23 de junho de 2022

 


CADERNOS DE LANZAROTE I - JOSÉ SARAMAGO



A arte não avança, move-se.

Neste pequeno diário, Saramago brinda-nos com esta frase no primeiro dia.
O que transpira destas páginas é um Saramago, ilustre Nobel da Literatura, similar ao comum dos seres humanos; transborda humanidade, perspetiva, compreensão e não esquece. 
O bom e o mau também. E porque não? 
Dentro do seu casulo sofre com as injustiças, ironias e cinismo que o rodeia. Não esquece os desagravos sofridos e gosta, adora todos os momentos de êxtase, de gloria e triunfo.
É claro o luxo e o desvelo que ele coloca nessas vitórias, tornou-se claramente presente.
Sempre muito exposto, sempre muito crítico, neste livro ainda sofre com a loucura associada ao Evangelho Segundo Jesus Cristo. (Confesso que quando li o livro, muitos anos depois da sua edição, custou-me reconhecer toda essa celeuma.)
Tenho curiosidade em ler os diários seguintes para compreender se essa insistência se esbate ou não.
Não que o condene. Nada o crítico.
Por muita glória associada, foi deveras cansativo ler o que o escritor passou por escrever um livro. As perguntas, as cartas recriminatórias, a maneira austera com que Portugal encarou toda esta situação. 

Saramago foi um sugador de prémios, mas foi renegado em Portugal.
Há quem lhe dissesse que ele teve sorte, que lhe deu fama e fortuna; pelas suas palavras ao longo deste livro, eu acredito que ele trocaria toda essa fama e fortuna pela alegria de se sentir em Portugal.
Neste livro, algo me desilude. Não Saramago, talvez a minha expectativa fosse outra. O livro centra-se no quotidiano do escritor e no ano de 1993. 
Ao quotidiano a que o livro diz respeito, assistimos a viagens, congressos, feiras do livro, entregas de prémios mas a escrita esbate-se. Não sei se o sei interesse fosse precisamente não falar dela; os outros diários, quando os ler, logo o confirmarão.
Por vezes, pareceu-me um pouco maçador e senti um cansaço mutuo, talvez porque eu queria ler sobre escrita.

 

17 de junho de 2022

 


A ORIGEM - GRAÇA PINA MORAIS



Naquela casa, aparentemente serena, uma corrente tumultuosa rugia, rugia em cada canto, em cada gesto, em cada palavra.

De uma devastação primária e gigantesca. Surpreende pela atmosfera matriarcal e poética de toda a narrativa.
O que sobressaí são personagens femininas fortíssimas. 
Todas elas, Constança, Maria da Anunciação, a criada Ana Joaquina, Catinha e a inesquecível Maria Clara. 
Terá de ser lido à luz do seu tempo. Retrata uma época diferente da que vivemos e o tédio presente nas personagens deve ser interpretado como a solidão própria de almas ligadas à terra e ao destino familiar, que não é correspondido, nem sequer aceite, nos dias de hoje.
Toda aquela raça extingue-se em si própria e o que os une, o que os faz resistir, são os laços de sangue inquebrantáveis da Casa.
Alimentam-se uns dos outros, com um amor arcaico e despretensioso. O sublime desta narrativa é a maneira poética como assistimos à subjugação de um amor diferente que ignora e elimina todas as outras formas de amar.
Resistem à morte da mãe primeiro e do pai no fim. As três meninas e o único rapaz, não conseguem dividir a terra, não conseguem desassociarem-se a si próprios. 
Volto a dizer, tem de ser lido à luz do seu tempo. Tenho grande dificuldade em expor tudo o que este livro me deu. 

É um caminho tortuoso e lento de uma realidade tão difusa que surpreende pela riqueza.
Aquela família cujo sobrenome desconhecemos é apelidada de reservada, séria e tímida; fecha-se dentro de si, amam-se desmesuradamente porque o amor, aquela espécie de amor tem outra tonalidade despojada de desejo e lassidão. 
As suas convicções são feitas de outro tom; o dinheiro nada vale, meu filho! Só vale a terra! A terra é sempre a terra!
As mulheres, essas, foram feitas para dar e não para receber, mesmo assim, a continuação dessa vida vazia e sem significado teve uma força monstruosa e mantém-nas ali.
Em nenhum momento, a possibilidade de transformação e abandono aflora na alma delas.
Constança, a mais velha, dedicada ao trabalho e ao apoio ao pai. Quando este morreu, estranhamente mantém a sua posição de matriarca em detrimento de um Moisés ávido de glória, fama e dinheiro.
Maria Clara, a mais nova, amava-o profundamente, mas via-o lucidamente. Sentia-lhe a ambição e a estranheza, a crueldade com os outros, a monstruosidade que crescia. Apenas com uma fala, relegou-o para a posição secundária.
Maria Clara é pois, a personagem mais interessante de toda a narrativa. Descrita de uma beleza extrema e de um misticismo coerente, as suas decisões e opiniões são lei.
É dura com Moisés quando o coloca fora de casa. A única vez que a vimos tomar uma decisão extrema. É quase santa aos olhos dos outros. É-o também aos olhos de Moisés.
Relembro a confissão do padre quando a conheceu, da aura de humildade e generosidade.
O seu espaço era provido de paz, a ele os outros agarravam-se. Maria Clara era a força onde influía todas as mentalidade e certezas. 
Por ela renunciavam, nela o amor sobressaía e os defeitos eram aplacados. Esse efeito era claro em homens como Moisés, de temperamento cínico e desviante, redimiam-se na sua presença.
Foi o mais penalizado pela ausência, quando Maria Clara o colocou fora de casa.  
Moisés gerou um filho na criada, Maria Clara sabia que ele era um monstro que a mataria aos poucos e escolheu penalizar-se a si própria com a ausência do irmão amado. Acredito que esta cena é discutível, que as razões da decisão dela possam ser interpretadas de inúmeras maneiras, mas ela tinha um poder sobre os outros, mesmo não sendo a matriarca, mas esse poder não a tornava altiva, mas profundamente honesta e justa.
É esta aura quase irreal que Maria Clara mantém até ao fim da vida, uma personagem que diz que lhe falta qualquer coisa que a põe sempre do lado de fora da vida.  
Não será a condição de mulher isso mesmo, o lado de fora da vida? Aquele lado in concreto e imaterial em que a perceção do mundo é feito de pensamento e de emoções em detrimento da realidade?
Esta personagem tem um valor inestimável, a sua morte deixa um buraco enorme, confesso que tive de interromper a leitura para assimilar aquele desaparecimento que a colocava definitivamente fora da vida.

João, filho de Moisés cresce no meio daquele matriarcado e é o tédio em pessoa.
É uma personagem tão vazia que arrepia. O que vive mais para si mesmo como lhe profetiza a tia Maria Clara, aquele que ela escolheu para proteger os outros, o primeiro a quebrar aquela união de laços que se fundem neles próprios.
Ele personifica a alteração dos tempos. Pela primeira vez a morte não une, mas desfragmenta. Com João não há continuação.
Ele não está ligado à terra ou sequer à Casa e a tia Maria Clara já não está. Ele perde a capacidade de a encontrar naqueles recantos, ele é egoísta, ele já não acredita naquele caminho.
Acredito que nem todos tenham a mesma opinião sobre João, acho que nem a escritora o tinha. Bastante valorizado na narrativa é apresentado como alguém que se procura continuamente, mas essa procura é tão desprovida de sentido e tão egocêntrica que magoa.
Existe uma diferença considerável entre ele e o seu pai. Moisés tem plena consciência do seu ego e da sua monstruosidade, sabe que a sua vida é um logro e o amor da irmã o único que dava sentido à vida.
Ele sabe tudo isso. Sabe onde a sua loucura se fecha, onde está a sua ambição é desmedida, conhece-se a si mesmo; João não! Vive no limbo da sua transcendência, move-se pela própria grandiosidade feita de paixões momentâneas e fugazes. Considera-se, por vezes, iluminado, outras, desesperado. A sua índole é tão boa como a dos outros, por vezes pura e benevolente. A sua pintura é o retrato puro da adolescência.
Só então o rapaz teve consciência do sofrimento que infligia a outro ser humano, e isso horrorizou-o. Aquela figurinha fulminada, sobre o cais de pedra da estação, lá longe, nas montanhas, iria entrepor-se, pela vida fora, entre ele e o amor.

Vai diretamente para a minha estante dos favoritos.   


12 de junho de 2022

 


BONJOUR TRISTESSE - FRANÇOISE SAGAN




A primeira leitura foi há vinte anos. 
O que senti na altura foi tão pouco que releguei o livro para a estante dos esquecidos. Na escolha desses esquecidos, resgatei-o recentemente para nova releitura. Não o faço com frequência, mas nada recordava da narrativa e pensei; e porque não? será que ele é assim tão insignificante como pareceu?
A idade parece subjetiva, a autora tinha dezoito anos quando escreveu este livro, e ele diz-me mais hoje, do que quando eu tinha, mais ou menos essa idade. Confuso? Nem sempre foi fácil...

Bonjour Tristesse é um sussurrar na nossa alma na voz de Cécile. Quase que a definia como doce, mas Cécile, é acima de tudo, inconstante. Talvez por isso, tenha sido tão dificil para mim, há vinte anos reconhecer a minha própria inconstância. Incapaz conotei-a como pouco. 
O que deslumbra neste livro, hoje, é essa possibilidade. Assumir a fragilidade da minha própria juventude, que à sua maneira estará sempre associada a instabilidade, presunção e desorientação.
Debatia-me durante horas no meu quarto para saber se o medo, a hostilidade que Anne me inspirava presentemente, se justificavam, ou se eu não passava duma rapariguinha egoísta e mimada, disposta a uma falsa dependência.

Cécile era uma rapariga de dezassete anos que vivia num mundo de excessos. Órfã de mãe, com um pai boémio que só privara nos últimos dois anos, conheceu com ele o significado do vazio, da excentricidade das relações fúteis e do álcool. 
A viverem em Paris, partem para a Costa do Mediterrâneo para semanas de férias com a amante do pai.
Anne Larsen junta-se a eles, mas Anne é o oposto dos dois e é nessa dissemelhança que Cécile se desoriente. Porquê?
Anne representa o fim de algo que Cécile não tem capacidade de abdicar, contudo, é precisamente esse algo tão subjetivo que carrega a rapariguinha de dúvidas. 
É aqui que sobressaí a sua inconstância, e foi aqui, que há vinte anos, inconstante como ela, não lhe soube dar valor, nem compreender o significado do que ela dizia.
Anne fascinava-a. O mundo de serenidade e paz que Anne oferecia-lhe, era-lhe tão dolorosamente belo que Cécile teve medo dele. 
A fuga a esse mundo teve consequência graves para todos eles e Cécile descobriu que a manipulação, os ideais retorcidos e a busca do prazer, são faces da mesma moeda.
Este relato sussurrado de Cécile, nada mais é, do que o grito da solidão e das más decisões. Não sou eu que o digo, é ela que o assume. 

É uma história crua, como descortinador da alma e retrato da palavra tristeza, é simplesmente perfeito. 







10 de junho de 2022

 


TRILOGIA - JON FOSSE



Porque os sentidos também precisam de ser acarinhados, e a propósito deste livro, quero referir o toque.
Se algum dia o tiverem na mão, compreendem do que falo. Esta capa cor de vinho, aveludada, grita ao toque com carícia. 
Quanto ao livro propriamente dito é composto por três novelas que se enlaçam entre si. Uma parábola de inspiração bíblica sobre o amor, crime, castigo e a redenção. 
Nos últimos tempos, as minhas leituras tem sido lentas. Uma alteração no metabolismo ou a necessidade de reter com outra perspetiva as próprias narrativas. 
Considero-me uma má leitora, carregada de impulsividade e pressa. Os textos sofrem com isso, eu mais do que eles, pois não retenho a escrita na sua essência. 
Tenho uma necessidade da história, e sacrifico o interesse pela escrita propriamente dita. 
Trilogia de Jon Fosse, caí desgarrada, novamente lida com pressa e impulsividade, num domingo pachorrento em que a chuva ameaçava mas não vinha e o vento ralhava, sabe-se lá porquê e para quê. 

Desconfiei de início. As palavras não estavam no sítio onde normalmente estão e eu aconcheguei-me no sofá, suspirei aborrecida e pensei; este vai dar trabalho.
Deixei-me estar, por vezes, basta adaptarmo-nos às regras de Jon Fosse. Tirando a irritação do diz ela e diz ele constante, é dificil pousar o livro.
Vígilia fala de amor e crime; Os Sonhos de Olav de castigo;  Fadiga de redenção.
A poesia da narrativa é sublime e simples. Cheguei mesmo a perguntar-me; será que é só preciso isto? tão pouco e tanto ao mesmo tempo? Esta simplicidade de texto, por vezes tão desconexo, frágil e profundo.
Esta familiaridade com a história bíblica do nascimento de Jesus, reproduzida como uma pintura sobre a outra, separa-se por uma linha ténue. As escolhas.
Talvez, talvez, a necessidade seja subverter deus nas nossas próprias escolhas e assim, encontrar uma expiação entre o que somos e o que não conseguimos ser.
Aida e Asle são ingénuos e puros à sua maneira. A solidão que os atinge suportam-na, com palavras não ditas, gestos e escolhas de cada um. Estão um para o outro, não pelo amor que os une, mas pelo mito do destino. 
Não posso complicar o que está por si só, simples.
Acreditei que não, mas agora não é só o toque da capa que me agrada.




8 de junho de 2022

 


HISTÓRIA BREVE DA HUMANIDADE - SAPIENS - YUVAL NOAH HARARI



A humanidade é um mito, esse mito já é um Deus.
Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?

Na leitura sou bastante influenciável. 
Por isso não é com surpresa que admiro a minha reação ao ler este livro. 
O escritor, qual historiador aplicado, não pretende dar opiniões ou sequer levantar fundamentalismos, mas, apenas e só, apresentar factos que à luz do humano distraído como eu, passariam ao lado.
A breve lição sobre a humanidade é lúcida e se eu acreditava em deuses, mitos, ideais políticos, religiosos ou até de consciência, descubro que em 70 000 mil anos, o homem, nada mais fez que encaminhar-se para revoluções que o poderão destruir.
Yuval Harari, corre o fio, um a seguir ao outro, sem se mostrar disponível para nos condenar ou absolver. Essa perspetiva cabe a cada um de nós.
Se querem alguém que vos encaminhe para um pensamento único sobre a evolução humana, por favor, não leiam este livro. Se quiserem certezas, por favor, não o leiam também. Ele não pretende dar nenhuma resposta, mas apresenta todas as variáveis históricas do mito Sapiens.

Para as consciências humanas os factos históricos são inúmeros e enormes. 
Para um deus que chegou tão longe, vivemos constantemente inadaptados ao topo do ecossistema. Escolhemos, demos saltos apressados, suplantamos a inteligência e a natureza, moldamos os outros seres às nossas escolhas, destruímos quem se diferenciava. 
Muitas calamidades históricas, desde guerras mortíferas e catástrofes ecológicas resultaram deste salto demasiado apressado.
Discutível? Sim. Poucas questões serão unanimes ao longa desta História Breve da Humanidade.
O que foi que nos distinguiu de todos os outros, animais, ecossistema? Porquê sobressaímos e sobrevivemos quando eramos mais frágeis do que dos demais?
A linguagem. A cooperação social é a chave para a nossa sobrevivência e reprodução.
Tagarelar, composta por mexericos, falar sobre coisas ficcionais, está enraizado na linguagem do Sapiens e é o que nos diferencia de todos os outros.
Criamos crenças e mitos próprios apenas da imaginação e cooperamos assim, em larga escala.
A crença coletiva é tão forte que a história cobriu-se de revoluções evolutivas em que o único denominador comum era a relação humana.
Ideias, imagens e fantasias, torna-nos ligeiramente menos que deuses e até aos dias de hoje, os passos seguintes foram poucos, lentos os primeiros e a medo, a uma velocidade alucinante os últimos.
Sem juízos de valor, as evoluções não são boas nem más. Creio que toda a narrativa reflete isso mesmo.
Apenas deslumbramos com mais clareza no fim destas páginas, mas continuamos disponíveis para as nossos próprias ideologias.
A minha relação com a biologia e a ciência é muito distante, com a história não, mas confesso que não é o tipo de livro ao qual dou preferência.
Esta compra foi um pequeno estímulo e a sua leitura continuamente adiada. 
A religião, a política, capitalismo, o próprio liberalismo e o dinheiro.
Sapiens significa morte e mito, e os ciclos renovam-se continuamente. O sistema de escrita é uma descoberta tão importante como o fogo. 
Com ela, os seres humanos alteraram a maneira como pensavam e viam o mundo.
Existem temas sensíveis e muito importantes que o escritor expõem e leva-nos a pensar; destaco a escravatura, a domesticação dos animais da quinta e a sua desumanização, o conceito de felicidade, e não menos importante, o papel dado à mulher, ou o não papel, para ser mais correta.
Destaco assim todo o capítulo oito, não querendo menosprezar tudo o resto.
Muito conta este livro.
O meu exemplar está repleto de notas e outras coisinhas mais que povoam os livros que remexem com o meu pensamento.
Mas o que mais posso dizer?
É muito importante a sua leitura, essencial para formar as nossas próprias ideias.
A humanidade é um mito, assente na linguagem e nas relações sociais. Este livro, tem como principal objetivo fomentar o nosso raciocínio.
Por isso, é ler!