tem de ser cumpridas. Que tem mesmo de ser cumpridas.
Carlos Ruiz Zafón não desilude.
Para mim, não! Acredito que este escritor nunca irá desiludir-me. 
A sua obra é fantástica.
Para mim, é!
Aquilo que escrevo, não é, nem tem sequer a pretensão de ser as "letras de Coimbra". Apenas (falo), escrevo do que sinto em cada leitura que faço. Por isso, e porque já desfolhei várias obras de Zafón ele para mim não desilude.
Existem poucos autores que eu possa dizer que voltaria a ler outra vez o mesmo livro. Zafón tem vários que eu voltaria a ler de bom grado.

Que mais posso dizer! Fica latente nesta história a importância da amizade e do amor entre os seres humanos. 
Essa amizade e esse amor são as razões para grandes feitos e Alicia no meio deste jogo saí fragilizada porque não cedeu em nome do amor.
É uma atitude dúbia, mas consciente e aceite.
A amargura que lhe ficou depois. Quando compreendeu o alcance do seu gesto é talvez pesado demais para a personagem. Ela não merece. 
Em Zafón as personagens são um Universo fascinante. Ele molda-as com uma estrutura inesquecível.
É uma pena que já esteja entre nós.  

21 de novembro de 2021

 


UM DIA - DAVID NICHOLLS





Não faço ideia dos anos que namoro este livro. Pode parecer até um pouco piegas, mas sempre que ele aparecia-me à frente eu incluía-o na minha lista de desejos.
Não vou explicar a quantidade de vezes que ele foi preterido por outros. Pela novidade do momento, pelo sinopse bem mais interessante, pela resenha extraordinária de algo que teria mesmo de ser lido.

"Um Dia" já esteve na lista dos livros lamechas que provavelmente não seriam tão interessantes assim.
Mas há luas e eu por vezes sou feita de luas, e numa dessas luas sem sentido encomendei o livro sem pensar, outra vez duas vezes e coloquei-o na estante à espera de vez.
A vez dele não demorou muito, devo dizer. Tenho outras relíquias que esperam à muito, muito tempo.
As razões porque o fiz agora também não as tenho. Aconteceu simplesmente, porque tinha de acontecer. 

E o que devo dizer de "Um Dia". 
Há muito tempo que não demorava duas semanas a ler um livro. Não sei porque o fiz, mas a verdade é que eu queria e não queria andar muito depressa. Queria saborear estas duas vidas da forma mais lenta possível. 
O que dizer de uma história de amor entre duas pessoas que esperaram quase vinte anos para se encontrarem? 
Que tiveram de ser amigos para serem amantes e que tiveram de viver outras vidas para puderem ser um para o outro.
Ian, no fim mata o livro com a maior realidade de todas. Emma iluminava-se na presença de Dexter, e conseguiu fazer dele um tipo decente. Ele (Dexter) conseguiu fazê-la feliz.
Confesso que Dexter foi a minha mala-pata deste livro. Ele nem sempre foi decente, nem sempre fez aquilo que devia fazer e muita vez daquela boca só saía asneira.
Uma vez ela (Emma) disse-lhe que o amava e sempre o ia amar mas que já não gostava dele.
A mãe disse-lhe isso, que ele não estava a ser a melhor pessoa.
Por isso, e por muitas outras coisas Dexter é a personagem que menos encanta. Porquê?
Porque no reverso da medalha está Emma, que cresce continuamente e é o motor de um amor abençoado.
É como um paradoxo. Dexter tem tudo para ser grande, e o que consegue "fama" vem tão depressa que se esvaí como veio. Vazio e sem sentido.
Emma, tem tudo para ser pequena e faz o seu caminho como se cada passo fosse o grande passo. Quando chega lá, ninguém dúvida que aquele lugar é dela, e que ela está onde sempre deveria estar.

Não acabei de lê-lo. Quando dei conta, só fui capaz de esconder a cara nas mãos, dizer uma asneira e começar a chorar.
Continuar a ler dali para a frente foi um sacrifício entre lágrimas.
Hoje, deitada no sofá, tomei a coragem de ver o filme.
É bonito! Gosto muito da atriz que interpreta Emma, mas filme é filme e livro é livro.
Está muito similar, chorei o que não ajuda. Ou ajuda não sei!
Quanto ao livro tem diálogos incríveis. Adorei os diálogos entre os dois. O namoro dissimulado através da conversa e a simplicidade da história mexe com qualquer um. 
A lucidez da espera. A alegria de que dia, seremos e poderemos ser felizes. 

13 de novembro de 2021

 


7 DIAS, 7 POEMAS


A UMA RAPARIGA




Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem de cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,
da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste de uma flor!...


Florbela Espanca

10 de novembro de 2021

 


O ESCRITOR E O PRISIONEIRO - RUTE SIMÕES RIBEIRO



"-Quem é miserável não sabe que é miserável?
 - Sabe, mas escolhe não ser, enquanto o for. Se um dia deixar de ser miserável, passará a ter pena dos que veja iguais ao que foi um dia."


É o segundo livro que leio da escritora e acabo sempre a pensar na relatividade das questões.
"O escritor e o prisioneiro", não tem espaço, nem tempo. Decorre numa sala de um consultório médico, e o prisioneiro não sabe se está louco ou não. 
A dúvida será porventura um sinal de sanidade?
E onde está a linha que separa essa nossa capacidade? Faço esta pergunta, um pouco à margem deste livro, ou desta história, porque os dias são rafeiros e a diferença entre uma coisa e outra nos rostos dos outros é cada vez mais ténue.
Provavelmente será uma ilusão minha, desesperança, desespero, fragilidade, mas os rostos estão efetivamente diferentes. Até o meu.

"... nos devêssemos todos preparar para um dia em que se dê sermos prisioneiros. E quem não esteja preparado, ainda lhe disse, corre o risco de não ter para que luzes olhar."
Ainda há parte deste livro, e que me desculpe a Rute Simões Ribeiro que mais uma vez fez-me pensar e desviar-me das linhas do seu livro, essa é a condição permanente do ser humano.
Presos a coisa nenhuma, iludidos em estradas sem sentido.
Já não olhamos o céu há muito, muito tempo.
Gostaria de ser um pouco mais distraída, mas por norma distraio-me mais com coisas supérfluas, como a lista do supermercado. Normalmente nunca acerto, entre aquilo que é preciso e aquilo que falta.

Perdoem-me! Desviei-me do essencial.
Que posso dizer! 
É dificil explicar. A essência deste livro é dificil de explicar. A essência deste livro é o próprio livro em si. O momento em que o escritor se confunde com o próprio assunto.
A obra criada para além das linhas que se preenchem de um caderno, da caneta que corre fugaz. 
Ele não é o outro, mas o próprio, prisioneiro do seu próprio ato de escrever. 
Ele está emaranhado naquelas linhas e elas são não a cópia de si mesmo, mas o seu próprio perfil.
O texto leva-nos a pensar, talvez até na nossa própria lucidez, talvez no nosso próprio aprisionamento.
Quem é escritor deve compreendê-lo muito bem, para mim foi o melhor momento para o compreender. 
O caminho em que duas estradas deixam de existir. 
Em que o escritor e a personagem se confundem, lado a lado, e deixa de ter competência para diferenciar a loucura da lucidez.
   

P.S - Gostaria de fazer uma ressalva nesta publicação. Este exemplar foi-me oferecido pela própria escritora ao qual eu estou profundamente grata. Não só a sua disponibilidade, mas também a sua gentileza e generosidade. Obrigada.



7 de novembro de 2021

 


A DANÇA DAS ESTRELAS - EMMA DONNOGHUE





Surpreendentemente aborrecida até à página 36. Tive até alguma dificuldade em atravessar a barreira da perceção que me sussurrava ao ouvido que não era para desistir.
Fraco, lento de início. Desinteressante até nas primeiras descrições, fortaleceram a minha noção inicial de que comprar o livro tinha sido um erro.

Mas não desistem, eu também não desisti. E quem não desistir vai descobrir uma história sobre a condição humana. Sobre o papel da mulher numa sociedade tão diferente da actual, de pobreza e de abandono.
Vai ler, como o amor ao próximo é a parte mais importante desta equação tão esdrúxula que é a vida.
Como um quarto de uma enfermaria, tremendamente pequeno e em três dias, descobre-se o significado do amor, da morte e da ressurreição.

Quem quiser ler um pouquinho entre as linhas descobrirá, que nós, mulheres pouco valemos, que somos fracas e sofridas, que temos medo, muito medo, mas temos a capacidade dentro de nós, de salvar o mundo.
Contribuímos com a vida, não na guerra, não dentro de uma trincheiras aos tiros em nome de um país ou de um ideal, mas nas vidas que geramos, na dor que suportamos e na força que vamos buscar, muitas vezes sem a saber que temos.

Adorei ler este livro. Apesar do início. 
As exímias descrições de partos tão sofridos. A fragilidade da mulher e a sua extraordinária força.
Afinal, naquele momento, não há como voltar atrás.
Mais do que retratar uma epidemia que muito se assemelha a que vivemos agora, este livro retrata especificamente as pessoas que mais foram influenciadas e atacadas por ela.
Os pobres e subnutridos, os que não podiam ficar em casa deitados, e cuja morte era sua culpa. 
E as grávidas e os seus filhos. As grávidas, as mulheres, as últimas.
"Os últimos serão sempre os primeiros", não esquecer. Nunca! 
 


31 de outubro de 2021

 


7 DIAS, 7 POEMAS




Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda muito mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia que caminho tomar
Mas o vento varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.
Assim tem sido sempre a minha vida, e assim quero que possa ser sempre - 
Vou onde o vento me leva e então não preciso de pensar.


Obra completa de Alberto Caeiro

30 de outubro de 2021

 


MENTIRAS CONSENTIDAS - HJORTH & ROSENFELDT



Decididamente o melhor dos seis livros já editados!
Esta é a minha humilde opinião. A mais sincera. Que posso dizer! Não tenho muitas séries de livros concluídas e confesso que a sua empreitada assusta-me, mas ao mesmo tempo tenho muito interesse em livros e histórias que tem continuação. É como o desfolhar da própria vida. Não nos limitamos a ler sobre um determinado momento, mas vamos de gostando aos poucos as suas realidades.
É como voltar a casa de um amigo de quando em vez. 

É só uma ideia, mas acredito que o próximo livro que já se fala que estará a sair nas bancas em breve, será extraordinário. Tudo, neste sexto livro ficou em aberto para que assim seja.

Sebastian Bergman voltou a fazer asneira, mas convenhamos, se ele não fizer as suas asneiras, se ele não for um perfeito idiota, ele perde completamente o interesse.
Eu espero ansiosamente que a cada página Sebastian tenha a coragem de mostrar o que realmente é.
Um homem destroçado e quebrado pela morte da sua filha e da sua mulher.
Mas ele tem repugnância na comiseração dos outros e vai continuamente pondo um pé à frente do outro no caminho estreito da asneira.

Vanja é crua com ele. É filha dele. Está no seu sangue.
A maior parte das suas atitudes são o seu espelho, e eu acho, que na maioria das vezes nem ela dá conta de como a sua personalidade é tão estreita.
Compreendo-a quando se afasta dele. Para todos, ele não tem grande cura. Ele está completamente absorvido pela sua incapacidade de se dar e de receber como uma pessoa normal e condenado a que Deus nunca olhe para ele.
Ele acredita nisso, e acredita que pode fazer o que entender, as asneiras que quiser, alimentar o seu vício sem pensar, porque nada vai mudar para ele. 
As pessoas que o rodeiam só tem a perder se estiverem ao seu lado, por isso, Vanja afasta-se e afasta-se e quando ele não se afasta por ele, ela cruelmente lhe diz que nunca fará parte da vida dela.
Ela, infelizmente para ele, teve a capacidade de compreender isso.
Azar o dele!
Ele não vai mudar se não for verdadeiramente ajudado, e ela, Vanja, é a única que o pode fazer.
Ela não o faz, por agora. Espero que o faça no futuro.

Por incrível que pareça nenhum membro da equipa mostrou grande interesse em resolver o caso policial que tinham em mãos.
Nenhum tirando Vanja e Sebastian.
Conseguiram colocar as suas divergências de lado e fazerem o essencial para o resolverem.
Vai sair caro aos dois. Quer-me cá parecer que vai sair muito caro aos dois no futuro.


21 de outubro de 2021

 


7 DIAS, 7 POEMAS



QUANDO FORES VELHA

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono.
Dormitando junto à lareira, toma esta livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos e com as suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos do teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.


W.B.Yeats

19 de outubro de 2021

 


7 DIAS, 7 POEMAS



NÃO SEI, AMOR, SEQUER, SE TE CONSINTO


Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intimida em que me esqueces.

Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas

outra coisa de mais que nos feneça:
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,

o vento que nos leves ou nos traves,
a não que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.

Pedro Tamen


 




O CASTIGO DOS IGNORANTES - HJORTH & ROSENFELDT









Durante muitos anos o meu principal móbil de leitura foram Triller´s. 
Durante muitos anos depois, deixaram de o ser, e eu passei a considera-los uma pessegada. - Desculpem o termo, mas li um comentário nas Redes Sociais com esta palavra sobre outro livro e ainda hoje me divirto com ela e a palavra não me sai da cabeça. - Mas não conseguimos fugir deles muito tempo, não é? Eu tentei. Eu juro que tentei. Depois veio a curiosidade sobre a obra do Nuno Nepomuceno e estragou tudo.
São acima de tudo vícios.
E Sebastian Bergman é realmente um vício.

Pessegada ou não, entrar no seu mundo é como entrar numa montanha russa e se for muito depressa, significa que a pessegada é mesmo boa.
O melhor deste triller´s de Hjorth & Rosenfeldt é sem dúvida nenhuma, Sebastian Bergman.
Claro que ele já não é um homem tão irritante e isso tira-lhe alguns pontos, mas convenhamos, continua a fazer muitas asneiras.
Umas asneiras até tem um efeito benéfico para o grupo, mas outras! Meu Deus! Eu continuo a pôr a minha mão na cabeça.
A maneira como ele é displicente e deita tudo a perder.
O seu relacionamento com a sua filha Vanja é isso tudo.
Um somar generalizado de asneiras atrás de asneiras. Ele tem muita pressa, ele não compreende e depois compreende, ele caí na tentação.
Como ele caí na tentação!!

A construção das personagens é o melhor que o livro, ou a série em si, têm.
O caso de polícia propriamente dito é algo secundário. Não nos arrepia, não nos provoca repulsa, não é macabro.
Eles são tudo menos certinhos. Cheias de defeitos e ambiguidades.
Em algum ponto desta série já as amamos, mas também já as odiamos profundamente.
Vanja é o primeiro exemplo disso mesmo. A menina do papá que não sabe perdoar.
Já gostei muito dela, mas também já a odiei. Já gritei para aquelas páginas e lhe disse: "Vá lá. Não sejas tão dura. Ele está a tentar!"
Mas compreendo a sua fragilidade.

Enfim! Como devem de compreender, já comecei a ler "Mentiras Consentidas". É o último livro da série editado em Portugal, por isso mais vale despachar o assunto. Parece que o próximo saí em Novembro!!
   

18 de outubro de 2021

 


7 DIAS, 7 POEMAS
O TEMPO





O TEMPO

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...




Mário Quintana


12 de outubro de 2021

 



LOBA NEGRA - JUAN GÓMEZ-JURADO



Se Juan Gómez-Jurado quiser continuar a escrever sobre Antónia Scott, eu também vou continuar a ler sobre Antónia Scott.

Pessoalmente gostei mais do livro "A Rainha Vermelha" do que este "Loba Negra", principalmente no caso de polícia que é retratado.
Considero que o no primeiro livro, nesse aspeto temos um caso mais sólido e até mais interessante. 
Não vimos uma Antónia Scott a pensar muito nas cenas do crime, e tudo ou quase tudo lhes chega às mãos por acaso.

Ela é a única no entanto que vai tentando fazer alguma coisa e é ela que descobre o contentor de tráfico de mulheres e faz algumas "cócegas", ao mafioso.
Acho por isso, que este livro vale pela Antónia Scott. A sua inteligência acima da média em contraste com tudo o resto.
É claramente um livro dedicado a Antónia Scott. À essência desta personagem e às suas virtudes e defeitos. 
Gosto particularmente da relação entre ela e o inspetor Jon. Aquela capacidade que ele tem de a proteger, porque gosta muito dela. E repare-se, é um amor platónico... ele é assumidamente gay.
E o bonito da relação deles é isso mesmo, a forma desinteressada como ele consegue gostar dela, uma pessoa tão diferente de si mesmo, uma pessoa em que ele consegue encontrar a mais profunda das essências.
Os diálogos entre os dois é a parte mais rica deste livro. A forma carinhosa como ela a trata "amor, linda, querida", o espaço que lhe dá, a maneira como a apoia.
Ela ultrapassa muitas vezes essas regras e caminha deixando-o para trás.
Ela tem fortes convicções, fortes capacidades, mas é muito, muito limitada nas relações humanas.
Não é propriamente uma boa colega, Antónia Scott. Ela não tem noção das coisas simples, do que é uma simples conversa, de como se verbaliza sentimentos, de como se diz, gosto muito de ti.
Ela dá e tira logo a seguir como diz Jon.


Antónia Scott vale qualquer livro. Espero que o próximo não demore muito!

6 de outubro de 2021

 


UM QUARTO SÓ MEU(3)





Há uma semana fiz algo impensável. Fui vê-la. Ou melhor, fui atrás dela depois de sair triste e desamparada daquele almoço que lhe deveria ter sido sufocante. Ela não conhece quase ninguém e vê-la encheu-me de pena, abandonada no canto da mesa, metida consigo própria e trocando frases soltas com um ou dois.
Fiquei com o coração apertado quando saiu cedo, mais a mais porque eu não tive a dignidade de me dirigir a ela, nem para um cumprimento.
Bati à sua porta e ela recebeu-me cabisbaixa mas cheia de generosidade.
Fui um desastrado com ela. Fiz graças sem sentido e magoei os seus sentimentos. Para a compensar terei que a ajudar nas suas dificuldades. Vou tentar! Prometo que vou tentar!
Consegui convencê-la a caminhar comigo e com o meu cão Dali. Ele é velho e respigão e já não gosta tanto assim de se mexer. Ela tem medo de cães, e mostrou um certo receio dele quando nos conhecemos, mas ele respigão ou não, gostou muito dela.
Provavelmente até será mais fácil ela gostar dele do que de mim. Ele não é desastrado, nem da sua boca saem disparates pegados como a minha debita continuamente.
Perguntei-lhe se conhecia o Parque João José Luis. Respondeu-me que não.
Não! Fiquei confuso, afinal o parque fica em frente à paragem da carreira e ela vai nela todas as quartas-feiras.
-Porque não? Não sabes onde fica? Como não sabes? Expliquei-lhe e respondeu-me que não, nunca lá entrou.
Como podem reparar eu faço muitas perguntas e estou sempre a falar. Ela gosta de estar calada.
-Porquê? Acho que foi o primeiro sítio onde fui quando cheguei. 
Não soube responder. Olhou-me com um ar de descaso. Vi a sua mente a fervilhar, quem sabe a procurar uma resposta decente. Acabou por afirmar que estava frio, que tinha muito frio e que não se queria constipar, não podia constipar-se, foi a expressão que utilizou como se fosse algo que ela tivesse muita atenção para que não acontecesse.
-Talvez no Verão. Agora está muito frio para andar por aí.
Tem uma voz suave e doce. Gostaria muito de a ouvir com mais frequência, mas ela é meticulosa e refugia-se no seu próprio sorriso discreto e no seu olhar assombroso de um azul profundo como os mares da Escandinávia.
Convencê-la foi tão difícil como conseguir ouvir a sua voz, e depois de muita argumentação da minha parte, lá aceitou encontrar-se comigo na terça-feira seguinte, pelas sete e vinte e cinco da manhã. 

O meu turno no Hospital terminava pelas sete da manhã e eu parecia um menino de escola a olhar para o relógio de cinco em cinco minutos.
Foi o primeiro dia que saí a horas. Fiz as rondas com uma solicitude feroz e despedi-me da Branca e da Virginia dois minutos antes das sete.
-Onde vai o moço tão alegre?! - Branca é um doce e muito traquina. Perspicaz. Já teria topado o brilho no meu olhar.
Apenas sorri-lhe e disse-lhe que precisava de acompanhar alguém. Ela devolveu o sorriso. Como são desenvolvidas as mulheres, como as subtilezas não lhes escapam. Como são atentas e entendem, deduzem à mínima diferença.
Como ela entendeu-me apenas com um pequeno olhar, com uma atenção displicente que nos observa sem que se dê conta.
Eu tinha uma disponibilidade mais sentida para o doente, um olhar mais íntimo, fiz mais rondas do que o costume. Não me deitei a noite toda e troquei conversas profundas com dois ou três que tinham um ar assustado por terem de passar a noite nas urgências.
Um médico não faz isso. Um médico trata e vai-se embora. Deixa essas miudezas para as enfermeiras e para as auxiliares.

Vi-a ao longe sentada no banco do Parque. Deveria ser pontual. Deveria cumprir com as sua obrigações com empenho e responsabilidade.
Encolhia-se sentada no banco. Vestia um casaco largo e aparentemente quente, mas não o suficiente para a proteger do frio. Porque teria tanto frio? O medo também produz frio, e por vezes eu descobria-lhe umas expressões de medo no olhar.
Estava distraída quando cheguei, porventura no mundo dela, que estava a léguas de distância do meu.
Agora ao olhá-la a uma distância tão curta, -quase que a toco se esticar o meu braço,- entendo que ela vive sensações e sentimentos que eu nunca tive e isso, de certa forma torna-a mais rica e fascinante do que eu.
-Bom dia Alice!
Sobressaltou-se com a minha voz, mas sorriu.
-Bom dia Elias.
-Estás cá?
-Sim! Não sou um ardil. Sou mesmo eu.
-Não foi isso que eu perguntei. Parecias distante. Quero saber se trouxeste o corpo, e se trouxeste também a tua alma.
-Oh! Isso.
Fez um ar sério, como se eu tivesse tocado num assunto intocável.
-Vai-se lá saber. A alma faz o que quer.
Sentei-me ao seu lado, sem pedir licença. Eu não tenho essas subtilezas. Sou muito prático, quem sabe, a raiar a arrogância e um pouco insensível. Os dramas são apenas isso, dramas! Tento dar sempre uma realidade diferente às preocupações e angustias das pessoas. Quero ser o contrabalanço para o seu desespero. Por vezes é apenas isso! Momentos de desespero infundado que terá de ser travado.
Por vezes o melhor que dizem de mim é que sou pouco dado. 
-Vamos comer ou vamos andar? O que queres fazer primeiro? - acabei por perguntar-lhe.
Olhou-me confusa e não soube o que responder. Senti-lhe um ar de descaso, aquela expressão que fazemos quando sentimos alguém a meter-se na nossa vida.
Não queria a sua resposta, por isso levantei-me e pedi que esperasse por mim.
Fui ao café mais próximo e trouxe duas boleimas de maça e dois copos de papel com leite e café bem quente. 
Comemos em silêncio. Ela come devagar. Apertava o copo entre as mãos. Uma tentativa inútil de as aquecer.
Reparei que estavam frias quando lhe entreguei o copo e consegui roçar as minhas nas dela.
-O frio aqui é tramado não é?
Respondeu-me com o olhar e com um leve assentimento de cabeça.
Era doce olhar para ela. Era como uma melodia, uma canção de embalar que se ouve e que nos dá vontade de chorar pela sua beleza.
Ela não é particularmente bela, mas tem um olhar de resignação e pouca vontade em se embelezar. Nenhuma maquilhagem, nenhum verniz nas unhas, um leve batom do cieiro nos lábios, um leve perfume a rosas, e aqueles olhos penetrantes diferentes de tudo o mais.
Não se expõe, mas acredito que arrebata olhares quando entra numa sala. Basta o seu olhar, basta o seu despreendimento.
Como é que eu entro lá dentro? Estes pensamentos assolavam-me a mente enquanto mastigava a minha boleima.
De repente, também eu, precisei de um pouco de silêncio. Era aqui que consistia a dignidade humana. A capacidade ou não de suportar e entender as razões do silêncio.
Ela já tinha chegado lá. Ela entendia-o perfeitamente. Ela era enamorada dele. Eu tinha muito que caminhar.

Comecei por falar das pessoas da vila, das que ela não conhecia e que seriam quase todas.
Procurei algo que a pudesse interessar e reparei que gostava de ouvir-me. Gostava também de ficar calada, por isso não fiz perguntas. Falei simplesmente.
Ficou profundamente curiosa com o António. Descrevi-o como um fora da lei, mas uma flor de pessoa.
Incentivei o seu desejo de saber. Ela precisava de procurar, de sentir-se no meio de nós.
Ela não poderia continuar ali, inacessível, sozinha. E eles, eles estavam pelados por conhecê-la, por dizer-lhe mais do que um simples bom dia, mas do que um simples e maroto sorriso.
Ela tem um sorriso maroto. Parece uma menina a esconder uma asneira que lhe deu muito prazer cometer, mas deve ser a mulher mais bem comportada que eu conheço.
Levantei-me e pedi-lhe a mão com um gesto.
-Anda! Vamos conhecê-los. 

1 de outubro de 2021

 


da meia noite às seis - patrícia reis




A Patrícia Reis tem uma escrita luminosa. Consegue abordar um tema, hoje em dia Universal, com um impacto ainda tão presente na nossa vida sem nos amargurar profundamente. 
O seu livro é uma ode à esperança no ser humano.

Um dos temas abordados e o mais presente é esta pandemia de Covid-19 que entrou dentro da casa de todos sem nos pedir licença. Os que foram infetados e que sofreram e morreram pela doença e aqueles que vão fugindo ao vírus mas não podem fugir à "bolha" criada em torno de tudo isto.
Quase dois anos depois dos primeiros casos terem sido noticiados, assistimos a uma escalada de mortes a nível mundial. A comunidades devastadas como se de uma guerra falássemos. 
Por curiosidade fui ver os números de mortes em Itália por este vírus, (131 mil) e comparando com a segunda guerra mundial (140 mil), deixa-nos no mínimo cabisbaixos.
Eu só posso lamentar. Vou lamentando diariamente, e eliminando da minha mente a profundidade da realidade, tal como fiz durante muito tempo em relação à segunda guerra mundial.
Depois deste tempo todo, acho que todos tentamos fazer o mesmo, e ao dia de hoje que escrevo esta resenha e que nas notícias ouvimos a palavra libertação, eu apenas olho para trás um pouco desastradamente e não sei muito bem como vou libertar-me. 
Será que posso? Será que realmente posso libertar-me?

Mas não é este o sentido que a Patrícia Reis quis dar a esta história. 
Ela quis dar-lhe uma ideia de esperança, uma ideia de pertença a um mundo que por mais que se desmorone, não morre.
Convenhamos, poderemos não caminhar para um café durante meses, poderemos não entrar dentro de uma discoteca durante anos, poderemos não visitar nem jantar com os nossos amigos, nem passar o Natal com a nossa família, mas nunca deixaremos de ser feitos de ternura e afinidade.
Este poder da ternura e da afinidade não se desvanece e é alimentado pelos estranhos que nos acompanham diariamente sem nos darmos conta. 

Patrícia Reis lê-se devagar, sem atropelos. Por volta da página 88, 90, tive de fechar o livro. Senti que se continuasse naquele momento, eu própria me desfazia na tristeza da Susana Ribeiro de Andrade. Aquela voz que era perfeita porque estava repleta de tristeza.

É o segundo livro que leio da Patrícia Reis, e sei que estou a perder muita coisa de todos os livros que ainda não li desta escritora.



25 de setembro de 2021

 



UM QUARTO SÓ MEU (2)




 

O que é o luxo?

Aqui neste pequeno mundo meu, neste espelho redondo e enorme, o meu sonho é desmedido e profundo.

Aqui, eu desejo Castelos e Princesas. Desejo que a música nunca acabe e eu possa dançar com o meu vestidinho de seda e os meus pés descalços.

As minhas orelhas furadas com duas bolinhas de oiro são o meu luxo. O meu cabelo liso e cor do Sol poente. Os meus olhos castanhos presos ao espelho meu.
Diz-me, espelho meu! Existirá alguém, mais bonita do que eu?
Eu não quero dizer bonita! Quero dizer luxuosa. Interessante. Um quê de vaidosa.

Os meus vestidos de seda. Os meus olhos de menina regila.

 Escuta-me! Tenho sonhos. Um dia quero ser mulher sem o ser. Não quero ser mulher, quero ser a mulher.

Tenho sonhos de liberdade de escolha. Eu posso escolher? Posso, não posso?
Eu sei que posso escolher e não sou fútil. Os meus luxos não são sedas, veludos e sapatos de salto alto.
Os meus sonhos abarcam tudo o que é teu. Porque tudo o que é teu, um dia será meu. O teu poder não é eterno, mas o meu quando chegar, será!

Não me julgues mais. Fizeste-o em toda a humanidade.
Julgaste-me, aniquilaste-me, alienaste-me conforme a tua vontade.

 O que és tu, sem mim? Onde está o teu discernimento? A tua amabilidade? O teu amor? Tudo isso cresce dentro do meu corpo.

Ora aí está o meu maior luxo! Querer ou não amar-te.