30 de setembro de 2022

 


CAPITÃO ROSALIE - TIMOTHÉE DE FOMBELLE; ISABELLE ARSENAULT



"Tenho um segredo. Na escola, todos pensam que estou a sonhar. Mas eu sou um soldado em missão. Capitão Rosalie."

"Estou disfarçada de menina de cinco anos e meio, com os meus sapatos, o meu vestido e os meus cabelos ruivos. Não tenho capacete nem farda para não dar nas vistas. Fico ali, em silêncio. Para os mais velhos, sou a menina que se vem sentar ao fundo da sala e não faz nada o dia todo."

Rosalie era um soldado em missão em plena primeira guerra mundial; a sua missão? Espiar o inimigo.
Com cinco anos e meio ainda não tinha direito a um banco de escola, a um livro de leitura ou sequer a aprender a ler. Por isso desenhava escondida entre os casacos dos meninos da sala, silenciosa e espiava.
A narrativa caminha para o ponto intermédio; a guerra. O seu pai que está na guerra e que escreve à mãe. 
Rosalie não gosta quando a mãe lhe dita as cartas do pai. A guerra está longe da aldeia onde vivem e para Rosalie não passa de uma imagem difusa que sempre esteve presente na sua vida.
A missão de Rosalie é diferente de um simples soldado entrincheirado. O final da história deixou-me em lágrimas.

As imagens deste livro são impressionantes; a narrativa profunda. 
Há muito tempo que não comprava um livro infantil; a criança cá de casa já não se dá a ares de menina, mas foi tão bom gastar o domingo a percorrer as estantes de livros infantis da livraria Bertrand.
Rosalie conseguiu cumprir a sua missão; afinal a missão própria de um capitão de cinco anos e meio.




29 de setembro de 2022

 


A RELIGIÃO DOS LIVROS - CARLOS MARIA BOBONE



Não sou alfarrabista, nem tenho livraria; descobri nestas páginas que nem sou colecionadora, não posso sonhar em caracterizar-me por bibliófila, nem sequer aprendiz de feiticeira.

Mas tenho sonhos, e entre eles consta uma livraria à entrada de Óbidos; quem sabe, numa escola primária quase abandonada, em que as paredes exteriores poderiam ser grafitadas por alunos do ESTGAD com alusão ás personagens inesquecíveis dos livros; as personagens sou eu que as escolho, claro está! O sonho ainda é meu.

Da dita livraria ainda encontraria lugar para um pequeno café, com esplanada exterior, que espaço há de sobra, lançamento de livros, oficinas, e muitos livros independentes, pequenas editoras e livros em segunda mão.
Há! E uma sala única para literatura infantil.
Para cumprir o sonho teria que ganhar o euro milhões, mas faço parte daqueles que se esquecem de jogar; a sorte ao jogo também não faz parte dos meus predicados, por isso o jogo não será solução.

Ler este livro, foi reviver um pouco esse sonho; descobrir as subtilezas de uma profissão que é tão apaixonante se as pessoas que se dedicarem a ela forem apaixonantes, as subtilezas do mercado livreiro não são nenhum conto de fadas como a história da bela e do monstro, mas similares a qualquer profissão em Portugal; feita de astúcias, beleza e sonhos, muitos sonhos. 
Como diz o autor "É costume dizer-se que, enquanto houver leitores, o livro não morrerá. Para os livreiros, não é esta a única esperança. Porque enquanto houver livros, haverá muito mais do que leitores."

27 de setembro de 2022

 


RUMO AO FAROL - VIRGINIA WOOLF




São seis da tarde, tenho a janela aberta do meu quarto, os pássaros cantam nos beirais das janelas e nas cordas do meu estendal. Hoje o som do balidos das ovelhas não se ouviu; devem ter escolhido outro caminho para o pasto, há vários dias que só lhes oiço o silêncio.

Rumo ao Farol perde-se ainda em cima da minha secretária embora já tenha terminado a sua leitura à dias; ficará ainda mais algum tempo aqui, ficará porque preciso dele. Preciso de lhe sentir os passos e preciso da esperança, do ridículo, da subtileza, da beleza e da simplicidade de Mrs. Ramsay.
Mais do que Mrs. Ramsay, necessito de Virginia Woolf; da sua maneira única de escrever, da sua falta de confiança na realidade - também não a tenho - na sua abordagem com particular valorização na personagem, neste ser humano vivo, pulsante e controverso a quem a alma também de si humana se remexe e desfaz. 
Ela; Virginia Woolf, compreendeu essa alma difusa que se distancia da realidade e questiona-a melhor do que ninguém.
A subtileza com que dilui a condição da mulher; o que dela se espera em comparação ao que se espera do homem. Aquele irmão que cresceu e está ao nosso lado está sujeito a outras pressões e a outras divisões dos sentidos. 
A mulher que nunca casou, talvez porque era bastante fria, distante e independente; e todos esses adjetivos tornavam-se um rasto de qualquer coisa, algo único que agrada a outras mulheres que a conseguem compreender, mas que não agradará decerto a nenhum homem.

Virginia Woolf desenha a vida de Mr. Ramsay e Mrs. Ramsay como um casal perfeito aos olhos alheios; ele professor, escritor, filosofo de relativo sucesso; ela mulher, mãe de oito filhos e extremamente bela.
Ele, por vezes, impulsivo e desagradável, ela, contida, amante, mulher, serena e respeitada, enfim, mais do que tudo, amada. 
O livro é uma ode à palavra amada; Mrs. Ramsay tem uma magnitude espontânea perante todos e todos a amam. É dificil compreender como uma mulher com este estatuto consegue ser subjugada pelo marido; o seu temperamento difuso, a sua falta de humanidade, os seus gestos bruscos subjugavam-na e ela sente-se pequenina e jamais consegue dizer-lhe o que sente; nem sequer a palavra amor. 
É intuitivo a maneira como ela, perante ele, se cala. Fica o silêncio, cavo e profundo de alguém que se sente acuada pelo próprio amor, profundamente marcada pela complexidade das coisas.

Aqui vai um exemplo; "... dos dois, era ele infinitamente o mais importante, e aquilo que Mrs. Ramsay dava ao mundo, em confronto com aquilo que o marido dava, era desprezível; mas, uma vez mais, era também o resto - o não ser capaz de lhe dizer a verdade, o ter receio, por exemplo, de lhe falar do telhado da estufa e da despesa que levaria..."  

Há alguns anos, se alguém me perguntasse qual ou quais os meus escritores favoritos eu calava-me e procurava nas minhas estantes; para mim, na maioria das vezes o último livro lido era um exemplo.
Hoje, posso dizer que Virginia Woolf faz parte de um grupo de escritoras mulheres de quem eu tudo quero ler; a obra, a vida, os diários.
Virginia Woolf é garantidamente uma referência e uma paixão; é também uma inspiração. 


25 de setembro de 2022

 


O BOSQUE DA NOITE - DJUNA BARNES



Vou fazer uma opinião curta sobre este livro. 
Não me desagradou, nada disso significa esta expressão; apenas sinto que terei de relê-lo continuamente para expressar verdadeiramente aquilo que sinto e aquilo que li.
Optei por carregá-lo comigo nos meus curtos cinco dias de férias, na alegria que o devoraria a ele e a mais uns quantos; dei por mim, absorta nas suas páginas de leitura lenta; o livro assim o exige, fechada num quarto com a janela aberta enquanto lá fora chovia miúdo. Agradeci a Deus um tempo tão inóspito e despropositado, as vizinhas conversavam no patamar das suas casas e o seu som difuso chegava até mim no andar de cima.
Se me pedirem para eu definir o ócio, direi sem sobra de dúvida que estar à janela a ler um livro e  ouvir as vizinhas emprestadas em terra antiga é uma definição de ócio muito bem conseguida.

Quanto ao "O Bosque da Noite", como é dito na introdução de T.S.Eliot, esta é uma prosa inteiramente viva e vai exigir de mim mais do que eu estive preparada para lhe dar; assim terei que voltar e voltar e quem sabe voltar, até tomar como certa esta ambiguidade, fatalidade simbolizada na linguagem. 


23 de setembro de 2022

 


A MORTE EM VENEZA - THOMAS MANN




Uma novela simples e delicada sobre os sentimentos fascinantes que um escritor de renome, sente por um adolescente numa estância de férias em Veneza.
Ainda no seguimento do tratado de Sêneca, foi com alguma surpresa que encontrei na minha leitura seguinte, semelhanças à ameaça referida por Sêneca.
Aschenbach é um escritor reconhecido no seu meio, viúvo, que dedica o seu tempo à escrita; dono de um quotidiano férreo ao qual não se permite, ele próprio, ao ócio. 
Teria Aschenbach tempo para si? Seria ele capaz de subjugar a sua realidade quotidiana a uma verdade mais profunda e duradoura?
Foi nesta perspetiva e após cruzar-se com uma personagem desconhecida na rua que Aschenbach colocou dúvidas de si para si e decidiu tirar umas férias.
Em Veneza descobriu o rosto da beleza consagrada em Tadzio, um adolescente que partilhava o mesmo hotel.

Os dias passam e Aschenbach sobre a influência filosófica, subjuga-se à relação com o belo e compreende-se.
O desejo e a virtude gravitam na sensibilidade com que este escritor dedica nos olhares tardios que dedica a Tadzio. É contudo nobre todos os seus sentimentos, apenas espirituosos que se limitam a contemplar o belo e o fugazmente eterno; a imagem dele, idolatrando aquilo que vê, subjugando os seus próprios sentimentos de homem ímpio e limitando-se à veneração. 
Estas paixões acontecem porque Aschenbach deixou de ser um homem ocupado, como diria Sêneca; olhou para o lado, dispôs-se a compreender o meio envolvente à sua volta no vagar dos dias, ocioso de si e dos outros, disponível para o mundo como um todo.
São estes sentimentos que ele dedica ao longe, apenas na observação a um adolescente de deslumbrante beleza que permite que ele se veja e ás suas próprias emoções.

Uma novela de rara beleza e delicadeza; uma narrativa simples. Belíssimo.  


21 de setembro de 2022

 


SOBRE A BREVIDADE DA VIDA - SÊNECA



Um tratado breve de um filósofo, dramaturgo, político e escritor. Sêneca viveu na era antes de Cristo, a sua morte data de 65 d.C, e é considerado um expoente intelectual de Roma no início da Era Cristã.

Existe uma curta descrição da sua vida no início deste livro bastante interessante para quem a Era Grega e Romana e a filosofia tem interesse.
Apesar de suscitar-me bastante curiosidade este período e a própria filosofia em si, peguei neste livro com a leveza dos despreocupados, ciente que leria algo desatualizado e meramente informativo para os dias de hoje.
Enganei-me profundamente; o tratado é uma ode belíssima sobre a consciência da brevidade da nossa vida.
"A vida é curta, a arte é longa. A ocasião, fugidia. A esperança, falaz. E o julgamento, difícil.", já dizia Hipócrates, e Sêneca pega nesta sublime frase para proclamar o seu pequeno tratado.

"Pequena é a parte da vida que vivemos". Pois todo o restante não é vida, mas somente tempo.
O que difere a vida de tempo?
Provavelmente essa definição obtusa é também distinta de cada um de nós.
Acredito que o meu tempo, e a parte mínima de vida que lhe dedico é bem diferente do conceito de tempo e vida do meu próprio parceiro, da minha filha, da minha mãe ou do meu pai.
Sêneca fala da importância de se cuidar de nós mesmos, mas o paradoxo existencial remete-nos para a necessidade de cuidarmos de quem nos está próximo em abnegação do eu pessoal e intransmissível. 
A minha mãe ensinou-me a dar; a aceitar e a agradecer o que se recebe. Nunca a reclamar a parte de mim mesma que me pertence por direito.

Como tratado filosófico ele leva-nos a tentar filosofar; deparamo-nos com questões de fundo que não tem resposta coletiva. Seremos melhores como um todo, ou como uma parte, como individuo?
Saberemos cuidar de nós sem prejudicar ou negligenciar os outros, ou os outros nunca deveriam fazer parte da equação da nossa própria vida?
O espirito humano é cego, diz Sêneca e coloca umas perguntas íntimas que patinamos em responder;
"Perscruta a tua memória: quando atingiste um objetivo? Quantas vezes o dia transcorreu como o planejado? Quando usaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste uma boa aparência, o espirito tranquilo? Quantas obras fizeste para ti com um tempo tão longo? Quantos não esbanjaram a tua vida sem que notasses o que estavas perdendo? O quanto da tua existência não foi retirado pelos sofrimentos sem necessidade, tolos contentamentos, paixões ávidas, conversas inúteis, e quão pouco te restou do que era teu? Compreenderás que morres cedo."

Sêneca desliga-se do homem ocupado, mas não é o homem ocupado que as sociedades dão primazia? 
Na perspetiva final acredito que deveremos fazer contas, tomar iniciativas para combater a celeridade do tempo. Demorar-nos no essência da nossa própria representação; decidir se queremos vencer as nossas paixões subjugando a ocupação diária de todo o nosso tempo, ou pelo contrário, espicaçar os nossos demónios, ter consciência do nosso ócio; informar o nosso corpo que somos donos do nosso tempo, vergarmo-nos como um tributo a uma rainha, á assimilação do eu. Esse pronome pessoal desenraivado do nosso próprio ser.

Também podemos não pensar em nada disto!       

19 de setembro de 2022

 


MANIFESTO PELA LEITURA - IRENE VALLEJO



Irene Vallejo ficou irresistível desde o seu amado "O Infinito num Junco".
Talvez um dos melhores livros de não-ficção que li nos últimos tempos e que jamais esquecerei.

Por isso não foi dificil agarrar-me a este manifesto pela leitura que a causa, Ler é Essencial distribui gratuitamente.

É tão pequenino que cabe no nosso bolso das calças, mas é acima de tudo um manifesto de memória;
Memória que perpetua a necessidade de mudança;
Memória para compreendermos que a leitura faz de todos nós um pouco menos ignorantes do que ontem;
Memória para relembrar que a literatura é, será e foi um farol salvador de muitas almas no meio de tempestades;
Memória para conjugar a nossa fragilidade e que a linguagem, a escrita e a literatura permitiu-nos sonhar com o inacreditável;
Memória para nos sentirmos na pele dos outros, experimentarmos a empatia, desconfiarmos do egoísmo e esperar que nos aconteça o melhor que nos pode acontecer; ser todas as pessoas e não ser nenhuma.
Memória que podemos enriquecer diariamente, em águas distantes ou tão perto de casa, através da intimidade das palavras, da convivência e as competências sociais que um livro nos dá;
Memória que a vida é injusta e a boa literatura é um desafio ao que existe, aos nossos desejos e aos nossos sentimentos de posse.
Memória de que muitas vezes, é nas páginas de um livro que encontramos os sentimentos confusos que sobressaltam a nossa real vida, escarrapachados aí, como se o escritor nos virasse ao contrário e nos apontasse o dedo! É para ti que escrevo.
Memória de que o nosso fracasso escolar é basicamente, um fracasso linguístico.
Memória de que a leitura cura.

Numa época convulsa feita de pressas, de produtos completos, prontos a digerir, o livro não é um ato passivo; é a liberdade acima de tudo, a verdade mastigada sem demora, as ideias que nos libertam e devoram.