MINHA SOMBRIA VANESSA - KATE ELIZABETH RUSSEL
"Vem ser adorada, vem ser acariciada/ Minha sombria Vanessa"
Este livro deixou um rastro destruidor atrás de mim. Deixou-me completamente assoberbada.
Têm várias fases o livro, e posso dizer que passei por vários sentimentos contraditórios ao longo da sua leitura.
Não devorei as páginas, mas deixá-lo era doloroso, agarrar nele era diabólico.
Ficará na memória durante muito tempo. Um livro duríssimo, dificil de esquecer, com uma escrita crua e sem rodeios. Uma forma subtil de nos mostrar a realidade, contada na primeira pessoa, abrindo o caminho para uma realidade maliciosa, gritante e cheia de demónios. A mente de Vanessa é demasiado sombria de facto... posso dizer que tornou os meus dias sombrios!
Esta é a história de uma relação amorosa de Vanessa aos quinze nos e o seu professor de Inglês com quarenta e dois anos. Reparem... comecei por dizer "relação amorosa", não com a intensão de acreditar seriamente que terá sido, mas apenas descrevendo as próprias palavras de Vanessa... a sombria Vanessa.
O meu sentimento pelo Strane, o tal professor de Inglês, não muda muito ao longo do livro. Manipulador e muito inteligente. Qual o verdadeiro sentimento que tem por Vanessa? É incompreensível para mim, descortinar o seu verdadeiro sentimento em toda a história.
Já Vanessa! Bom, Vanessa é diferente. Não posso dizer que tenha um sentimento homogéneo por esta personagem. Vanessa deixa-me sem chão.
E aquilo que vou tendo como ideia dela, vai-se alterando ao longo do livro.
Tenho pena, tenho dó, irrita-me, machuca-me, dá vontade de dar colo... dá vontade de bater e pôr de castigo!
Mas quem é Vanessa?
"A minha mãe diz que repisar sentimentos não é maneira de viver, que há de haver sempre qualquer coisa para nos chatear, que o segredo da vida feliz é não nos deixarmos levar pelas coisas negativas. Ela não compreende a satisfação que a tristeza pode trazer; as horas passadas embalada na cama de rede, com a Fiona Apple aos ouvidos, fazem-me sentir melhor do que feliz."
Vanessa é portanto uma miúda que cultiva a tristeza, e uma miúda invisível para os outros.
" É sinistra e foge ao meu controlo, esta capacidade que tenho de reparar em tanto noutras pessoas, quando tenho a certeza de que ninguém repara em nada em mim."
É um caminho dificil de seguir, tão apartada dos outros, tão fora da realidade e da maioria. "...provavelmente há algo de mal em mim, uma fraqueza intrínseca..."
Com quinze anos é acima de tudo ingénua e vulnerável. E assim, tão fácil a forma como o professor a seduz, elogiando o seu talento e depois o seu corpo.
E é vê-lo a manipula-la inteligentemente, em cada situação. "Eu tenho poder. O poder de fazer acontecer. Poder sobre ele. Fui idiota por não ter percebido mais cedo."
Manipulação pura! Acabo a ler certos capítulos e é isso que me vem à cabeça. Estás a ser manipulada! Não tens idade, nem maturidade para entender isso! Na tua cabeça apenas acreditas que és especial e que tens poder sobre ele.
É perturbador a forma como Strane tira a virgindade a Vanessa.
Aliás, toda a cena é assustadoramente manipulativa da parte dele. E sim, nesta altura considero a Vanessa uma vítima.
Mas a Vanessa nunca se considerou uma vítima. Nem quando tinha quinze anos, nem quando tinha vinte e um anos, nem no momento presente da história com trinta e dois anos.
O deslumbre de ser vítima e de ter sido violada, dissipa-se sempre que ela pensa nisso com mais afinco e arranja uma desculpa concreta e coerente para tudo o que se passou. Na maioria das vezes essa desculpa é ela própria. O seu próprio consentimento.
Algures na narração Strane afirma a Vanessa "Eu vou estragar-te"
"Tu és tão complacente, dizia quando o deixava fazer o que queria do meu corpo. Era um elogio, a minha passividade era uma coisa rara e preciosa."
É como ter consciência que está-se a fazer algo de mal, mas faz-se!
A narrativa de Vanessa vai saltitando entre os anos 2000, 2006 e por fim 2017. Os seus quinze/dezasseis anos, os seus vinte e um anos numa segunda "relação" com Strane, e os seus trinta e dois anos. A realidade nua e crua.
A acusação de outras alunas sobre o comportamento subversivo de Strane e a forma como Vanessa vai ordenando esses pensamentos.
Vanessa é acima de tudo cruel para si própria e chama a si uma responsabilidade que não cabe numa menina de quinze anos que nem tem requintes de malvadez ou perversidade. Vanessa assume-se ao longo dos anos como a grande culpada de uma relação doentia e perigosa. Só ela vê amor ali.
"Por vezes tento imaginar outra rapariga a fazer o que eu fiz- ceder ao prazer, cobiça-lo, viver em função dele - mas não consigo. O cérebro chega a um impasse, o labirinto engolido pela escuridão. Impensável. Indizível.
Nunca o teria feito se não estivesses tão disposta, dizia ele. Soa ilusório. Que rapariga quer o que ele me fez? Mas é verdade, quer acreditem, quer não. Impelida para isso, para ele, eu era o género de rapariga que não deve existir: ansiosa de se atirar ao caminho de um pedófilo.
Mas não, esse palavra não está certa, nunca esteve. É uma escapatória, uma mentira, da mesma maneira que é errado chamar-me vítima e nada mais. Ele nunca foi assim tão simples; eu também não."
Quando Vanessa sacrifica-se por Strane, e é expulsa do colégio por comportamento impróprio, a sua existência atravessa um doloroso caminho. Confesso que as suas atitudes e a forma como encara esta passagem, ou esta espera, ensombram ainda mais aquilo que vejo em Vanessa. Uma miúda em decomposição, em decadência.
É doloroso seguir o seu caminho tão desviado. Tudo faz para não termos um pingo de empatia por ela. Vanessa tem apenas em mente que aquele período é a transição sufocada até à universidade onde poderá finalmente voltar para Strane. A sombria e fiel Vanessa acredita que Strane espera por ela, da mesma forma que ela espera pacientemente por ele.
A pergunta que está sempre a matraquear ao longo do livro é clara! Será Vanessa uma vítima?
Vanessa não quer ser vítima... esta é uma decisão que ela tomou e que recalca e recalca sempre que a dúvida se instalada. Mas será que não é?
"Não sou vítima porque nunca quis ser e, se não quiser ser, não sou."
O que mais custa é a sua submissão ao que ela considera uma relação, a forma como caminha para o abismo e recusa-se a qualquer realidade que não seja "ele amava-me, ele amava-me"
Perto do fim, Vanessa permite-se algo mais do que duvidar da construção da sua realidade. É um momento de verdade consigo própria e é efetivamente um dos momentos mais aflitivos do livro.
Num diálogo íntimo, Vanessa consegue assimilar dentro de si, todos os seus sentimentos em relação ao Strane;
" Não, escuta-me. Não finjas que eu não sei o que estou a dizer. Ele nunca me obrigou, está bem? Ele esperou que eu dissesse sim e tudo, especialmente quando era mais nova. Ele foi cuidadoso. Ele foi bom. Ele amava-me [...]
-Estás farta de quê? - pergunta
- De o ouvir, de o ver, de tudo o que faço estar inquinado por ele. [...]
- É o que sinto... - Faço força com o cutelo das mãos nas coxas - Não posso perder a coisa a que me agarrei tanto tempo, sabes? (...) Preciso mesmo que seja uma história de amor, sabes? Preciso mesmo, mesmo que seja isso. (...)
- Porque se não for uma história de amor, o que é? (...)
- É a minha vida - digo - É a minha vida desde sempre.
Ela aproxima-se de mim quando digo que estou triste, estou tão triste, palavras pequenas e simples, as únicas que têm sentido quando levo as mãos ao peito como uma criança e aponto para onde dói."
Vanessa sempre se sentiu uma criatura forte. Induzida ou não por Strane que lho dizia com frequência, era efetivamente forte. Afinal de contas só ela levou com todo o embate e suportou-o como ninguém.
A forma como o suportou assentou sempre na premissa que Strane a amava, que ela era especial, que ele só fez aquilo que ela consentia, que era ela que ditava as regras e que ele não podia viver sem ela.
Nunca lhe ocorreu que ela, com a sua sombra e solidão, era um alvo óbvio para que as coisas fossem para lá de um toque num joelho. Nunca lhe ocorreu a ela, que não tinha sido escolhida por amor, ou porque fosse especial, mas "porque tinha fome e era fácil"
Sei que estou a alongar-me perdidamente. O livro é tremendo. Acredito que a opinião sobre o mesmo não seja uma opinião constante. Acredito que ter uma personagem como a Vanessa não é consensual. Pode até ser repulsiva a forma como ela encara tudo isto.
Ter a Vanessa como narradora é esmagador. Uma personagem que se expõe e não se esconde em nada. Que não se pinta com nenhuma áurea de integridade ou vitimização.
É uma personagem fortíssima e complexa. Nem sempre gostei dela. Ela não quer que se goste dela. Ela quer que a vejam como ela é. Estragada!
Leiam por favor! Vale mesmo a pena!