Nós criámos a epidemia do coronavírus*
Há bem pouco tempo falei-vos
de um livro cuja crítica apareceu na revista do Expresso que eu queria muito
ler.
É um livro que foge dentro dos
meus padrões de leitura, mas chamou-me muito à atenção e já comecei a ler.
Chama-se CONTÁGIO de David Quammen.
Ainda vou no início mas o
livro aborda vários vírus que assolaram o mundo ao longo dos anos, mais
propriamente nas últimas décadas. Neste momento estou a ler um capítulo que
fala sobre o Vírus Ébola, e estamos a falar de datas que se iniciam em 1976 até
2014.
Este livro foi dos poucos
livros que eu referi no Blogue sem o ler, e queria muito partilhar convosco o
primeiro capítulo do mesmo. Depois de tudo o que estamos a passar e depois de
tudo o que lemos e ouvimos na televisão e noutros meios de comunicação social,
acho que estamos todos perdidos dentro de um labirinto de incertezas.
Os poderes políticos mundiais
servem-se a seu belo prazer e puxam as cordas conforme lhes dá jeito e hoje o
que é grave e perigoso, amanhã por milagre deixa de ser, e depois volta a ser.
Há bem poucos dias, dei por
mim completamente perdida na realidade e até comentei com alguém próximo que
não percebia o que se estava a passar. Afinal o que é certo e o que é errado?
Porque fomos encurralados em casa em Março, limitados nos nossos movimentos por
causa de um vírus e depois chegamos a Agosto e tudo é permitido quando
continuamos a conviver com esse vírus? Acho que são este tipo de perguntas que
cada um de nós faz todos os dias, porque estamos tremendamente mal informados,
tremendamente empacotados com informação avulso que os jornais e a TV passa
como entende, ou como o poder político pretende que passe. É a educação das
massas dentro dos limites impostos por quem está no poder. Chama-se Democracia.
Hoje em dia, tudo é manipulável, e as noticias, as realidades, a própria
verdade mais ainda.
Percebemos o vírus? Não. Temos
consciência do que nos espera? Não. Porque isto aconteceu e agora? Ninguém quer
saber. Apenas queremos saber quando podemos andar na rua e entrar num café sem
usar mascara na cara porque ”temos falta de ar”. E quando tivermos realmente
falta de ar, o que faremos? E quando os nossos hospitais não tiverem uma maca
ou um ventilador para nós, ou para os nossos? E quando os nossos morrerem
sozinhos, vamos continuar a dizer que tudo isto são questões políticas que nos
privam a liberdade?
David Quammen é um jornalista
que acompanha há muitos anos as pesquisas feitas por virologistas em todo o
mundo. O que ele pretende não é ensinar-nos a viver, mas a mostrar-nos de uma
forma leve, o que se faz no mundo da ciência quando um vírus aparece. Os
capítulos que li são bastantes interessantes por isso mesmo, aprendemos de uma
forma lúdica algo bastante sério para todos nós.
O primeiro capítulo é o único
dedicado ao novo Coronavírus e em comparação com os outros um capítulo bastante
pequeno. Foi retirado de um artigo publicado em 28 de Janeiro de 2020 no New
York Times numa altura em que muito pouco se sabia sobre ele.
O texto para mim e perante
tudo o que ouvimos e lemos nos últimos tempos é surpreendente e realmente acho
que é importante partilhar, e partilhar e partilhar…. Por isso e espero que não
achem um exagero reproduzir aqui este capítulo:
Lembro que o artigo é datado
de 28 de Janeiro e que dessa altura até aos nossos dias muita coisa mudou,
incluindo a certezas de que o nCoV-2019 é uma pandemia a nível mundial. Aos
dias de hoje, essa é a primeira meta não alcançada, tudo o resto será o rufar
do tambor!
Nós criámos a epidemia do
Coronavírus*
Ela pode ter começado com um
morcego numa caverna, mas foi a actividade humana que a desencadeou.
O mais recente e assustador vírus que captou a atenção horrorizada do
mundo, que causou o isolamento de 56 milhões de pessoas na China, que
interrompeu planos de viagem e provocou uma corrida às máscaras de protecção é
conhecido provisoriamente como “nCoV-2019”. É um nome desgracioso para uma
ameaça sinistra.
O nome escolhido pela equipa de cientistas chineses que isolaram e
identificaram o vírus, depois de ele ter infectado seres humanos no final de
2019 num mercado de marisco e animais vivos de Wuham, na província de Hubei, é
uma abreviatura de “novo coronavírus de 2019”. Isso significa que ele pertence
à família dos coronavírus, um grupo conhecido pela sua má reputação. A epidemia
de SARS de 2002-2003, que infectou 8098 pessoas em todo o mundo matando 774,
foi causada por um coronavírus, assim como o surto MERS que começou na
Península Arábica em 2012 e ainda está activo (2494 pessoas infectadas e 858
mortes até Novembro de 2019).
Apesar do nome do novo vírus, e como bem sabem as pessoas que o
baptizaram, o nCoV-2019 não é tão novo quanto se possa imaginar. Foi encontrado
há vários anos algo muito parecido com ele numa caverna de Yunnan, uma
província distante cerca de 1,6 mil quilómetros de Wuhan, por uma equipa de
investigadores perspicazes, que notaram a sua existência com preocupação. A
disseminação rápida do nCoV-2019 – mais de 4500 casos confirmados, com pelo
menos 106 mortes, até à manhã do dia 14 de Janeiro, e os números terão
aumentado quando isto for lido – é espantosa, mas não imprevisível. Que o vírus
tenha vindo de um animal – provavelmente um morcego, e possivelmente depois de
ter passado por outro ser -, pode parecer estranho, mas não surpreende de forma
nenhuma os cientistas que estudam estas coisas.
Uma dessas cientistas é Zheng-Li Shi, do Instituto de Virologia de
Wuhan, principal autora do artigo (disponível até ao momento apenas numa versão
preliminar, não revista pelos pares) que deu ao nCoV-2019 a sua identidade e
nome. Foram Shi e os seus colaboradores que, em 2005, mostraram que o agente
patogénico do SARS era um vírus de morcego que se transmitia aos seres humanos.
Ela e os colegas têm rastreado o coronavírus em morcegos desde então, alertando
para o facto de alguns deles serem particularmente adequados a causar pandemias
humanas.
Num artigo de 2017, depois de quase cinco anos a recolher amostras
fecais de morcegos na caverna de Yunnan, informaram que haviam encontrado
coronavírus em vários indivíduos de quatro espécies diferentes de morcegos,
entre eles um chamado morcego-de-ferradura-intermédio, devido à aba semioval de
pele que se projecta como um pires em torno das narinas. Shi e os colegas
anunciaram agora que o genoma desse vírus é 96 por cento idêntico ao vírus de
Wuhan encontrado recentemente em seres humanos. E os dois constituem um par
distinto de todos os outros coronavírus conhecidos, inclusive aquele que causa
a SARS. Nesse sentido, o nCoV-2019 é novo, e possivelmente ainda mais perigoso
para os seres humanos do que os outros coronavírus.
Digo “possivelmente” porque, até agora, não só não sabemos quão
perigoso ele é, como também não temos como saber. Os surtos de doenças virais
novas são como as esferas de aço de um flíper: podemos atingi-las com as
palhetas, abanar a máquina e bater nas bolinhas para ouvir o tilintar do
flíper, mas o sítio onde elas acabam por cair depende de muitas variáveis, bem
como de qualquer coisas que façamos. Isso ocorre principalmente com os
coronavírus: eles sofrem mutações frequentes à medida que se replicam, e podem
evoluir tão rapidamente quanto um espírito maligno saído de um pesadelo.
Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma organização privada
de investigação com sede em Nova Iorque que estuda as ligações entre saúde
humana e vida selvagem, é um dos parceiros de longa data de Shi. “Há quinze
anos que alertamos para estes vírus.”, disse-me ele na sexta-feira, 17 de
Janeiro, com uma frustração tranquila. “Desde o SARS”. Foi co-autor do estudo
sobre morcegos e SARS de 2005, e também do artigo de 2017 sobre os múltiplos
coronavírus do tipo SARS da caverna de Yunnan.
Daszak contou-me que, durante o segundo estudo, a equipa de campo
recolheu amostras de sangue de dois mil habitantes de Yunnan; cerca de
quatrocentos viviam perto da caverna. Aproximadamente três por cento deles
tinham anticorpos para coronavírus relacionados com a SARS. “Não sabemos se
ficaram doentes. Não sabemos se foram expostos quando criança ou adultos”,
disse Daszak. “Mas o que isso diz é que esses vírus estão a transmitir-se
repetidamente de morcegos para seres humanos.” Por outras palavras, o surto em
Wuhan não é novidade. Faz parte de uma sequência de contingências
correlacionadas que remontam ao passado e avançam para o futuro, enquanto as
actuais circunstâncias persistirem. Assim, quando o leitor tiver acabado de se
preocupar com este surto, preocupe-se com o próximo. Ou então fala algo a
respeito das actuais circunstâncias.
Entre as circunstâncias actuais está o perigoso comércio de animais
selvagens para alimentação, com cadeias de abastecimento espalhadas pela Ásia,
África e, em menor grau, Estados Unidos e outros locais. Esse comércio foi
agora proibido na China, temporariamente, mas também foi proibido durante o
SARS, e depois teve permissão para ser retomado, e morcegos, civetas,
porcos-espinhos, tartarugas, ratos-do-bambu, muitos tipos de aves e outros
animais voltaram a ser empilhados, juntos, em mercados como o de Wuhan.
As circunstâncias actuais também incluem 7,6 mil milhões de seres
humanos famintos: alguns pobres e desesperados por proteínas; alguns abastados,
perdulários e com recursos para viajar de avião para onde quiserem. Estes
factores não têm precedentes no planeta Terra: sabemos por registo fóssil, pela
ausência de evidências, que nenhum animal de grande porte alguma vez esteve
perto de ser tão abundante quanto os seres humanos são agora, para não falar da
sua eficácia em apropriar-se dos recursos naturais. E uma consequência dessa
abundância, desse poder e das consequentes perturbações ecológicas é o aumento
das trocas virais – primeiro de animal para ser humano, depois de humano para
humano, às vezes à escala pandémica.
Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens que abrigam
imensas espécies de animais e plantas – e dentro desse seres, imensos vírus
desconhecidos. Derrubamos as árvores; matamos os animais ou engaiolamo-los e
enviamo-los para os mercados.
Destruímos os ecossistemas e libertamos os vírus dos seus hospedeiros
naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas
vezes, somos nós.
A lista dos vírus que surgem em seres humanos soa como um rufar fúnebre
de tambor: vírus Machupo, Bolívia, 1961; vírus Marburgo, Alemanha, 1967; vírus
Ébola, Zaire e Sudão, 1976; VIH, identificado em Nova Iorque e na Califórnia,
1981; uma forma de hantavírus (agora conhecida como Sin Nombre), sudoeste dos
Estados Unidos, 1993; vírus Hendra, Austrália, 1994; gripe aviária, Hong Kong,
1997; vírus Nipah, Malásia, 1998; vírus do Nilo Ocidental, Nova Iorque, 1999; SARS,
China, 2002-2003; MERS, Arábia Saudita, 2012; Ébola novamente, África
Ocidental, 2014. E isto é apenas uma amostra. Agora temos o nCoV-2019, o mais
recente rufo do tambor.
As circunstâncias actuais também incluem burocratas que mentem e
ocultam más notícias, além de autoridades eleitas que se gabam de derrubar
florestas para criar empregos na indústria madeireira e na agricultura ou de
reduzir orçamentos para a saúde pública e a investigação. A distância de Euhan
ou da Amazónia até paris, Toronto ou Washington é curta para alguns vírus,
medida em horas, tendo em conta que se dão muito bem a apanhar boleia em aviões
de passageiros. E se acha que financiar a preparação para a pandemia é caro,
espere até ver o custo final do nCoV-2019.
Felizmente, as circunstâncias actuais também incluem cientistas
brilhantes e dedicados e pessoal médico de resposta a surtos, como tantos no
Instituto de Virologia de Wuhan, na EcoHealth Alliance, no Centro de Controlo e
Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, no CDC chinês e em inúmeras
outras instituições. São pessoas que entram em cavernas de morcegos, pântanos e
laboratórios de contenção de alta segurança, muitas vezes arriscando a vida,
para extrair fezes, sangue e outros indícios preciosos de morcegos, a fim de
estudar sequências genómicas e responder às principais perguntas.
Enquanto aumenta o número de casos de nCoV-2019 e de mortos, a taxa de
mortalidade permanece bastante estável até agora: em torno ou abaixo de três
por cento. Até 21 de Janeiro, menos de três em cada cem casos confirmados
haviam morrido. Isto é uma boa sorte relativa – pior do que na maioria das
estirpes de gripe, melhor do que a SARS. Mas a boa sorte pode não durar.
Ninguém sabe aonde a esfera do flíper irá parar. Daqui a quatro dias, o número
de casos poder estar na casa das dezenas de milhares. Daqui a seis meses, a
pneumonia de Wuhan pode começar a desaparecer da nossa memória. Ou não.
Estamos diante de dois desafios mortais, a curto e longo prazo.
Curto prazo: devemos fazer tudo o que pudermos, com inteligência, calma
e total comprometimento de recursos, para conter e extinguir este surto de
nCoV-2019 antes que ele se torne, como é possível uma pandemia global
devastadora. A longo prazo: devemos lembrar, quando a poeira assentar, que o
nCoV-2019 não foi um acontecimento novo ou um infortúnio que nos aconteceu. Fez
– e faz – parte de um padrão de escolhas que nós, os seres humanos, estamos a
fazer.
* Artigo publicado em 28 de Janeiro de 2020 no New York Times, logo no início do que viria a ser a pandemia de COVID-19, antes de o vírus ter recebido o seu nome definitivo. (N. da T.)