A Sombra do Vento - Carlos Ruiz Zafón
"Todos tememos um secreto escondido bajo llave em el ático del alma."
Já aqui tinha referido este livro e também tinha dito, que provavelmente voltaria a falar dele.
Assim é! Acabei a Sombra do Vento hoje depois de uma leitura viciante de 7 dias.
Abrandei o ritmo nos últimos dois dias, pois estava incapaz de separar-me dele.
Tenho como medida a paixão do livro pela capacidade que o mesmo me prende ás suas páginas e á mágoa que tenho em deixá-lo.
Este é sem dúvida um desses livros, que ficam colados á nossa pele, e aí vão prevalecer até aparecer outro tão viciante.
É dito nas críticas ao livro, que o mesmo é uma carta de amor á literatura.
A minha opinião é a mesma!
O Autor é riquíssimo nas referências que faz a outros escritores e a outras obras literárias, clássicos ou não.
A descrição da cidade de Barcelona é minuciosa e as personagens tem uma estrutura emocional e descritas de forma exemplar.
Até a vizinha da rua da Livraria dos "Sempere", até a porteira do prédio da Chapelaria "Fortuny".
Personagens que afloraram momentaneamente na história são descritas até á alma.
A trama, como lhe chamam. Gosto mais de referir história, pois é de histórias que os livros tratam, atravessa 2 gerações e cruza um passado com um presente que a certa altura parece que se repete.
Para situar, o livro atravessa os anos de 1919 a 1966. Um tempo lá longe para o nosso entendimento.
O que surpreende é que em cada capitulo o autor consegue espantar-me ao seguir por um caminho completamente diferente do que eu estava á espera.
A historia fala do amor aos livros. Primeiro ponto. A história fala do amor a uma mulher. Segundo ponto. A história fala de uma vida perdida como ser humano depois de perder esse amor. Terceiro ponto. A história fala de amizade entre os homens. Quarto ponto.
Pelo meio, como já referi o amor aos livros e ás histórias.
A guerra, o ódio, a avareza, a coragem e cobardia, e até o amor de um povo que neste caso é Espanhol, mas podia ser qualquer outro.
Qualquer outro se calhar não, que há por aí muito povo sem alma.
Atravessa a Segunda Guerra mundial mas aflora de uma forma muito lúcida a Guerra civil espanhola.
"A ideia de que a morte caminhasse a meu lado, com rosto humano e coração envenenado de ódio, vestindo uniforme ou gabardina, que fizesse fila no cinema, risse nos bares ou levasse as crianças a passear ao parque da Ciudadela de manhã e á tarde fizesse desaparecer alguém nas masmorras do Castelo de Montjuic, ou numa vala comum sem nome nem cerimonial, não me entrava na cabeça. dando voltas, ocorreu-me que talvez aquele universo de cartão-pedra que julgava ser bom não passasse de uma decoração. naqueles anos roubados, o fim da infância, como os comboios espanhóis, chegava quando menos se esperava."
A primeira tentação pós-guerra é tentar esquecer a guerra e isola-la em silêncios nas gerações futuras.
Tem personagens devastadoras como Núria Monfort, que vive uma vida de entrega.
"De tanto temer, esqueci-me que envelhecia, que a vida me passava ao lado, que sacrificara a minha juventude amando um homem destruído, sem alma, que não passava de um fantasma"
Como Fermín Torres, talvez uma das personagens mais completas. Fermín dizia muitas vezes "Tenha fé".
A personagem é apresentada de uma forma muito rica. Um mendigo que é resgatado das ruas, mas com uma sabedoria que aparenta ser de trazer por casa. Têm uma capacidade de ler o mundo e mais do que isso, ler as pessoas.
No fim do livro numa conversa entre ele e Daniel Sempere, a propósito de irem cumprir uma promessa que fizeram a um velho de um Lar de Idosos, temos este pequeno tesouro;
"- Fala como a Rocitto, Fermín.
-Não se ria, que são pessoas como ela que fazem deste mundo-cão um sítio que vale a pena visitar.
- As P...?
- Não. P... somos todos nós, mais tarde ou mais cedo. Eu digo as pessoas de bom coração."
Arrisco-me a definir Fermín, para além de tudo o mais como uma pessoa de bom coração.
Depois temos Julian Carax, uma incógnita em todo o livro. O livro gira á volta desta personagem e da sua vida. Na descoberta daquilo que lhe poderá ter acontecido.
Aquele que parece ser um homem frio e oportunista, um escritor de "beira de escada" pela pouca aprovação do público e das vendas, mais não é, que um homem só a quem lhe foi roubado o amor e por isso incapaz de voltar a amar. As edições dos seus livros tem muito poucas vendas, mas apesar disso a editora que os vende continua a fazê-lo, mas são poucos os que o lêem mas ficam viciados na sua escrita, nas suas histórias.
"... a arte de ler está a morrer muito devagar, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e que só encontramos nele o que temos dentro, que ao ler empregamos a mente e a alma, e que estes são bens cada dia mais caros."
O livro atravessa toda a sua vida, apesar de Julian não ser a personagem central. Atravessa também outras vidas, como Daniel Sempere, como Fermín Torres, e muitos mais.
Mas é esta personagem que faz girar a história e a sua vida é desfiada aos poucos. Chegamos ao fim do livro a saber tudo dele... o bom, mas também o mau. O amor, mas também a ganância, a destruição mas também a esperteza, a morte mas também o amparo.
Como alguém me disse um dia, a maioria de nós não somos brancos nem pretos, mas cinzentos! Uma mistura de que existe de bom e de mau na humanidade.
Tive anos de relutância quanto a este livro.
Foi editado pela primeira vez em 2001, e em Portugal já vai na 33ª edição. Ouvi vezes e vezes sem conta a Mariana Alvim da "RFM" a referir-se a esta livro como um dos melhores livros que leu. E eu relutante! Vezes e vezes sem conta!
Reconheço que ás vezes tenho grande dificuldade em ter fé, mas como dizia Gustavo Barceló, outra personagem do livro, "falar é de ignorantes, calar é de cobardes, ouvir é de sábios"
A Sombra do Vento é uma melodia aos nossos sentidos.
É por livros como este que eu gosto tanto de ler. Faço parte desta história.