O VÍCIO DOS LIVROS - AFONSO CRUZ
Para mim um dos melhores escritores portugueses da actualidade.
Felizmente tenho a minha própria lista de autores portugueses que vou acarinhando e alimentando sempre que publicam. E não! Não acho que tenham menos valor que escritores estrangeiros que vendem milhares de cópias e são traduzidos por todo o mundo.
Quando este livro saiu nas bancas fiquei um pouco "chateada", com ele. Queria um livro, livro. Uma história. Sei lá! Queria uma personagem. Outra coisa. Amuei e retirei-o da minha lista de compras.
"Literacidades", um Bookstragam que circula no Instagram, fez então um live com o autor que vi mais tarde e devolveu-me a vontade de o ler.
E que leitura! Que leitura!! Um pedaço de céu.
Logo nas primeira folhas Afonso Cruz fala de uma coisa curiosa. Passo a citar;
"Há leitores que anotam os livros, que sublinham, que arrancam páginas [escrever nas margens, por exemplo, parece-me uma espécie de tatuagem de que envergonharei no futuro, quando voltar - ou se voltar - a encontrar-me com ele]"
Não arranco páginas e raramente dobro ou marco a página onde fiquei com um dobrar de folha. Uso sempre separadores, os que vem com o livro que mantenho no livros, ou se não tiverem, eu tenho um de cortiça que comprei em Óbidos, velho e gasto e outro que comprei em Castelo de Vide.
Mas sublinho e escrevo nas margens. Sublinho muito. Tenho livros povoados da escrita e sublinhados até mais não. Que me perdoem os livros que eu não lhes faço mal. Mas preciso disso e não me sinto envergonhada. Adoro pegar num livro de alguém que tenha feito o mesmo e ler o que escreveu. O que acho disto e daqui. É outra vida para além da própria vida do livro.
É o meu coração a sentir. É a minha ligação com eles. É o melhor que eu consigo.
Afonso Cruz aflora muitos assuntos e de forma inesquecível.
O livro é pequeno e leve. Acho que vai caber eternamente dentro da minha mochila.
A luz dos velhos. A sua beleza interior e as histórias que eles tem para nos contar. A sua "luz por dentro".
O poder das personagens. O poder para o autor e para o leitor. "De facto, a solidez de uma personagem bem construída consegue arrebatar-nos, sejamos seus criadores ou seus leitores, e de algum modo transformar-nos."
A receita média da leitura que nos prolonga a vida. Não sabiam? Eu também não.
Está documentado por diversos estudos "pessoas com mais de 50 anos, adianta que ler 30 minutos por dia fará viver, em média, mais dois anos. Se não for por prazer de ler, talvez devamos ler pela nossa saúde."
As voltas que damos para ler mais um bocadinho, para prolongar as páginas do nosso livro. "Um leitor, muitas vezes, tenta encontrar o caminho mais lento entre dois pontos."
É o levantar mais cedo, o deitar mais tarde. A série da TV que não se vê.
A leitura traz liberdade, traz cultura. Evita que sejamos néscio. Pequeninos!
Compreendemos os outros. Aprendemos a estar na pele deles.
Nas detestáveis notas de rodapé encontrei duas frases de outros autores inesquecíveis;
"Se um livro não nos magoa e esfaqueia não tem interesse." Kafka
"Os livros amados misturam-se no pão que comes." Christian Bobin
Aliás, o livro está pejado de frases inolvidáveis e também este está carregado de lápis que sublinhou e sublinhou. E eu ainda não acabei. Já li partes vezes e vezes sem conta.
Acabei a primeira leitura com um Post´in e já tenho três.
"As coisas tendem a ficar vazias se são repetidas mecanicamente e florescem quando lhe damos atenção."
É o que está a acontecer. Eu estou a dar-lhe muita atenção porque quero encontrar o meu caminho ali.
Não quero ser uma presença fugaz e friável. Preciso de sentir.
Também eu gostaria de acordar o mundo.
O primeiro Post´in que coloquei no livro foi na pág.81. Fi-lo pela frase de Christian Bobin do livro "Um vestido curto de festa"
"Como rezar. Os livros são como rosários de tinta negra, cada conta rolando entre os dedos, palavra após palavra. E o que é realmente rezar? É silenciar-se. Afastar-se de si no silêncio."
Encontrei Deus nas páginas de um livro e nunca nas contas de um rosário ou nos ditos de um oração. Tenho o vergonhoso hábito de perder-me ou adormecer.
Mas encontrei-o a Ele, quando leio livros de teologia ou religião e moral. E muitos desses livros esperam pacientemente por mim porque não tem pressa. E eu também não.
"Quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz." É uma frase de Jules Renard que o autor transcreve para o livro.
Eu, também tenho um pouquinho de ansiedade e desejo. Ser feliz é tão abstrato, mas existem livros que nos sugam, nos privam da nossa própria vida, nos alteram como seres humanos.
Guiam os nossos caminhos e tentam fazer de nós pessoas melhores. Quero acreditar que estou a conseguir.
Li algures, não neste livro, que devemos sempre escrever sobre aquilo que vivemos ou sabemos. Até essa altura eu não acreditava no poder da palavra e da escrita para todos.
Para mim, por exemplo. Não tinha experiências, não vivia, com um dia-a-dia vulgar, não viajava, não comunicava.
Quando abri o leque foi interessante ver que podemos não ter nada disso, mas se soubermos ouvir, e se escutarmos, temos uma interminável capacidade de criar histórias e personagens.
"Há grandes viagens que se deitam todos os dias em nossa casas e sonham sozinhas. A essas viagens fundamentais, as mais belas de todas, chamamos simplesmente disponibilidade para ouvir."
E quem não gostaria de ser uma personagem de um livro? Seria eterna.
É a obra para além da morte, é a garantia de que somos mais do que simplesmente isto.
Como diz Afonso Cruz "Somos pó, como nos garantiu Job, mas também podemos ser tinta. Aos escrever, passamos os nossos pensamentos para outro corpo, como para uma folha de papel, por exemplo. Transferimos a alma para papel, e o mais notável é que é bem possível que essa alma, num corpo tão frágil como uma folha, nos sobreviva."
Quando eu for grande, queria tanto ser como o Afonso Cruz!