31 de março de 2022

 



DORES - MARIA TERESA HORTA



Quando a vida abandona-nos, a solução será abandonar a vida.
Tocante este "Dores" de Maria Teresa Horta. 
Cheguei-me pela primeira vez a esta escritora. Compreendi que ainda tenho muito que aprender. Que ainda existem muitos bons escritores para descobrir e muitos deles na minha língua.
Ainda no seguimento da resenha anterior, nada como abrir a vista e olhar um pouco para os lados. Esticar um pouco o pescoço e procurar o que está para além da montra do expositor.
Sim! O expositor das livrarias por estes dias iludem-nos.


Esta é a história de Judite. Um conto comovente de uma menina que não é estranha nem esquisita, nem louca, mas está rodeada de vergonha.
Uma menina cuja mãe abandonou, o pai a ignora, a avó materna amou mas morreu, e a madrasta materna destruirá.
O que fazemos quando não temos ninguém á nossa beira? Quando o pequeno mundo que conhecemos porque somos também assim pequenos se desmancha e desfaz primitivamente.
Judite. Tenho o peito inundado desta órfã da vida, desta infância inacabada.
Quase que a vejo caminhar torcida por aqueles campos, na beira daquele rio, na esperança da desesperança. 
Aceito-lhe o vazio imaculado, até o destino.

"Quero escrever livros, quando for grande quero escrever livros." 




26 de março de 2022

 


DIA DO LIVRO PORTUGUÊS 




Hoje é o dia do Livro Português.
Criado pela SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), com o objetivo de salientar a importância do livro e da língua portuguesa.
Foi em 26 de Março de 1487 que o primeiro livro foi impresso em Portugal. "Pentateuco", em hebraico. Sanuel Gacom, judeu, nas suas oficinas em Vila-a-dentro, em Faro que o imprimiu.
O primeiro livro português a ser impresso teve de esperar dez anos. Produzido pelo primeiro impressor luso, Rodrigo Alvares, com o título "Constituições que fez o Senhor Dom Diogo de Sousa, Bispo do Porto" - eloquente o título -, corria o ano de 1497.

Agora é a minha vez de divagar. Perdoem-me o incomodo mas eu vou caminhar ao acaso.
A minha estante encontra com frequência o livro Português. Tenho variações. Como tudo o que é instável e amador das suas curiosidades. Acredito que será assim com quase todos.
Lembro-me que o meu primeiro vício foi Eça de Queiroz. Vou referir a leitura como um vício, porque no meu caso especifico, observo-me pelo canto do olho e vejo vício. 
Esta tendência para Eça de Queiroz seria mal interpretada duas ou três décadas atrás, mas felizmente faço parte da geração que está na transição da existência do nada e da perspetiva do tudo. 
O livro que comprei com o meu enxuto primogénito ordenado é de um autor português. Miguel Esteves Cardoso.
Depois deles, o vício seguinte a ocupar as madrugadas responde pelo nome, António Lobo Antunes. 
Mas eu sou inconstante e zelosa e migrei com o tempo para outros caminhos.
Os livros de autores Portugueses foram preteridos por escritores como Paul Auster, Gabriel Garcia Márquez, Milan Kundera, Susana Tamaro, Luís Sepúlveda, Lars Gustafsson, Camilo José Cela, Graham Greene e John Steinbeck.
Depois de todos estes, confesso, li muita coisa sem substância, vazia, parca.
Sei que atravessei uma fase sem grande seleção e lia tudo o que agarrava. 

Quando eu acreditei que já não tinha muita coisa para aprender, descobri que sim, a fantasia tem substâncias reveladoras e a arrogância combate-se com a renúncia.
Por isso, desisti de bastar-me como completa. Aqueles que eu não tinha compreendido em certa medida e em certo tempo, eram dignos da minha responsabilidade.
Miguel Torga, José Saramago e Fernando Pessoa. A ordem não é aleatória. Não desprestigia um em relação aos outros. A ordem limita-se á sua entrada na minha vida.
O que eles trouxeram de substancialmente novo? Começo pela base deles próprios. "A Criação do Mundo" de Miguel Torga, "Pequenas Memórias" de José Saramago e "O Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa.
Todos são eles próprios. Os mesmos, a parte inteira. Seguir-lhes a estrada foi como curvar-me à essência da escrita.
Acredito que todos nós temos um livro que nos encontra. 
Não falo daquele livro ou livros que descobrimos e que nos arrebatam a alma, nos deixam o peito aconchegado, a mente liberta. Desses, a minha estante sorri agradecida. 
Não! Falo de algo maior. Aquele que nos encontrou. O livro maldito.
Têm?
"O Livro do Desassossego" encontrou-me depois de anos e anos de maldição. Continua a ser uma maldição, mas agora é o oposto da outra.
Se de início, na fugacidade das leituras, na pressa das desfolhar eu não atinava para além das primeiras páginas, há pouco mais de dois anos ele foi a chama que descobriu o que eu era. Onde eu estava, e qual o caminho a percorrer. 
Um livro português, um autor português. 

Há poucos dias li uma entrevista de Nuno Nepomuceno em que ele diz que o autor português é visto pelas editoras como pouco viável. 
Levantei os olhos da revista e olhei a minha estante. Procurei os autores portugueses e tentei perceber qual o grau da minha aposta neles.
Compreendi que esse estudo não deve ser feito comigo. Eu não faço parte dos 61% de portugueses que não leram no ano anterior. 
Nem faço parte da população que não investe, abdica, esbanja o seu dinheiro em livros.  
Aceito a justificação do preço final do livro em Portugal, mas o cigarro também é caro e vende.
Acredito que seja uma questão cultural. Uma questão profunda que as editoras, o estado e a sociedade no seu geral não tem pachorra para mudar. 
Continuamos a esquecer que livros são arte e conhecimento. Mas que importância poderá ter isso!
Divago, divago, divago! E desvio-me.
Agora eu pergunto?
Alguém que só leia um livro por ano. Tipo, aquele livrinho que compram quando vão de férias, vai escolher um livro Português?
Decerto que é uma pergunta que todas as editoras fazem quando a perspetiva é mesmo essa. Um livro por ano! 
Perante um autor português e um Best Seller internacional que já é referido mundialmente quem eles escolhem? Quem vocês escolheriam?
Eu não leio um livro por ano - tenho muito orgulho nisso -, por isso volto a olhar a minha estante.
A lista é enorme e não apanha todos;
Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, José Saramago, Miguel Torga, Sónia Louro, Ricardo Fonseca Mota, Nuno Camarneiro, David Machado, Patrícia Reis, Maria Isaac, Isabel Rio Novo, Rute Simões Ribeiro, Lénia Rufino, Inês Pedrosa, David Mourão Ferreira, Joel Neto, Valter Hugo Mãe, João Tordo, Afonso Cruz, Mário de Carvalho, José Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso, Isabel Machado, Gabriel Magalhães, José Tolentino Mendonça, Clara Pinto Correia, Abel Neves, João Aguiar, Aquilino Ribeiro, Sophia Mello Andresen.
Devem ter dado conta, se leram com atenção, que falta aqui uma faixa profunda. Sei que ainda não os pesquei, mas eu não tenho pressa, não estou a fazer conta de ir a lado nenhum.
Norberto Morais, Judite de Carvalho, Natália Correia, Virgílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, Ana Margarida de Carvalho e muitos, muitos outros. Os poetas ficam sempre para o fim.

Não gosto de comparações. As comparações são uma treta. Não se compara coisas diferentes.
Mas a literatura é um Universo tão rico como outro qualquer. E se deixarmos de adquirir o óbvio e a moda?
É dificil? Claro que é. 
Basta entrar numa livraria e compreender que ela está construída para encontrarmos o que eles querem e não aquilo que nós queremos.
Talvez a ideia seja essa mesma, deixarmos de caminhar como um todo, mas como um individuo que se propõe abrir a alma ao desconhecido, como quando abre um livro. Nele, o livro, encontramos acima de tudo a liberdade para sermos quem quisermos. Isso é o conhecimento, isso é a arte.
Até que ponto cada um de nós quer entrar dentro dela. 


25 de março de 2022

 


SKIFF - "A DOENÇA" 

TEXTO INÉDITO


Ela é quente e sadia, e toma-me nos seus braços. Vigia-me com os seus passos sorrateiros, como se da sua atenção desmesurada dependesse a salvação do mundo. Tem um olhar compenetrado de menina atenta.
Eu, pouco colo lhe dou. Desleixo-me com os seus olhares, desfaço em nada as suas necessidades, finjo que não a vejo ou sinto.
Ela enrosca a sua cabeça no meu peito, descansa os olhos nos meus joelhos, encosta o seu nariz ao meu nariz.  
Por vezes, também eu encosto os meus cotovelos ao parapeito da janela, curvo-me ao seu nível e encontro o seu olhar diante do meu.
Somos idênticas nessa cor de olhos de um profundo azul escuro que se materializa e sossega com coisa nenhuma.
A Skiff é uma menina bem comportada que promove o sossego. Tem o sangue apaziguador dos justos e ama-me.
Nem sempre é fácil compreender e aceitar que nos amam. 
Skiff ama-me sem condições, eu amo-a com muitas exigências.
Não lhe dediquei grandes esperanças quando entrou nesta casa. Apliquei-lhe a derrota à partida, ainda o deslumbramento da meta era inalcançável.
Ela, por sua vez, deve ter achado que eu era um Deus. Deus não! Talvez um anjo. Porventura em queda. Ela não deu conta.
E como se quebra a ligação? Como se explica que não podemos estar, que a possibilidade de ausência é grande e que não dominamos a vida, o espaço, a matéria, o sopro...
Skiff miou toda a noite à porta do quarto. A inexistência doía-lhe.
Não foi abandono, nem sempre temos consciência. Skiff não poderia saber que o Sol não brilha sempre, que a pele amarela, que o coração pode bater mais devagarinho, que o nosso cheiro pode condensar, que a respiração pode mudar de camada. Que a inexistência pode ser uma palavra permanente, definitiva.
Acredito que a ofensa roeu-lhe o espírito. O pânico inicial foi substituído por uma indiferença da realidade. Se eu não estava, ela não estava.
Dormia enroscada no sofá. Tapava-se com a manta e escondia a cabeça. O mundo não existia. A janela deixou de ser um entretenimento. Também a janela deixou de existir.
Ele sossegou-a no seu colo. Nas noites frias, nas noites ventosas. Ele chamava-a para a nossa cama e ela recusava entrar no quarto.
Ele acabava no sofá com a Skiff ao colo. Ela miava, ele puxava-lhe ao de leve a orelha. Ela chorava e gemia numa clara atitude de não resignação, ele apertava-a nos seus braços.
Como podemos não amar quem nos ama?
Ter-se-ia desintegrado, dissolvido na estreiteza dos dias constantes e vazios.
Só o meu regresso a trouxe de volta. 


23 de março de 2022

 


AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA - DULCE MARIA CARDOSO



"Sinto-me perdida nesta irrealidade. Alguém sabe dizer-me, por favor, como faço para ir para casa?"

Este livro reúne algumas crónicas de Maria Dulce Cardoso publicadas na Visão.
É uma escritora que eu admiro. O seu "Eliete" está entre os meus livros preferidos. Vivo com a esperança que aquele (livro I) queira dizer que a "Eliete" tem continuação.
As crónicas cirandam entre a sua infância, a sua vida em África, o seu retorno, os seus sentimentos a esta palavra e condição de retornada.
Visivelmente marcada em tudo o que escreve.

A maioria de nós, seres humanos que cá andamos, ainda não compreendeu que as oportunidades de cada um são desfasadas.
Que fechar a porta da casa, deixar lá tudo o que se construiu e voltar, fugir, para outro lugar qualquer, com a roupa do corpo e pouco mais, ainda é uma realidade permanente.
Nos dias que correm, assustadoramente constante.
Que existem vidas, cuja própria existência está suspensa.
Sair dessa realidade e construir outra camada da própria vida tem o lastro de qualquer terramoto.
É apenas um exercício de imaginação aquilo que faço depois de ler estas crónicas da Dulce. A prática de exercer com a mente aquilo que eu não alcanço com o corpo e com o meu espirito. Sim! Sou uma menina privilegiada. Quantos de nós seremos assim, cheio de benefícios sem nos darmos conta.
Contudo, é isso que nos constrói, não a nossa vida pautada por uma linha de serenidade e despreendimento. 
Nunca aprendi com o beneficio, com a sorte, com a benesse. As contrariedades tem sempre uma lição de estudo e se conseguirmos separar as camadas encontraremos uma conclusão.
Desculpem-me este desvio do tema principal, por vezes perco-me.

Dulce Maria Cardoso é daquelas escritoras em que vale a pena ler. Peguem em tudo, que é bom.
As edições da Tinta da China dão-lhe um toque sofisticado. 
As cores que se misturam, o cuidado das cartolinas de cor no inicio e no fim. Um toque de arte para além da arte. Já falei sobre isso ontem.
E os seus desabafos de menina irrequieta, os seus medos de menina crescida, os dias do Covid-19 explicados sorrateiramente. O retorno. E o amor. 

"Apesar do sofrimento, a beleza deste episódio noturno entranhou-se em mim e estas imagens passaram a habitar-me como se as tivesse presenciado. A beleza é indiferente à dor. Por isso vigio-a."
 

22 de março de 2022

 


UMA NOITE CAIU UMA ESTRELA - DAVID MACHADO




Há pouco tempo conversei com alguém que me disse que um livro é acima de tudo uma obra de arte.
Concordo! Como obra de arte o seu produto final deve ser trabalhado, deve ser bonito aos olhos e ao toque.
Este "Uma noite caiu uma estrela" de David Machado é assim. Belíssimo ao olhar, perfeito ao toque.
Vou contar-vos a história deste livro dentro desta casa.
Uma das sua primeiras aparições públicas foi no Fólio em Óbidos. Nesse Verão os dias na praia eram a ler e reler "O Tubarão na Banheira", do mesmo escritor.
Não vos vou contar as vezes que reli essa história porque já perdi a conta à muito. É um livro amado. Quando vimos o programa do Fólio e que David Machado estaria disponível para uma secção de autógrafos, lá fomos nós com " O Tubarão na Banheira" debaixo do braço direitas à tenda. 
Eu tinha lido "Índice Médio de Felicidade" naquela altura e confesso que também eu levei o meu livrinho debaixo do braço.
David Machado é tímido, confesso que sou exageradamente mais tímida e a conversa foi curta mas sincera.
"Uma noite caiu uma estrela" já se afigurava ali ao lado. Eu folhei-o todo e ainda esbocei uma vontade receosa de o colocar debaixo do braço, mas a pequena abanou a cabeça que não.
Eu sei o que ela pensou. Demasiado preto. O que me atraiu a mim, desviou-a a ela do objetivo. Demasiado preto não me serve.
Não veio comigo naquele ano, mas veio no seguinte quando o preto já não era uma cor em demasia para a pequena que crescia numa estrada diferente. Há certas realidades que nos transformam independentemente da idade.





Agora a história;
Com a premissa do fundo preto, conta a história de uma menino chamado Óscar que tem medo de quase tudo.
David Machado explora muito bem o tema "medo", nos seus livros infantis e eles encaixaram nos degraus do medo da pequenina cá de casa. 
Hoje, a pequenina já não é tão pequenina assim à vista desarmada, mas este é um livro que ela guarda de uma maneira especial.
Talvez porque apesar do medo, Óscar também é feito de curiosidade e também é feito de imaginação pura. 
Óscar quer o que todos nós queremos. Importância, reconhecimento, dominar os seus sentimentos, fazer os outros felizes, ser feliz.
Como se faz isso?
Quando compreendeu que tinha nas mãos um problema, teve medo.
Mas quem não tem medo? E o que poderá ser mais forte do que o medo?
Tudo o que temos cá dentro. 



21 de março de 2022

 


POETI DE LISBONA



Desisti de dizer-vos de onde este livro nasce.
Sei que só o encontrei em duas livrarias que são o espelho uma da outra; Livraria Ler Devagar em Óbidos, Livraria Ler Devagar no LX Factory em Lisboa. - Não se limitem como eu, encontrarão o livro em outras livrarias - Curiosamente, calco a ruas de Óbidos com uma frequência aterradora (a proximidade a ela, deixo para mais tarde.), mas foi no LX Factory que o livro agarrou-se às minhas mãos e veio comigo para casa.

O italiano faz parte do meu universo nos últimos tempos (outra conversa para mais tarde) e saber que tenho aqui, nos meus dedos, poemas de Fernando Pessoa ou Florbela Espanca correctamente traduzidos para italiano. É perfeito!

Queiramos ou não, encontramos sempre alguma coisa que nos faz falta. Tropeçamos distraidamente, absorvidos noutra coisa qualquer. Como um presente de Deus. Como se ele nos dissesse. Vá, vai lá... estás com medo de quê!

Dia Mundial da Poesia, hoje... deixo-vos algo que encontrei e que me faz falta. Deixou de fazer;  



A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA - FERNANDO PESSOA


A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Jã não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar 
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim. 


10 de março de 2022

 


RIO DO ESQUECIMENTO - ISABEL RIO NOVO




Contemplo principalmente a escrita. A sua melodia.
Quase sem diálogos o texto é corrido e saltita entre gerações.
Atravessa o século dezanove e o século vinte e lidamos com várias personagens. Nem boas nem más. Apenas humanas.
Quase no fim, uma expressão interessantíssima.
"Mas convenhamos, a virtude é monótona. A arte quer-se em terrenos mais acidentados."

O perfil ambíguo de personagens como Miguel Augusto, Ema, Nicolau Sommersen, leva-nos a um emaranhado de sensações. Teresa Augusto não provoca mais do que pena ou apatia, Guilhermina quase insignificante.
Deixei para Maria Adelaide Clarange o sentimento completo. Aquela personagem que remata. Que muito tinha de estoico, benigno, sereno, amoroso, virtuoso. 
Aquela cuja vida não foi desbaratada por nenhuma razão fútil e que se manteve livre até ao fim.

Confesso que fiquei surpreendida com o seu segredo, com a sua culpa. Tão humana e brutal. 
Admito que sorri pelo canto dos lábios ante a perspetiva de tornar esta personagem ainda mais perfeita do que já era. Convenhamos a virtude é monótona. A ambiguidade do ser é o que o torna interessante, e nenhum de nós que pisamos a terra somos perfeitamente perfeitos. Um Miguel Augusto que se vinga, uma Ema profundamente gasta, um Nicolau Sommersen perdido na sua própria alma. Ali, não habita virtude porque essa camada é mais opaca.

Gostei muito da história e gostei muito da escrita.
Vale a pena seguir Isabel Rio Novo. E agora que já comecei, tenciono não ficar por aqui.
Romance finalista do Prémio Leya.

"O amor tem sempre o que quer que seja de crime; ou uma pessoa ama como quem perde, ou não sente realmente o amor."

"O verdadeiro, em romances, nem sempre é, pois, o belo, e raríssimas vezes é o bom."


8 de março de 2022

 


AS MARGENS E A ESCRITA - ELENA FERRANTE


Bem, bem, bem... O que dizer!
Em tempos tentei ler "A Amiga Genial" e não consegui.
Senti-me desiludida comigo própria pela minha fraca capacidade. Compreendi que o erro era meu.
Desde então tenho fingido que Elena Ferrante não está em lado nenhum. Tenho tentado, mas é dificil conseguir. Eu explico porquê!
Algo em Elena Ferrante fascina-me. O seu anonimato. A prova de que o livro e a história sobrevive ao seu próprio escritor e à possível ideia que qualquer um pode ter dela.
São duas fases da mesma moeda, para compreender a sua escrita é importante conhecer o ser que a habita e de Ferrante não lhe conhecemos nem o rosto. Mas será que é mesmo necessário conhecer?
Este fascínio por algo tão bem conseguido faz-me segui-la e muito tenho lido sobre os seus livros. Sobre eles, apenas sobre eles. Leio as noticias, opiniões, publicações em revistas da especialidade. 
Nunca prestei tanto interesse a quem não passei das primeiras páginas de uma única tentativa de leitura.

"As Margens da Escrita" editado já este ano pela Relógio d´Água, caí como uma necessidade nos dias que correm. Uma necessidade minha, confesso.
E este livrinho pequenino do género ensaio, a circular com alguma (relativa) frequência nesta casa é uma verdadeira pérola.
Quem leu "Um Quarto só seu" de Virginia Woolf  não deixará de lhe encontrar estreitezas.
Cem anos separam a escrita de Virginia Woolf da escrita de Elena Ferrante, mas a essência, as razões obscuras que dividem o "escrevinhar" de um homem do "escrevinhar" de uma mulher ainda é tema.
"Tendo como certo que entre pena e pluma, tanto no masculino como no feminino, existe uma espécie de descompensação congénita, eis que stampa me dizia que a pluma feminina, precisamente por ser imprevista dentro da língua escrita de tradição masculina, tinha de fazer um esforço enorme, muito corajoso - tanto há cinco séculos como hoje -, para violar o <usado jogo> e adotar <astro e estilo>"

Digo-vos! É um livro interessantíssimo e profundamente despretensioso. "Diz as coisas como elas são." tem o seu quê de simplicidade na técnica. Dizer as coisas como elas são, sem malabarismos ou floreados, sem pretensões de segundo ou terceiro grau, não nos limita mas liberta. 
O meu exemplar está uma lástima, sublinhado, marcado, ponto de notas.
Vou dar-me a mim mesma uma segunda oportunidade. Vou tentar ser uma menina bem-comportada. Vou ler Elena Ferrante.

"Para mim, a escrita verdadeira é isto: não um gesto elegante, estudado, mas um ato convulso."

"Diz as coisas como elas são."

"Construía personagens tomando como modelos pessoas que havia conhecido e que conhecia. Tomava nota de gestos, e de maneiras de falar, tal como os via e ouvia."

"... insisto: não se narra sem os empurrões dos outros; este velho princípio manteve-se bem firme -, numa espécie de solipsismo, sem o qual, porém, antevia para mim, autora, apenas o regresso a histórias não autênticas."

"Devemos renunciar, durante um longo período de tempo, à distinção entre quem faz só livros medianos e quem fabrica universos verbais inevitáveis."

"Escrever, pelo contrário, é entrar, em cada uma das vezes, num cemitério interminável, onde cada sepultura está à espera de ser profanada. Escrever é tomar assento entre tudo aquilo que já foi escrito...e fazer, nos limites da sua vorticosa e congestionada individualidade, por sua vez, escrita. Escrever é apropriar-se de tudo quanto já foi escrito e aprender, devagarinho, a gastar aquela enorme fortuna."

"Por isso, quando falo do meu eu que escreve, deveria logo acrescentar que estou a falar do meu eu que leu, mesmo quando se tratou de uma leitura distraída, a mais enganadora de todas as leituras. E deveria sublinhar que cada livro lido trazia dentro de si uma multidão de outras escritas que conscientemente ou inadvertidamente assimilei." 


4 de março de 2022

 



SKIFF - " O BANHO"

TEXTO INÉDITO




Dizem que os gatos não tomam banho. Que tem aversão a água e que se lavam com a própria língua.
Eu não consigo imaginar que um gato se sinta limpo depois de passar com a sua própria língua pelas suas partes íntimas.
E água sempre houve e os animais andam todos à chuva. Eles ainda pertencem à natureza com a sua definição muito própria das verdadeiras necessidades do espírito e da essência. Nós, humanos já perdemos o cheiro a terra, a mato e estamos longe do âmago da existência.
Nunca fui apreciadora de gatos. Nunca descortinei os seus comportamentos. Nunca dei conta se eles  abrigam-se nalgum canto protegido sempre que chove.
Na realidade nunca vi tantos animais, domésticos ou livres como vejo por estes dias.
Lisboa esconde os seus animais e eu não fui feita para os observar. Aí está, eles estão demasiado próximos da natureza, eu, ao contrário deles, irremediavelmente longe desse domínio.
Depois existe a limpeza. A necessidade de sabão, da roupa lavada, do pó chantageado a um canto.
Mas eu já não estou em Lisboa. Há um par de anos que o barulho de fundo são o balido das ovelhas, o ladrar dos cães e os gatos nos parapeitos da janela.
Skiff aceitou o primeiro banho com a resignação dos justos.
A água escorria preta de tanta terra. Admito que senti pena dela quando a tirei do banho e a limpei com a toalha. Foi uma vã tentativa de a poupar ao frenético lamber de pelo que a sua língua fazia sem cessar. 
Tremia tanto que liguei o secador para enxugar-lhe o pelo. 
Ela, estranhamente, não teve medo. O seu olhar era de audácia fascinada.
Acho que ela não queria acreditar no que ninguém acreditava. 
Sim! Os gatos tomam banho e gostam.
A sua disposição para esta empreitada varia conforme o humor. Descubro-lhe um humor refinado. Uma azia com o Universo permanente. 
São estados de alma próprios de quem se sente solitário mesmo entre multidões.
O banho é-lhe útil, fundamental e ela aperfeiçoa-o.
Com tiques de princesa, coloca as patas dianteiras nas torneiras da banheira e deixa-se estar. A água como repuxo que escorre pelo seu lombo, quente, macia, vital.
Aquela tentativa frenética de se limpar com a própria língua como fez na primeira vez vai dando lugar a uma languidez pelo secador. Os olhos fecham-se, o calor artificial provoca-lhe estados de embriaguez.
Mia com frequência e roça-se nas minhas pernas. Chama-me com movimentos lânguidos do seu corpo até à porta da casa de banho.
-Então Skiff! Outro banho?
O seu miado é profundo, meloso, eterno, aperfeiçoado. 
Ela é impenetrável e intimamente diabólica.
Ela é a minha Skiff do banho turco.     


2 de março de 2022

 


ENSAIO SOBRE O DEVER (OU A MANIFESTAÇÃO DA VONTADE) 
RUTE SIMÕES RIBEIRO




Uma história fora da caixa que foi beber ao lago das palavras de José Saramago.
Amaldiçoei-me por ainda não ter lido livros como "O Ensaio sobre a Cegueira" e abençoei este livro que gentilmente parou nas minhas mãos.
Finalista do Prémio Leya em 2015, com o título inicial de "Os Cegos e os Surdos", esta é uma história ensurdecedora para ler nos dias de hoje.
Revela uma verdade assustadora mas ao mesmo tempo redentora.
O que é o sacrifício e o que é o dever. Até que ponto as manifestações de vontade se sobrepõem à linha temporal do coletivo. Existimos como indivíduos dentro de uma comunidade, ou devemos posicionarmos como um todo.
Qual a nossa capacidade de tomar decisões certas? E o que serão efetivamente decisões certas?
Podemos tratá-lo como uma questão de perspetiva. A perspetiva do individuo contra o ambiente que o rodeia.
Há outra ideia subjacente neste emaranhado de perda de sentidos. 
A realidade não está tão distante assim, fazemos mesmo uso de todos os nossos sentidos? 
Que menos na maioria dos casos é mais e isso está implícito na capacidade de cada um em lidar com a perda e transformá-la em algo maior e não em algo menor.
Acaba por ser o reconhecimento de que a falta só nos pode dar capacidade para algo intenso.
José Tolentino Mendonça diz que, e passo a citar; "passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar"
Temos a barriguinha cheia e continuamos a abocanhar.
Neste belo livro de Rute Simões Ribeiro até somos capazes de compreender que ver não é uma aptidão exclusiva de quem tem visão. 
E tu? Se tiveres de escolher apenas um dos teus cinco sentidos? Qual escolherias?
Quando é dado a escolher um dos cinco sentidos, o povo, instruído ou analfabeto não pegou em armas nem levantou a mão em sinal de protesto. Não se revoltou contra governantes nem contra o Senhor. Nem mesmo com aquela entidade obscura que assim decidiu. Seja ela qual for.
Em vez disso, procurou um sentido que os orientasse para o dia de amanhã. Fez o que a sua consciência e a sua convicção lhe exigia. 
É pois também um livro que retrata algo de muito importante para os seres humanos. As suas crenças, as suas fidelidades. Aquilo que acreditam como certo, correto. O bem e o mal. Algo pelo qual não cedemos, nem por modas, nem por ganâncias, nem por desespero. Algo que faz do ser humano íntegro, verdadeiro.
Dever, vontade, sentido, amor.
Esta questão do bem e do mal é pois, para mim, muito subjetiva. Reconheço o cinzento no meio dela. Reconheço que existem zonas que não se podem rotular como bem ou mal, e que as suas nuances persistem. Admito!
Mas vamos acautelar as linhas que dividem o bem do cinzento e o cinzento do mal.    
Os anos passam, em 2015 ou em 2022, quem sabe até no início do século ou nos outros séculos anteriores. A vida corre, as realidades mudam, mas a integridade do ser humano não. 
Essa não é feita de desculpas, mas de dever, vontade, sentido e amor.

Leiam por favor!



1 de março de 2022

 


MRS.DALLOWAY - VIRGINIA WOOLF


A expectativa era grande quando peguei neste livro.
Virginia Woolf despertou-me a curiosidade com o seu "Um quarto só para si".
Isto em Setembro do ano passado e eu ainda a falar deste seu pequeno e profundo ensaio.
Confesso que quando iniciei esta leitura senti-me um pouco perdida e fechei o livro logo depois, com 28 páginas lidas.

Tinha um misto esponjoso que se dividia entre "não era bem isto que eu estava à espera" e "não pode ser só isto a escrita de Virginia Woolf"
Peguei nele no dia seguinte. Domingo à tarde. A tarde toda. Para dizer-vos a verdade, nem eu percebo muito bem porquê!
Nota de rodapé; nunca avaliar um livro pelas primeiras páginas!
Posso dizer que já não lia compulsivamente faz tempo. Aquelas leituras em frente à lareira, num Domingo que devia de chover e não chove e que o caminho é só um. As páginas de um livro.
Nada mais existe. Só as páginas de um livro.
Esta é a história de Mrs. Dalloway. O enredo centra-se num dia específico da sua vida e das personagens que a rodeam. 
Mrs. Dalloway situa-se na década de 20 do século passado e a trama desenrola-se em Londres num dia de festa.
Mrs. Dalloway faz parte da sociedade londrina e um dos seus maiores prazeres é receber em festas organizadas por si.
Este dia situa Mrs. Dalloway com mais de cinquenta anos e como consequência todos os seus amigos estarão também eles a atravessar essa perigosa idade.
Digo perigosa, porque o livro caminha para o perigo do pensamento como um todo. O livro retrata a condição humana; o que somos. Aquilo que nos alimenta a alma. O que nos faz progredir ou estagnar. 
Os nossos próprios pensamentos, a loucura ou a sanidade que trazemos cá dentro.
No fundo é um livro de reflexão sobre o que cada uma das personagens foi e será, os seus gestos e pensamentos profundos. Quando este intrincado se desenrola como um novelo de lã perseguido por um gato a história deixa de ter escapatória possível e sim! Eu fiquei agarrada a ele e não sei porquê!

Mrs. Dalloway é a personagem central, mas quem gravita à sua volta tem a possibilidade de expor-se.
É um livro sobre sensações e pensamentos. Sobre fragilidade, escrita de forma subtil e magistral que me prendeu sem eu dar por isso.
Admito que fiquei enredada sem dar conta. Indisponível para o resto, não para compreender até onde Clarisse Dalloway rasgava o seu mundo com a sua própria inevitabilidade, mas para ler o ruído daquelas vozes sussurrantes que esbatiam a sua alma humana cheia de contradições.  
O seu entendimento para algo tão substancial e necessário como a solidão, o impulso, a passividade, a dignidade, a independência, o respeito, os valores inestimáveis, a tolerância e a simplicidade. 
Tudo o que trazemos cá dentro desfiado num conjunto de personagens que nos cabem nos dedos das mãos.

Não sei se será o melhor de Virginia Woolf, ainda estou só no principio. Mas está pejado de profundidade.

"Tinha a estranha sensação de ser invisível; inobservada; desconhecida..."

"O mais estranho, ao olhar para trás, era a pureza, a integridade, dos sentimentos que nutria por Sally. Eram diferentes daquilo que se sente por um homem. Eram completamente desinteressados e, além disso, tinham uma característica que só podia existir entre mulheres, entre mulheres acabadas de amadurecer."

"Era essa a sua faceta diabólica - aquela frieza, aquela severidade, algo de muito profundo, que ele voltara a sentir naquela manhã ao falar com ela; uma impenetrabilidade. No entanto, Deus sabia o quanto a amava. Ela tinha o estranho poder de remexer nos nervos de uma pessoa, de os transformar nas cordas de um violino."

"Tinha uma noção perfeitamente clara daquilo que queria. Todas as suas emoções se encontravam à superfície. Abaixo delas, era bastante perspicaz - era, por exemplo, muito melhor do que Sally a avaliar o carácter das pessoas, sem deixar de ser puramente feminina; com aquele dom extraordinário, aquele dom de mulher, de criar um mundo só dela onde quer que se encontrasse."

"Pois ela chegara à conclusão de que só valia a pena dizer-se uma coisa - o que se sentia. A inteligência era uma tolice. Devia apenas dizer-se o que se sentia."