A ORIGEM - GRAÇA PINA MORAIS
Naquela casa, aparentemente serena, uma corrente tumultuosa rugia, rugia em cada canto, em cada gesto, em cada palavra.
De uma devastação primária e gigantesca. Surpreende pela atmosfera matriarcal e poética de toda a narrativa.
O que sobressaí são personagens femininas fortíssimas.
Todas elas, Constança, Maria da Anunciação, a criada Ana Joaquina, Catinha e a inesquecível Maria Clara.
Terá de ser lido à luz do seu tempo. Retrata uma época diferente da que vivemos e o tédio presente nas personagens deve ser interpretado como a solidão própria de almas ligadas à terra e ao destino familiar, que não é correspondido, nem sequer aceite, nos dias de hoje.
Toda aquela raça extingue-se em si própria e o que os une, o que os faz resistir, são os laços de sangue inquebrantáveis da Casa.
Alimentam-se uns dos outros, com um amor arcaico e despretensioso. O sublime desta narrativa é a maneira poética como assistimos à subjugação de um amor diferente que ignora e elimina todas as outras formas de amar.
Resistem à morte da mãe primeiro e do pai no fim. As três meninas e o único rapaz, não conseguem dividir a terra, não conseguem desassociarem-se a si próprios.
Volto a dizer, tem de ser lido à luz do seu tempo. Tenho grande dificuldade em expor tudo o que este livro me deu.
É um caminho tortuoso e lento de uma realidade tão difusa que surpreende pela riqueza.
Aquela família cujo sobrenome desconhecemos é apelidada de reservada, séria e tímida; fecha-se dentro de si, amam-se desmesuradamente porque o amor, aquela espécie de amor tem outra tonalidade despojada de desejo e lassidão.
As suas convicções são feitas de outro tom; o dinheiro nada vale, meu filho! Só vale a terra! A terra é sempre a terra!
As mulheres, essas, foram feitas para dar e não para receber, mesmo assim, a continuação dessa vida vazia e sem significado teve uma força monstruosa e mantém-nas ali.
Em nenhum momento, a possibilidade de transformação e abandono aflora na alma delas.
Constança, a mais velha, dedicada ao trabalho e ao apoio ao pai. Quando este morreu, estranhamente mantém a sua posição de matriarca em detrimento de um Moisés ávido de glória, fama e dinheiro.
Maria Clara, a mais nova, amava-o profundamente, mas via-o lucidamente. Sentia-lhe a ambição e a estranheza, a crueldade com os outros, a monstruosidade que crescia. Apenas com uma fala, relegou-o para a posição secundária.
Maria Clara é pois, a personagem mais interessante de toda a narrativa. Descrita de uma beleza extrema e de um misticismo coerente, as suas decisões e opiniões são lei.
É dura com Moisés quando o coloca fora de casa. A única vez que a vimos tomar uma decisão extrema. É quase santa aos olhos dos outros. É-o também aos olhos de Moisés.
Relembro a confissão do padre quando a conheceu, da aura de humildade e generosidade.
O seu espaço era provido de paz, a ele os outros agarravam-se. Maria Clara era a força onde influía todas as mentalidade e certezas.
Por ela renunciavam, nela o amor sobressaía e os defeitos eram aplacados. Esse efeito era claro em homens como Moisés, de temperamento cínico e desviante, redimiam-se na sua presença.
Foi o mais penalizado pela ausência, quando Maria Clara o colocou fora de casa.
Moisés gerou um filho na criada, Maria Clara sabia que ele era um monstro que a mataria aos poucos e escolheu penalizar-se a si própria com a ausência do irmão amado. Acredito que esta cena é discutível, que as razões da decisão dela possam ser interpretadas de inúmeras maneiras, mas ela tinha um poder sobre os outros, mesmo não sendo a matriarca, mas esse poder não a tornava altiva, mas profundamente honesta e justa.
É esta aura quase irreal que Maria Clara mantém até ao fim da vida, uma personagem que diz que lhe falta qualquer coisa que a põe sempre do lado de fora da vida.
Não será a condição de mulher isso mesmo, o lado de fora da vida? Aquele lado in concreto e imaterial em que a perceção do mundo é feito de pensamento e de emoções em detrimento da realidade?
Esta personagem tem um valor inestimável, a sua morte deixa um buraco enorme, confesso que tive de interromper a leitura para assimilar aquele desaparecimento que a colocava definitivamente fora da vida.
João, filho de Moisés cresce no meio daquele matriarcado e é o tédio em pessoa.
É uma personagem tão vazia que arrepia. O que vive mais para si mesmo como lhe profetiza a tia Maria Clara, aquele que ela escolheu para proteger os outros, o primeiro a quebrar aquela união de laços que se fundem neles próprios.
Ele personifica a alteração dos tempos. Pela primeira vez a morte não une, mas desfragmenta. Com João não há continuação.
Ele não está ligado à terra ou sequer à Casa e a tia Maria Clara já não está. Ele perde a capacidade de a encontrar naqueles recantos, ele é egoísta, ele já não acredita naquele caminho.
Acredito que nem todos tenham a mesma opinião sobre João, acho que nem a escritora o tinha. Bastante valorizado na narrativa é apresentado como alguém que se procura continuamente, mas essa procura é tão desprovida de sentido e tão egocêntrica que magoa.
Existe uma diferença considerável entre ele e o seu pai. Moisés tem plena consciência do seu ego e da sua monstruosidade, sabe que a sua vida é um logro e o amor da irmã o único que dava sentido à vida.
Ele sabe tudo isso. Sabe onde a sua loucura se fecha, onde está a sua ambição é desmedida, conhece-se a si mesmo; João não! Vive no limbo da sua transcendência, move-se pela própria grandiosidade feita de paixões momentâneas e fugazes. Considera-se, por vezes, iluminado, outras, desesperado. A sua índole é tão boa como a dos outros, por vezes pura e benevolente. A sua pintura é o retrato puro da adolescência.
Só então o rapaz teve consciência do sofrimento que infligia a outro ser humano, e isso horrorizou-o. Aquela figurinha fulminada, sobre o cais de pedra da estação, lá longe, nas montanhas, iria entrepor-se, pela vida fora, entre ele e o amor.
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