30 de setembro de 2020

 

Excerto do O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa





"Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida.
Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.

Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.

Outros, de melhor estripe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. 
Impossível esforço, em quem não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.

Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.

Mas outros. Raça do fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelos menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir."


Durante muitos anos tentei ler O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa sem o conseguir. Peguei e larguei o livro anos e anos a fio sem compreender a verdadeira capacidade do mesmo. 
Das críticas que lemos, dos anos que passaram, do escritor que foi e é, não temos dúvidas. Não há dúvidas que Fernando Pessoa é sobejamente grande.
Hoje, acredito que o não compreender as suas palavras ao longo de anos e anos, não era defeito do próprio que as escreveu, mas defeito meu.
A minha incapacidade de ver o mundo como ele o via.
O Livro do Desassossego é o reflexo da desordem da alma e se nós próprios não tivermos a alma em desordem, não seremos capaz de nos desassossegar. 
É preciso acreditar que nada que nos rodeia e nos atinge faz realmente sentido. É preciso deixar de ter ilusões e vermo-nos a nós próprios como aquilo que realmente somos, a raça do fim, estagnados na nosso própria mediocridade.
Viver doí... não viver doí mais ainda!



29 de setembro de 2020

 O Labirinto dos Espíritos - Carlos Ruiz Zafón




Comecei por considerar A Sombra do Vento um livro fantástico. Já o aqui tinha referido. 
Descobri o autor noutras andanças, longe desta saga e depois descobri que fantástico não era  A Sombra do Vento mas o escritor Carlos Ruiz Zafón.
Marina, foi o nome do livro que me desvaneceu a alma e rendeu-me definitivamente a este escritor espanhol que desafortunadamente morreu já este ano, vitima de doença.

Para este O Labirinto dos Espíritos, não tenho propriamente palavras. As personagens são o que de mais rico este escritor cria, e apesar de em todos os livros desta saga desfilarem personagens inesquecíveis, neste último livro temos o desdobrar daquelas que para mim são as melhores personagens criadas pelo escritor. Fermin Torres e Alicia Griss.

Fermin Torres, o bom do Fermin que atravessa a saga por inteiro. Com uma história de vida surpreendente e como personagem tão rica, tão presente, tão figura que dificilmente a esquecerei algum dia. Os melhores textos e os melhores diálogos incluem o Fermin Torres. Palavras sábias, palavras eloquentes, graças e troças. O senhor dos sugus de limão, o que cumpre as suas promessas.
"Na hora de mentir, há que ter em conta não a plausibilidade do embuste mas a cobiça, a vaidade e a estupidez do destinatário. Nunca mentimos às pessoas. Elas mentem a si mesmas. Um bom mentiroso dá aos tolos o que eles querem ouvir. É esse o segredo."
"As pessoas sejam por medo, por interesse ou tolice, acostumam-se de tal maneira a mentir e a repetir as mentiras dos outros que acabam por mentir até quando julgam estar a dizer a verdade. É o mal do nosso tempo. A pessoa honesta e sincera é uma espécie em vias de extinção."
" Aprender a diferençar entre a razão por que fazemos as coisas e a razão por que dizemos fazê-lo é o primeiro passo para nos conhecermos a nós mesmos."

A saga dos quatro livros que compõem esta saga do cemitério dos livros esquecidos, tem sempre uma personagem feminina forte. No primeiro livro temos Núria Monforte, no segundo livro temos a Isabella que se tornaria Isabella Sempere, no terceiro livro voltamos há recordação de Isabella Sempere, e no quarto livro temos Alicia Griss. Uma alma nascida das sombras.
"A verdade é um acordo que permite aos inocentes não precisarem de conviver com a realidade."
Não vos quero tirar o prazer de ler o livro mas Alicia suplanta a capacidade de se reinventar e sobreviver. É sim, uma criatura das trevas, que a vida transformou em trevas, mas com uma capacidade de despreendimento para o bem dos outros e não seu, que suscita paixões e uma gula enorme em não parar de ler.
Alicia Griss é o motor deste livro, e a sua combinação com Fermin que nas mais de 800 páginas é curta é o melhor que o livro tem.
"- A família Sempere esta segura? O Daniel, a Bea, o avô, o Julian?
- Agora sim.
- E a que infernos teve de descer para assegurar-se de que inocentes podem viver em paz, ou pelo menos numa plácida ignorância?
- A nenhum que não me ficasse em caminho, Fermín."
Uma mulher fria, com o lado mais negro, com um passado de dor, que se sacrifica para o bem. Uma mulher que vive na amargura daquilo que não pode ter.
"Minha querida Alicia, criatura das trevas, não te martirizes a sonhar com ser a princesinha da casa que espera o regresso do campeão e cuida dos adoráveis rebentos dando saltinhos de alegria. Tu e eu somos o que somos, e quanto menos nos olharmos ao espelho melhor."
Apesar da sua capacidade de sobrevivência e da sua atitude fria e calculista não deixa de ser a mais frágil de todas as criaturas criadas pelo escritor, e é esta ambiguidade que torna Alicia a mais rica das personagens femininas.
"Alicia procurava-o com o olhar, os olhos velados de lágrimas e um frágil sorriso nos lábios. Fermín suplicou ao diabo coxo a que sempre encomendava os seus impossíveis que não a levasse ainda."
No final o seu caminho é um pouco abandonado e o peso que têm em toda a história é renegado para segundo plano para o bem dos Sempere.


Li algures que todos os homens Sempere pareciam e foram criados como uns "pãezinhos sem sal".
Pessoalmente concordo com a afirmação porque ao longo da narrativa, são as personagens menos interessantes. 
Apesar de a trama rodar toda há volta da livraria Sempere, e esta família ser o ponto principal para todas as outras personagens, todas elas crescem e grande parte delas tornam-se inesquecíveis.
Os Sempere são geração após geração demasiado pálidos. São no entanto o motor de busca.

Considero que o grande propósito do ler um livro, é a capacidade que ele têm de nos transformar também a nós e de nos colocar dentro desse livro. Se não for assim, para mim não é livro.
Se eu não souber rir, nem sofrer com as personagens, se elas não forem suficiente vivas para saltarem das páginas e se sentarem ao meu lado, o livro não passará de um mero monte de folhas datilografadas.
Também acredito que em cada livro existe um espaço próprio e um filho próprio, porque aquilo que me pode agradar e absorver não tem necessariamente de estimular o outro. 
Todas as histórias são precisas e todos os livros tem um destino e alguém a quem fazer sonhar, a fazer sentir. Não acham? 


Não quero deixar de transcrever o prefácio de O Labirintos dos Espíritos, que se encontra na página 779 deste livro.
"Uma história não têm principio nem fim, só portas de entrada. Uma história é um labirinto infinito de palavras, imagens e espíritos esconjurados para nos revelar a verdade invisível a respeito de nós mesmos. Uma história é, em última análise, uma conversa entre quem a narra e quem a escuta, e um narrador só pode contar até onde lhe chega o ofício e um leitor só pode ler até onde leva escrito na alma.
É esta regra mestra que sustenta todo o artificio de papel e tinta, porque quando as luzes se apagam, a música se cala e a plateia se esvazia, a única coisa que importa é a miragem que ficou gravada no teatro da imaginação que todos os leitores têm na mente. Isso e a esperança que todo o fazedor de contos acalenta: que o leitor tenha aberto o coração a alguma das suas criaturas de papel e lhe tenha estregado qualquer coisa de si para torná-la imortal, ainda que seja só por uns minutos.
E dito isto com mais solenidade do que a ocasião provavelmente merece, mais vale aterrar no fim da página e pedir ao amigo leitor que nos acompanhe até ao fim desta história e nos ajude a encontrar o mais dificil para um pobre narrador apanhado no seu próprio labirinto: a porta de saída."

22 de setembro de 2020

 

Um Lugar para Amar - Robyn Carr



Confesso que já há muito tempo que não lia um livro tão lamechas. E não estou a dizê-lo no sentido depreciativo, de modo nenhum. Também sou fã de escrita tipo Nicolas Sparks, tem de ser é em doses pequenas.
Já li alguns livros de Nicolas Sparks, e sim, são todos muito "sentimentaleiros" mas todos muitos bonitos. Qualquer dia faço um post sobre o livro de Nicolas Sparks " O Diário da nossa paixão" e prometo que me explico melhor.

Agora falaremos de Virgin River - Um lugar para amar, que é uma história de amor. Não! Estou enganada. São pelo menos três histórias de amor e de vida, e uma com ares de começo.
Digo ares de começo porque este livro pertence a uma saga de três livros e este é o segundo. Os outros dois por enquanto não se encontram editados em Portugal, e a sua encomenda tem custos excessivos.

Deixando de divagar e voltando à história deste livro, não deixa de ser uma história banal. Uma mulher que foge do marido com o filho pequeno, porque este lhe bate violentamente, perde-se no caminho e vai parar a uma vila de nome Virgin River. Entra num bar que ainda está aberto onde um homem lhe empresta um quarto para passar a noite.
Essa mulher, Paige, está grávida , e o homem, John, convence-a no dia seguinte a ir ao médico.
A partir daqui a história ganha ritmo, muito ritmo.
A vila é pequena, todas as pessoas se conhecem e se ajudam. 
Paige acaba por ficar a trabalhar no bar, na cozinha e com a ajuda de todos tem coragem para denunciar o marido e pedir o divórcio.
Este, um Corretor de Bolsa, cheio de posses e de dividas ostenta uma casa milionária, mas é uma pessoa transtornada e viciada em drogas.
Chama-se Wess o marido, e apesar de Paige se sentir relativamente segura em Virgin River, Wess consegue aparecer um dia e apanha quase todos desprevenidos. Bate novamente na mulher, no meio da rua e provoca-lhe um aborto.
Já têm a lágrima no olho? Se não têm, prepare-se porque ela vai aparecer.
Para além destas duas personagens existem Mel, parteira e enfermeira da vila que casou com Jack, dono do Bar. A relação dos dois é a parte divertida da história. Estes dois arrancam-nos gargalhadas. Os seus diálogos e as suas atitudes, a maneira como se desenvolvem na história é uma lufada de ar fresco em todo o livro.
O diálogo entre os dois quando o filho de ambos nasce é magistral.

Depois temos outro casal improvável. Liz e Rick, dois adolescentes que se distraem uma única vez e Liz com quinze anos fica grávida. Esta história é mais densa, até porque a criança nasce já morta. É uma história pesada para dois adolescentes mas muito bem construída.
Sexo também há. Não ficou nem por dizer, nem por fazer.

No fim acaba tudo bem como qualquer livro lamechas. Tendo em conta o tamanho do livro penso que o drama emocional de Paige poderia ter sido mais explorado. Essa parte passa totalmente ao lado. Uma mulher que é agredida pelo marido violentamente e continuamente durante anos, teria que ter sequelas emocionais. Mesmo o aborto que lhe é provocado de forma brutal, teria que ter uma marca profunda em si própria, e isso é completamente esquecido nesta história.
Penso que a escritora quis dar um ar ligeiro a uma história séria para que quem a lesse a pudesse suportar melhor, ou apenas quis mostrar a parte boa e ignorando a parte má. Talvez o objetivo fosse esse mesmo, subvalorizando o bem, ignorando ou apenas aflorando o mal.
De qualquer das formas o livro é agradável de se ler e até gostei muito.
A saga já foi em parte adaptada há televisão numa séria que passa na plataforma do NetFlix.




P.S - O livro, é um daqueles livrinhos de bolso, que não estão muito na moda em Portugal, mas que proliferam em países como Estados Unidos e Inglaterra. Cabe quase no bolso de um casaco, e dentro da mala não se nota nem pesa. Eu sou daquelas que anda sempre com o livro dentro da mala, não vá existir uma oportunidade para podermos ler. O seu custo foi três vezes inferior ás edições normais em Portugal. Vale a pena pensar nisso!
Não sou economista nem quero aqui apresentar uma formula matemática sobre deve e haver, nem sobre as probabilidades de isto ou aquilo, mas acredito que apesar de valorizar bastante o produto em si, haverá certamente formas mais baratas de editar livros para aqueles que privilegiam apenas a leitura em detrimento do resto.
 



19 de setembro de 2020

 

notícias...


Ípsilon de sexta-feira, 18 de Setembro de 2020

Na revista da Ípsilon do jornal público do dia 18 de Setembro vem um trabalho, entrevista, sobre Bernardine Evaristo. Britânica, escritora e autora do livro Rapariga, Mulher, Outra, vencedor do Booker Prize de 2019. O texto é de Isabel Lucas e achei-o muito interessante.
Já tinha marcado o livro como uma possível leitura no futuro, por isso a capa da revista despertou-me a atenção, e decidi ler.

O texto fala do livro, mas chega-nos também com a voz da própria escritora, das suas vivências e realidades, e daquilo que é a sua consciência perante o mundo e as questões sociais e morais. Falo de racismo, machismo e classes sociais.
O livro é constituído por doze personagens, doze histórias, doze mulheres que tem em comum o facto de serem negras e viverem na Inglaterra.
A própria escritora define o romance da seguinte forma;
"É um romance interseccional. Antes de mais é sobre mulheres, mas olha também em direção a todo o tipo de coisas que tenham a ver com género, sexualidade, classe, raça, conflitos entre gerações: é também sobre ocupação, olha para a família, para a emigração, para a ambição. O racismo é parte disso, mas muitas outras coisas fazem o romance. Quis que fosse verdadeiro face à vida."
"Com este Rapariga, Mulher, Outra quis simplesmente expandir a representatividade das mulheres negras em Inglaterra."
"Comecei a pensar que iria escrever um livro e pôr nele o maior número de mulheres negras, e ver onde isso me iria levar. Elas são muito pouco visíveis na literatura britânica. Enquanto escrevia aquelas histórias tornou-se muito natural para mim, e sem que pensasse nisso inicialmente, integrar todas as coisas de que queria falar. Estão lá raça e género e decidi que iria escrever sobre diferentes sexualidades. Não queria que fosse um romance heterossexual, por isso não seria verdadeiro em relação à vida. A experiência de classe teria de ser um elemento tão decisivo quanto é no nossa sociedade, aqui. Quando se fala de ambição pessoal, a classe entra na conversa, imediatamente porque nesta sociedade, se se é ambicioso, isso significa deixar para trás uma classe e entrar noutra". " As gradações de classe na Grã-Bretanha são muito marcadas. A classe é de facto, um dos grandes problemas da nossa sociedade."

Bernardine Evaristo nasceu em Woolwich, sudoeste de Londres em 1959, filha de uma professora de Inglês e de um soldador nigeriano que emigrou para Inglaterra em 1949. As suas raízes são Inglesas, Irlandesas e Alemãs por parte da mãe, Nigerianas e Brasileiras por parte do pai.
Estudou teatro e chegou a ser atriz na adolescência, tem formação em escrita criativa, e neste momento é professora e critica literária para O Guardian e o Observer. Já escreveu oito romances e também escreve poesia.
Muitas vezes é apresentada como uma ativista pelo seu trabalho com o povo africano, principalmente em causas ligadas aos direitos das mulheres negras.

Voltando ao livro, são doze personagens que tem ligação entre si, numa espécie de relação mútua. Amma é mãe de Yazz e amiga de Dominique; Shirley é sua confidente, professora numa escola num bairro complicado onde vive Carole; ela é amiga de Latisha, uma nigeriana que emigrou que é ex-empregada de Penélope, professora reformada... há mais personagens, todas com algum elo de ligação. As doze personagens são artistas, banqueiras, professoras, empregadas de limpeza, donas de casa. Tem entre 19 e 93 anos e formam este romance premiado com o Booker Prize de 2019 e que o júri descreveu da seguinte forma;
" Um romance impressionante e feroz sobre a vida das famílias britânicas negras, as suas lutas, dores, risos, anseios e amores, considerando-o de leitura obrigatória sobre a Grã-Bretanha e a feminilidade."
No entanto o livro não ganhou o prémio sozinho e dividiu com o livro de Margaret Atwood, Os Testamentos. Foi considerado por algumas pessoas como uma injustiça, até pelo que é a primeira vez em 50 anos que o prémio é atribuído a uma escritora negra, mas não o foi na sua plenitude.
São estas subtilezas que trazem as questões do racismo, e até do machismo para o ordem do dia.
A escritora fala muitas vezes neste texto sobre questões racistas, aliás a sua vida é composta por lutas ideológicas. Tem como bem presente para além do racismo e machismo, também a chamada luta de classes, e aquele patamar que nem todos sequer nos poderemos atrever a chegar.

Como referi, é uma leitura que ainda não fiz,  mas que quero muito fazer num futuro próximo.
Aliás, no decorrer da leitura encontrei outra leituras que quero fazer de opiniões dadas pela própria Bernardine Evaristo, como A Cor Púrpura de Alice Walker e alguma coisa de Ali Smith.
E alguém já leu este livro? E Alice Walker ou Ali Smith?
Gostaria da vossa opinião no Blogue... Seria um excelente principio de conversa, não acham? Quem quer começar?



18 de setembro de 2020

 

Explicação da Eternidade




devagar, o tempo transforma tudo em tempo.

o ódio transforma-se em tempo, o amor

transforma-se em tempo, a dor transforma-se

em tempo


os assuntos que julgámos mais profundos,

mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,

transformam-se devagar em tempo.


por si só, o tempo não é nada.

a idade de nada é nada.

a eternidade não existe.

no entanto, a eternidade existe.


os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.

os instantes do teu sorriso eram eternos.

os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.



José Luís Peixoto - A Casa, a Escuridão





15 de setembro de 2020

 

O Prisioneiro do Céu - Carlos Ruiz Zafón



Fermin Romero de Torres continua a ser para mim a grande personagem desta saga do Cemitério dos Livros Esquecidos de Carlos Ruiz Zafón. E este terceiro livro é inteiramente dedicado á sua história.
O primeiro livro já tive a oportunidade de o dizer, é uma história magistral, das mais belas que eu já li. 
Fiquei encantada com Zafón logo á primeira vista e no primeiro livro.
O Jogo do Anjo, dá uma reviravolta e a história recua no tempo, e deixou-me, essa sim, um pouco baralhada. É um livro para nos enquadrarmos no tempo e no espaço e para envolvermos tudo isto como um todo. 
Procura não nos deixar demasiado relaxados no desenrolar da história.
Até aqui tinha poucas razões para considerar O Jogo do Anjo, um livro dentro desta saga, mas o Prisioneiro do Céu, veio tirar-me essa dúvida.

Com a história bem marcada, com personagens que tão bem conhecemos, com uma narrativa tão própria de Zafón foi fácil chegar ao fim do livro numa breve tarde.
Li A Sombra do Vento em Abril, e o livro tocou-me bastante. Depois em Maio, li Mariana que não faz parte desta saga, mas é um livro belíssimo, o melhor para mim de Zafón.
Em Agosto li O Jogo do Anjo e tinha decidido ler O Prisioneiro do Céu em Setembro e O Labirinto dos Espíritos no mês seguinte, mas vou lê-lo já de seguida. A história assim o exige. Não posso deixar Daniel Sempere e Fermin Romero de Torres à minha espera.
Em O Prisioneiro do Céu a história fica em aberto, como que a convidar-nos para o que vem já a seguir.

Fermin volta a ser uma personagem completa e apaixonante e abre o caminho para o que poderá aí vir, ao contar a história da sua prisão no ano de 1939, em plena guerra civil em Espanha.
Descobrimos uma Barcelona despedaçada por uma guerra e Fermin conta-nos suavemente o caminho tenebroso que percorreu na cadeia, até ao colapsar da sua identidade. Lá conheceu Salgado que roubou uma fortuna em jóias e que é torturado e aliviado de partes do seu corpo, mas que não conta onde guardou o saque.
Lá encontra um médico que ficou preso por questões ideológicas e que não quer denunciar os seus colegas de profissão.
Lá trava amizade com o escritor David Martin que foi preso acusado de assassinar o amigo e a mulher.
Lembram-se quem é David Martin? 
Da prisão foge tal como o Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, com a ajuda de David Martin que apenas lhe pede para proteger Isabella e o seu filho, Daniel Sempere.
O resto meus amigos não vos vou contar, só vós digo que vale muito a pena!



 


14 de setembro de 2020


 Elena Ferrante e a publicação no Expresso revista no separador "Culturas"


Há algum tempo tentei iniciar a leitura dos livros de Elena Ferrante. Escolhi A Amiga Genial. Acreditava que a saga sobre as duas amigas tão distantes socialmente me iriam interessar. Com este livro, aconteceu-me o que me sucede ás vezes. Desilusão!
Mas a desilusão não é identificável e sinto que o problema não é propriamente do livro, nem da escritora, mas minha.
Aquela sensação que peguei nele na hora errada e no momento inadequado. Não sei se já aconteceu convosco. Começar a ler um livro e não ser aquilo que eu queria ler naquela altura, e as folhas esvaem-se sem sentido, e a história torna-se vazia e sem interesse.
Por isso não posso culpar Elena Ferrante nem a história de A Amiga Genial.

Na revista do Expresso na edição de 28 de Agosto, dei de novo com Elena Ferrante e o seu mais recente trabalho que foi editado no inicio deste mês de Setembro em Portugal. "A vida mentirosa dos Adultos."
Na secção "Cultura" da revista, descobri uma outra perspectiva da escritora que é muito incomum nos nossos tempos. A preservação da sua intimidade, sob a ausência pública da sua identidade.
Hoje em dia um escritor que queira vender livros, como em qualquer relação macro-económica tem acima de tudo de se vender a si próprio. A sua vida, a sua identidade e por vezes até a sua intimidade. Faz parte deste mundo moderno que caminha para o abismo da presença imediata. A exposição continua da pessoa como se o "eu", também fosse para vender.

Na gíria das relações actuais, em que até a areia onde os nossos pés pisam, fica bem numa foto publicada nas redes sociais, Elena Ferrante terá que ser no mínimo uma anti-social.
Mas uma anti-social que apesar de não expor a sua imagem a um público que lê os seus livros, não deixa de reflectir nas poucas entrevistas que dá sem fotos, aquilo que pensa, e muito daquilo que é feito a sua obra.

Pelo que leio das opiniões sobre a sua escrita, pela publicidade e criticas feitas aos seus livros, pelo número de exemplares vendidos, a minha primeira experiência com Elena Ferrante só pode ter sido um equivoco. Um erro de perspectiva. E este seu novo livro "A vida mentirosa dos adultos", parece-me ser uma boa oportunidade de desfazer esse mal-entendido.
Prometo que vos conto depois!    

11 de setembro de 2020

 

The Witcher - O Terceiro Desejo - Vol. I - Andrzej Sapkowaki


Tenho a minha conta de livros de literatura fantástica. A Guerra dos Tronos, O Senhor dos Anéis, O Hobbit (História assombrosa), Eragon e os restantes 3 livros e as Brumas de Avalon.(História que merece um Post por isso não me vou alongar agora...).
Agora que penso no assunto e dou uma volta pelas minhas prateleiras de livros vejo e chego à conclusão que não tenho assim tanta literatura fantástica como gostaria.
Este Terceiro Desejo foi um namoro prolongado e várias vezes adiado. Da série no Netflix ainda sem sequer tinha posto a hipótese de carregar no botão play.

Só vos posso dizer que andei a perder tempo e a imaginar monstros e sangue que não me deixariam dormir à noite, mas nada disso! É um belíssimo livro de contos, que vai beber a sua fantasia à mitologia eslava e aos contos dos irmãos Grimm.
Geralt de Rivia é um bruxo que ganha a vida caçando monstros e criaturas não humanas. O próprio Geralt não pode ser considerado propriamente humano.

Neste livro encontramos bruxos, feiticeiras, monstros, anões, seres estranhos, elfos, os humanos e as sacerdotisas. Em certos capítulos relembra um pouco o ambiente das Brumas de Avalon.
Gostei imenso. Surpreendei-me pela positiva este livro. O Bruxo, é afinal uma personagem que nos encanta, com a sua capacidade de justiça e perdão num mundo de crueldade e vingança.

Neste momento o autor já tem publicado em Portugal sete livros desta série The Witcher, sobre as histórias do bruxo Geralt de Rivia. Os dois primeiros volumes são de contos, e a série que já passa no Netflix à algum tempo baseiam-se nestes dois primeiros livros. Os outros cinco livros foram classificados como romances.

É mais uma série que vou tentar completar em leitura, devagar e com calma, como tudo na minha vida.
Despertou-me a vontade de ler mais literatura fantástica.

9 de setembro de 2020



Passatempo "Não de Mexas" - Margaret Mazzantini


Olá a todos!
Na semana passada lancei um passatempo nas Redes Sociais, sobre o livro "Não te Mexas de Margaret Mazzantini".

Foi uma leitura muito interessante para mim e o Post de opinião, neste caso foi ligeiramente diferente.
A todos os que aderiram ao passatempo só tenho a agradecer o tempo que disponibilizaram. Imensamente grata, espero continuar a partilhar convosco os livros.

A vencedora deste passatempo é Alexandra Guimarães, pelo que peço e agradeço o envio da sua morada para o e-mail livrista2020@gmail.com, para receber em breve o seu livro.

Quanto a todos os outros... o que posso prometer é que outros passatempos serão lançados no Blogue com regularidade, pelo que haverá outras oportunidades.

Obrigada! e... boas leituras... 

7 de setembro de 2020


O Tubarão na Banheira - David Machado



Este livro de David Machado, é um dos livros infantis mais popular lá em casa. Já perdi a conta, as vezes que foi lido, manuseado, emprestado, e até já serviu como texto para fazer cópias. 
E por último e não menos importante é um dos raríssimos exemplares lá em casa autografados pelo escritor. Uma verdadeira relíquia não acham?

E a história?
Lembro-me de passar um dia inteiro na praia a lê-la repetidas vezes à minha filha, e quando lhe disse que o David Machado iria estar no Fólio em Óbidos e que ia-mos pedir-lhe um autografo, ela ficou toda envergonhada mas imensamente feliz.

É uma verdadeira trapalhada a história!
Um avô que parte os óculos quando se senta em cima deles. Mas o avô que é um optimista por natureza, não vê nada sem óculos.
Procuraram o outro par de óculos que o avô dizia que tinha lá por casa, mas a única coisa que encontraram no sótão foi um aquário vazio.
Sem nada para fazer, uma vez que o avô não via e o neto passava o tempo a escrever palavras no seu caderno de palavras difíceis, decidiram que iriam à pesca para colocar um peixe no aquário.

No primeiro dia apanharam o Osvaldo, um peixe pequeno com menos de dez centímetros.
Como concluíram que o Osvaldo se senti só, voltaram à praia para pescar. 
Não se esqueçam, o avô continua sem óculos  e não vê patavina!
Desta vez pescaram um tubarão. Devo dizer-vos que levaram o tubarão para casa para fazer companhia ao Osvaldo. Pareceu aos dois uma atitude razoável. E mais não digo!
É melhor lerem.
É uma grande trapalhada!

4 de setembro de 2020


Nós criámos a epidemia do coronavírus*





Há bem pouco tempo falei-vos de um livro cuja crítica apareceu na revista do Expresso que eu queria muito ler.
É um livro que foge dentro dos meus padrões de leitura, mas chamou-me muito à atenção e já comecei a ler. Chama-se CONTÁGIO de David Quammen.

Ainda vou no início mas o livro aborda vários vírus que assolaram o mundo ao longo dos anos, mais propriamente nas últimas décadas. Neste momento estou a ler um capítulo que fala sobre o Vírus Ébola, e estamos a falar de datas que se iniciam em 1976 até 2014.

Este livro foi dos poucos livros que eu referi no Blogue sem o ler, e queria muito partilhar convosco o primeiro capítulo do mesmo. Depois de tudo o que estamos a passar e depois de tudo o que lemos e ouvimos na televisão e noutros meios de comunicação social, acho que estamos todos perdidos dentro de um labirinto de incertezas.
Os poderes políticos mundiais servem-se a seu belo prazer e puxam as cordas conforme lhes dá jeito e hoje o que é grave e perigoso, amanhã por milagre deixa de ser, e depois volta a ser.
Há bem poucos dias, dei por mim completamente perdida na realidade e até comentei com alguém próximo que não percebia o que se estava a passar. Afinal o que é certo e o que é errado? Porque fomos encurralados em casa em Março, limitados nos nossos movimentos por causa de um vírus e depois chegamos a Agosto e tudo é permitido quando continuamos a conviver com esse vírus? Acho que são este tipo de perguntas que cada um de nós faz todos os dias, porque estamos tremendamente mal informados, tremendamente empacotados com informação avulso que os jornais e a TV passa como entende, ou como o poder político pretende que passe. É a educação das massas dentro dos limites impostos por quem está no poder. Chama-se Democracia. Hoje em dia, tudo é manipulável, e as noticias, as realidades, a própria verdade mais ainda.

Percebemos o vírus? Não. Temos consciência do que nos espera? Não. Porque isto aconteceu e agora? Ninguém quer saber. Apenas queremos saber quando podemos andar na rua e entrar num café sem usar mascara na cara porque ”temos falta de ar”. E quando tivermos realmente falta de ar, o que faremos? E quando os nossos hospitais não tiverem uma maca ou um ventilador para nós, ou para os nossos? E quando os nossos morrerem sozinhos, vamos continuar a dizer que tudo isto são questões políticas que nos privam a liberdade? 

David Quammen é um jornalista que acompanha há muitos anos as pesquisas feitas por virologistas em todo o mundo. O que ele pretende não é ensinar-nos a viver, mas a mostrar-nos de uma forma leve, o que se faz no mundo da ciência quando um vírus aparece. Os capítulos que li são bastantes interessantes por isso mesmo, aprendemos de uma forma lúdica algo bastante sério para todos nós.

O primeiro capítulo é o único dedicado ao novo Coronavírus e em comparação com os outros um capítulo bastante pequeno. Foi retirado de um artigo publicado em 28 de Janeiro de 2020 no New York Times numa altura em que muito pouco se sabia sobre ele.
O texto para mim e perante tudo o que ouvimos e lemos nos últimos tempos é surpreendente e realmente acho que é importante partilhar, e partilhar e partilhar…. Por isso e espero que não achem um exagero reproduzir aqui este capítulo:
Lembro que o artigo é datado de 28 de Janeiro e que dessa altura até aos nossos dias muita coisa mudou, incluindo a certezas de que o nCoV-2019 é uma pandemia a nível mundial. Aos dias de hoje, essa é a primeira meta não alcançada, tudo o resto será o rufar do tambor!




Nós criámos a epidemia do Coronavírus*

Ela pode ter começado com um morcego numa caverna, mas foi a actividade humana que a desencadeou.

O mais recente e assustador vírus que captou a atenção horrorizada do mundo, que causou o isolamento de 56 milhões de pessoas na China, que interrompeu planos de viagem e provocou uma corrida às máscaras de protecção é conhecido provisoriamente como “nCoV-2019”. É um nome desgracioso para uma ameaça sinistra.
O nome escolhido pela equipa de cientistas chineses que isolaram e identificaram o vírus, depois de ele ter infectado seres humanos no final de 2019 num mercado de marisco e animais vivos de Wuham, na província de Hubei, é uma abreviatura de “novo coronavírus de 2019”. Isso significa que ele pertence à família dos coronavírus, um grupo conhecido pela sua má reputação. A epidemia de SARS de 2002-2003, que infectou 8098 pessoas em todo o mundo matando 774, foi causada por um coronavírus, assim como o surto MERS que começou na Península Arábica em 2012 e ainda está activo (2494 pessoas infectadas e 858 mortes até Novembro de 2019).
Apesar do nome do novo vírus, e como bem sabem as pessoas que o baptizaram, o nCoV-2019 não é tão novo quanto se possa imaginar. Foi encontrado há vários anos algo muito parecido com ele numa caverna de Yunnan, uma província distante cerca de 1,6 mil quilómetros de Wuhan, por uma equipa de investigadores perspicazes, que notaram a sua existência com preocupação. A disseminação rápida do nCoV-2019 – mais de 4500 casos confirmados, com pelo menos 106 mortes, até à manhã do dia 14 de Janeiro, e os números terão aumentado quando isto for lido – é espantosa, mas não imprevisível. Que o vírus tenha vindo de um animal – provavelmente um morcego, e possivelmente depois de ter passado por outro ser -, pode parecer estranho, mas não surpreende de forma nenhuma os cientistas que estudam estas coisas.
Uma dessas cientistas é Zheng-Li Shi, do Instituto de Virologia de Wuhan, principal autora do artigo (disponível até ao momento apenas numa versão preliminar, não revista pelos pares) que deu ao nCoV-2019 a sua identidade e nome. Foram Shi e os seus colaboradores que, em 2005, mostraram que o agente patogénico do SARS era um vírus de morcego que se transmitia aos seres humanos. Ela e os colegas têm rastreado o coronavírus em morcegos desde então, alertando para o facto de alguns deles serem particularmente adequados a causar pandemias humanas.
Num artigo de 2017, depois de quase cinco anos a recolher amostras fecais de morcegos na caverna de Yunnan, informaram que haviam encontrado coronavírus em vários indivíduos de quatro espécies diferentes de morcegos, entre eles um chamado morcego-de-ferradura-intermédio, devido à aba semioval de pele que se projecta como um pires em torno das narinas. Shi e os colegas anunciaram agora que o genoma desse vírus é 96 por cento idêntico ao vírus de Wuhan encontrado recentemente em seres humanos. E os dois constituem um par distinto de todos os outros coronavírus conhecidos, inclusive aquele que causa a SARS. Nesse sentido, o nCoV-2019 é novo, e possivelmente ainda mais perigoso para os seres humanos do que os outros coronavírus.
Digo “possivelmente” porque, até agora, não só não sabemos quão perigoso ele é, como também não temos como saber. Os surtos de doenças virais novas são como as esferas de aço de um flíper: podemos atingi-las com as palhetas, abanar a máquina e bater nas bolinhas para ouvir o tilintar do flíper, mas o sítio onde elas acabam por cair depende de muitas variáveis, bem como de qualquer coisas que façamos. Isso ocorre principalmente com os coronavírus: eles sofrem mutações frequentes à medida que se replicam, e podem evoluir tão rapidamente quanto um espírito maligno saído de um pesadelo.
Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma organização privada de investigação com sede em Nova Iorque que estuda as ligações entre saúde humana e vida selvagem, é um dos parceiros de longa data de Shi. “Há quinze anos que alertamos para estes vírus.”, disse-me ele na sexta-feira, 17 de Janeiro, com uma frustração tranquila. “Desde o SARS”. Foi co-autor do estudo sobre morcegos e SARS de 2005, e também do artigo de 2017 sobre os múltiplos coronavírus do tipo SARS da caverna de Yunnan.
Daszak contou-me que, durante o segundo estudo, a equipa de campo recolheu amostras de sangue de dois mil habitantes de Yunnan; cerca de quatrocentos viviam perto da caverna. Aproximadamente três por cento deles tinham anticorpos para coronavírus relacionados com a SARS. “Não sabemos se ficaram doentes. Não sabemos se foram expostos quando criança ou adultos”, disse Daszak. “Mas o que isso diz é que esses vírus estão a transmitir-se repetidamente de morcegos para seres humanos.” Por outras palavras, o surto em Wuhan não é novidade. Faz parte de uma sequência de contingências correlacionadas que remontam ao passado e avançam para o futuro, enquanto as actuais circunstâncias persistirem. Assim, quando o leitor tiver acabado de se preocupar com este surto, preocupe-se com o próximo. Ou então fala algo a respeito das actuais circunstâncias.
Entre as circunstâncias actuais está o perigoso comércio de animais selvagens para alimentação, com cadeias de abastecimento espalhadas pela Ásia, África e, em menor grau, Estados Unidos e outros locais. Esse comércio foi agora proibido na China, temporariamente, mas também foi proibido durante o SARS, e depois teve permissão para ser retomado, e morcegos, civetas, porcos-espinhos, tartarugas, ratos-do-bambu, muitos tipos de aves e outros animais voltaram a ser empilhados, juntos, em mercados como o de Wuhan.
As circunstâncias actuais também incluem 7,6 mil milhões de seres humanos famintos: alguns pobres e desesperados por proteínas; alguns abastados, perdulários e com recursos para viajar de avião para onde quiserem. Estes factores não têm precedentes no planeta Terra: sabemos por registo fóssil, pela ausência de evidências, que nenhum animal de grande porte alguma vez esteve perto de ser tão abundante quanto os seres humanos são agora, para não falar da sua eficácia em apropriar-se dos recursos naturais. E uma consequência dessa abundância, desse poder e das consequentes perturbações ecológicas é o aumento das trocas virais – primeiro de animal para ser humano, depois de humano para humano, às vezes à escala pandémica.
Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens que abrigam imensas espécies de animais e plantas – e dentro desse seres, imensos vírus desconhecidos. Derrubamos as árvores; matamos os animais ou engaiolamo-los e enviamo-los para os mercados.
Destruímos os ecossistemas e libertamos os vírus dos seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas vezes, somos nós.
A lista dos vírus que surgem em seres humanos soa como um rufar fúnebre de tambor: vírus Machupo, Bolívia, 1961; vírus Marburgo, Alemanha, 1967; vírus Ébola, Zaire e Sudão, 1976; VIH, identificado em Nova Iorque e na Califórnia, 1981; uma forma de hantavírus (agora conhecida como Sin Nombre), sudoeste dos Estados Unidos, 1993; vírus Hendra, Austrália, 1994; gripe aviária, Hong Kong, 1997; vírus Nipah, Malásia, 1998; vírus do Nilo Ocidental, Nova Iorque, 1999; SARS, China, 2002-2003; MERS, Arábia Saudita, 2012; Ébola novamente, África Ocidental, 2014. E isto é apenas uma amostra. Agora temos o nCoV-2019, o mais recente rufo do tambor.
As circunstâncias actuais também incluem burocratas que mentem e ocultam más notícias, além de autoridades eleitas que se gabam de derrubar florestas para criar empregos na indústria madeireira e na agricultura ou de reduzir orçamentos para a saúde pública e a investigação. A distância de Euhan ou da Amazónia até paris, Toronto ou Washington é curta para alguns vírus, medida em horas, tendo em conta que se dão muito bem a apanhar boleia em aviões de passageiros. E se acha que financiar a preparação para a pandemia é caro, espere até ver o custo final do nCoV-2019.
Felizmente, as circunstâncias actuais também incluem cientistas brilhantes e dedicados e pessoal médico de resposta a surtos, como tantos no Instituto de Virologia de Wuhan, na EcoHealth Alliance, no Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, no CDC chinês e em inúmeras outras instituições. São pessoas que entram em cavernas de morcegos, pântanos e laboratórios de contenção de alta segurança, muitas vezes arriscando a vida, para extrair fezes, sangue e outros indícios preciosos de morcegos, a fim de estudar sequências genómicas e responder às principais perguntas.
Enquanto aumenta o número de casos de nCoV-2019 e de mortos, a taxa de mortalidade permanece bastante estável até agora: em torno ou abaixo de três por cento. Até 21 de Janeiro, menos de três em cada cem casos confirmados haviam morrido. Isto é uma boa sorte relativa – pior do que na maioria das estirpes de gripe, melhor do que a SARS. Mas a boa sorte pode não durar. Ninguém sabe aonde a esfera do flíper irá parar. Daqui a quatro dias, o número de casos poder estar na casa das dezenas de milhares. Daqui a seis meses, a pneumonia de Wuhan pode começar a desaparecer da nossa memória. Ou não.
Estamos diante de dois desafios mortais, a curto e longo prazo.
Curto prazo: devemos fazer tudo o que pudermos, com inteligência, calma e total comprometimento de recursos, para conter e extinguir este surto de nCoV-2019 antes que ele se torne, como é possível uma pandemia global devastadora. A longo prazo: devemos lembrar, quando a poeira assentar, que o nCoV-2019 não foi um acontecimento novo ou um infortúnio que nos aconteceu. Fez – e faz – parte de um padrão de escolhas que nós, os seres humanos, estamos a fazer.

* Artigo publicado em 28 de Janeiro de 2020 no New York Times, logo no início do que viria a ser a pandemia de COVID-19, antes de o vírus ter recebido o seu nome definitivo. (N. da T.)



3 de setembro de 2020



Pessoas Normais - Sally Rooney




É um dos livros mais falado neste Verão. A série que estreou à poucos dias na HBO, voltou a colocar o livros nos jornais e nas revistas.
Ontem quando abri a página da WOOK, até descobri que tinha a marca de Ler+ (Plano Nacional de Leitura).
Não tinha quando comprei o livro á bem pouco tempo. Digo á bem pouco tempo, porque este é daqueles tipos de livros que não espera muito tempo na estante para ser lido.
Não sei se estou a dizer isto de forma correcta, mas este tipo de história/escrita é das minhas preferidas. As relações humanas.
Sim! Estamos a falar de relações humanas entre as pessoas. E estas pessoas, bem vistas as coisas, são pessoas normais, como tu e eu.

Também eu, como as personagens principais acredito que por vezes, ou na maioria das vezes não sou uma pessoa normal. Acho que todos nós em alguma fase da nossa vida passamos por isso. Não é verdade?
Que não penso, nem me admito de forma normal, e que a minha vida é condicionada por inúmeros factores que ao longo da vida me diminuem e fragilizam. Mas isso é a vida normal. Dizem que sim! Vamos acreditar que sim.
Talvez porque não tenhamos a capacidade de ver o outro, crie na nossa mente esta ideia que temos tudo, menos normalidade.

Sally Rooney apresenta-nos isso mesmo. Dois adolescentes que se conhecem de uma forma perfeitamente normal, mas por convenções e incapacidades mútuas ao longos dos anos vão-se aproximando e afastando à conta de mal entendidos, e inaptidão de se assumirem como um casal.
Esta incompetência faz com que tanto um como outro tenham outros companheiros, mas a intimidade entre os dois regressa sempre como um remédio para os seus males.
É importante referir que apesar da aparência de pessoas normais, cada um esconde dificuldades emocionais que ao longo do livro os limita como pessoas e até como um casal.
Há uma dificuldade em se entregarem um ao outro totalmente, e é dessa dificuldade que a história se alimenta.
Basicamente a história até se torna repetitiva nessa aspecto, até porque terminamos o livro com mais uma possibilidade de separação entre os dois.
No entanto o que define a história como algo a meu ver bastante interessante é a evolução das personagens como pessoas e a capacidade de resiliência das mesmas perante as situações.

Connell e Marianne, assim se chamam.
Enquanto que Marianne evolui em toda a história, passando de uma pessoa isolada, solitária, que aceita determinados comportamentos agressivos e doentios de quem a rodeia. Enfim! Nos tempos modernos facilmente rotulada como uma pessoa com baixa auto-estima. Mas como referi no inicio, evolui a muito custo, com a aceitação final que alguém pode realmente cuidar dela e curá-la de todas as suas fragilidades. A verdadeira paz interior de Marianne vem da capacidade de entender que Connell é a única pessoa que ama e que a pode salvar de si mesma. 
Connell pelo contrário, não admite perante os seus amigos o seu relacionamento intimo com Marianne e isso destrói prematuramente a relação. A partir daí perde-se pelo caminho, pois as suas atitudes baseiam-se sempre nesta premissa.
Chego à conclusão que mais uma vez a pessoa generosa nesta relação é a fragilizada Marianne. 
Levam alguns anos a perceber algo bastante simples. O amor que tem um pelo outro.
Pessoas normais, portanto. Como todos nós.

Para além deste tema o livro aflora outros temas de uma forma subtil.
As disfuncionalidades familiares. A falta de amor entre pais e irmãos.As relações tóxicas escolares. Os comportamentos agressivos na adolescência e a forma como as comunidades escolares dentro da sua estrutura podem condicionar os comportamentos uns dos outros. A escola, e a passagem pela adolescência são um verdadeiro campo de minas. Há que ter a habilidade de não as pisar. Digo já difícil. Normalmente quem as pisa saí destroçado. Como qualquer pessoa normal.