NADA - CARMEN LAFORET
Perturbador.
Esta palavra estranha, saí da minha boca assim que termino o livro.
Mário Vargas Llosa classifica-o de belo e terrível.
Fui atrás dele pelo sublime prefácio de Llosa e ao belo e terrível acrescento-lhe a palavra, perturbador.
Provavelmente estou a interpretar mal a narrativa, mas isso acontece-me com a mesma agilidade subtil que teimo em procurar os subterfúgios do que está lá.
E estou a titubear perante esta resenha que se mostra densa como a própria Andrea, a protagonista desta história.
Tento encontrar o pensamento de Andrea no meio das suas contradições humanas. Compreendo que a condição social, a sujidade onde é colocada, a fome a que subjuga e a loucura como vizinha do seu quarto, não lhe augura nada de bom. Andrea, órfã de pai e mãe chega a Barcelona diretamente para a rua de Aribau, a casa da sua avó, dos seus tios e tia. Nela encontrará um mundo interior devastado, talvez pela guerra que foi, pela ocupação franquista e pela desilusão contínua da realidade.
Nada, é um passeio percorrido por uma jovem de dezoito anos, não sei se demasiado ingénua ou demasiado pura. Talvez queira separar duas palavras que não são mais do que a extensão uma da outra.
A tia Angustias, carrega-a de conselhos e apelida-a de rebelde.
Não consigo encontrar-lhe nenhuma rebeldia, mas falamos de uma realidade pós segunda guerra mundial.
Aos conselhos da tia Angustia, Andrea faz orelhas moucas, não distingue o trio do joio das suas palavras por vezes duras, por vezes meigas.
É talvez a personagem mais ambivalente. Não consigo gostar dela, mas não a detesto pela totalidade.
Angustia não nos favorece com a sua presença por muito tempo e quando Andrea suspira de alívio pela sua partida, coloca no saco das coisas inúteis todos os seus discursos. Sem escolhas, sem seleção, sem diferenciar o bom do mau, o importante do supérfluo.
Uma das consequências dessa surdez é a fome.
A fome que Andrea suporta em quase todo aquele ano, não é apenas consequência da sua estranha forma de gerir as suas prioridades, mas de uma realidade demasiado dura.
Flores para a amiga e boas refeições assim que recebe a pensão, não duram o mês inteiro e Andrea é vítima da sua própria incapacidade em compreender o dinheiro.
Falta que parece ser reciproca em toda a casa da rua Aribau. A fome é recorrente, não um caso isolado.
Toda a envolvência na rua Aribau é desconcertante e as personagens que compõem a sua pobre família revestidas de algo mais do que a simples loucura.
Duvidei que Andrea chegasse ao fim, com a mesma lucidez com que ali entrou.
Contado na primeira pessoa, como um sussurro íntimo em que ela toca subtilmente na loucura. É aí, nesses pontos cruciais, que a história ganha a perceção do belo e terrível de que Llosa fala.
Será que Carmen Laforet o escreveu num sopro de arrebatamento? Num momento de genialidade? Ou remexeu ela própria dentro das suas próprias entranhas e arrebatou-as cá para fora?
Nada, é uma história de nada, banal. Desigualdade social, fome, sujidade, violência doméstica, submundo psicótico, patéticas cenas de uma realidade incompreensível.
A loucura domina, arranha a pele, mostra-se descaradamente. Atrás dela, da loucura, contextos completamente surrealistas. A violência que sobressaí, a incompreensão, a manipulação e pasme-se! a pureza de uma avó demasiado cansada e frágil, mas com força suficiente para abdicar do seu bocado de pão pelo outro. Todos eram bons, todos eram filhos, todos mereciam o amor.
Román é talvez o mestre no meio da orquestra difusa e já dispersa. Bom, mau, louco, são! Não sei dizer com toda a clareza. Não sei se é da música, se dos gestos, a voz, a falta de princípios. No egoísmo da morte, quando se percebeu subjugado e incapaz de voltar a subjugar.
Acreditei que Andrea, pelas suas privações, também ela sucumbiria ao teatro da loucura da qual era espectadora privilegiada.
Quando voltei a aperceber-me de que estava viva, tive a sensação de que acabava de subir do fundo de algum profundíssimo poço, do qual conservava a cavernosa sensação de alguns ecos na escuridão.
Não recordo o contexto em que este, Nada, me pareceu interessante. A opinião de Llosa foi sem dúvida a chama impulsionadora, mas esse reconhecimento imediato e assombroso do público à época da estreia, teve a sua parte de fascínio.
Não é um livro que se veja nas estantes das livrarias nem em destaque. Relembra que já terá de ser procurado e descoberto.
O título cru, em que tudo afirma e nada diz. A necessidade de acreditar que tudo é possível.
Que histórias banais e sem nexo podem estar enraizadas de algo mais apaixonante, e é no revestimento dessa narrativa que não é nada, que está genialmente, o tudo.