25 de fevereiro de 2022

 


SKIFF - "OS GATOS"

TEXTO INÉDITO



De vez em quando Skiff descia as escadas sorrateira. Distraía-se na cozinha e voltava a subir.
Espreitava pelo parapeito da janela e colocava o nariz de fora. Era Verão. O Sol era ensurdecedor, o calor proibitivo.
O quarto era incomodo, a sala sufocante. A janela aberta ao fim da tarde era um prenúncio de libertinagem.
E Skiff olhava. Skiff deitava o nariz de fora, voltava a descer as escadas e demorava-se e voltava a subir.
Miou aos meus pés. Olhou-me com um olhar de descrédito. Eu distraia-me constantemente e isso irritava-a. Senti no seu olhar a recriminação.
Confesso que dei conta deste frenesim mas não lhe fiz caso. Assimilei-o, mas não o compreendi completamente.
Tomei-o como aborrecimento. Eu, ao contrário dela, não estava nada aborrecida. Eu tinha um mundo diante dos meus olhos. O início da tradução de um livro.
O que quer que fosse que a Skiff estaria a sentir eu não poderia curar. E aborrecimento era o seu nome do meio, por isso, seria uma independência que ela teria de aprender a lidar.
Voltou a miar perante o meu desapego. Bem vistas as coisas, eu não saíra do lugar. Eu não me mexera sequer. Eu não lhe prestara nenhuma atenção.
-O que é que tu queres Skiff? A janela já não te chega?
Ela voltou a miar e a subir o parapeito. Colocou o nariz de fora.
Eu levantei-me da cadeira arreliada, a contragosto. Também eu exigia respeito pelo meu silêncio. 
Os valores inestimáveis da minha condição independente. As minha manifestações não de deveres, mas de vontades.
Puxei-lhe a orelha quando encostei o meu corpo ao seu. Também eu pus o meu nariz de fora. Cheirei o ar quente e doce. O cheiro a Sol e Serra.
Fechei os olhos e respirei fundo.
Abriu-os e olhei para a porta. Lá em baixo o gato da vizinha duas casas abaixo, olhava para cima. Em silêncio, perdia os seus olhos amarelos e vítreos nos nossos.
Era um gato gordo. Pelo seco e cansado. Barriga generosa da idade.
-Tens a certeza, Skiff? - Perguntei-lhe.
Ela olhou-me, não respondeu. Voltou a pôr o nariz de fora e retribuiu-me um olhar de dúvida.
Eu puxei-lhe a outra orelha e dei-lhe um beijo no lombo.
-Pois! Eu também acho. Este é velho e chato. Haverá outros princesa! Haverá outros...

23 de fevereiro de 2022

 


A MINHA MULHER - ANTON TCHÉKHON




Li-o por recomendação. Veio de Shaun Levin, num pequeno curso que fiz de escrita de conto.
Não deslumbra por aí além. São quatro pequenos contos e o primeiro que dá titulo ao livro será no meu entender o melhor.
O escritor é de outra era. Nasceu em 1860 e fala-nos de uma Rússia ociosa. 
Creio que nos quatro contos, o seu principal objetivo é colocar a nu, uma sociedade russa ociosa, que nada faz, que vive do trabalho dos outros e que intelectualmente não tem qualquer ponto de apoio.
Todos os contos são construídos sobre as perspetivas do homem. É ele o verdadeiro motor de todas as tramas. O principal alvo? A mulher.
Ao ler estes contos recordei as frases de Virginia Woolf no seu pequeno ensaio "Um quarto só meu".
É sempre delas que se fala, de uma maneira ou de outra.
Para a enaltecer ou rebaixar. Para as colocar a um canto das suas capacidades ou para as demolir com as suas conclusões.
"A minha mulher" é um conto interessantíssimo nesse ponto.
Escrito na primeira pessoa, um homem moralmente irrepreensível, cordial, respeitoso é incapaz de promover a empatia. Vive na solidão e alimenta uma vida fora da vida com a sua própria mulher. Deseja-a ardentemente. Deseja mas não compreende "É necessário que ela pense nisto, é necessário que perceba que, aconteça o que acontecer, sou seu marido e respondo por ela perante a minha consciência e perante a sociedade."
Deseja mas não lhe dá crédito. Deseja mas não lhe dá valor "Mas agora que a via chorar, sentia o ardente desejo de descobrir o fundo daquela alma e de olhar lá para dentro para ver o que encerrava."

Quatro contos "A minha mulher"; "Um caso médico"; "O monge negro" e "A noiva"
No fundo a formula é simples. Um pouco do ambiente envolvente, muito da condição económica, tudo da condição humana. Nada se faz, contudo, sem o provir do sentimento e esse tem, tantos nuances como o mundo tem seres humanos.
 


22 de fevereiro de 2022

 


OS INVERNOS EM PARIS - ISABEL RIO NOVO





Um inédito do Expresso. É um livrinho pequenino com dois textos inéditos de dois escritores portugueses diferentes. Eles "casam" por empatia. Estão de cabeça para baixo, um em relação ao outro.
Se abrirmos a primeira página e procurarmos a informação, encontramos o propósito desta coleção.
"Coleção Multimédia inéditos do Expresso"; versão áudio e versão e-book de cada um dos textos e ainda uma banda sonora composta por Rui Massena. Publicação (Fevereiro 2018)
Tenho esta coleção na minha estante como tantas outras do Expresso. Já tinha lido alguns textos inéditos, mas no principio da semana, num movimento de relance parei os olhos neles.
Olhei para um, (o nome Isabel Rio Novo de quem recentemente comprei um livro) e dei conta que não. Não! Este eu não li. Abri o livro depois de o tirar da estante e encontrei-me na primeira página, depois passei para a segunda, ali especada, em pé, encostada à estante.
Fechei o livro e coloquei-o no mesmo lugar. Depois! Pensei. A seguir, memorizei.
Já devem ter reparado que esta patareca aqui não tem boa relação com leituras simultâneas de ficção. Se juntar um não-ficção com um ficção até é capaz de deslizar direitinho. Mas não peçam mais a esta patareca.

Voltei lá dois dias depois e o encosto que dei à estante foi menos apressado.
Descobri uma Isabel Rio Novo, uma Patrícia Reis e uma Maria Teresa Horta. Ainda não tinha passado os olhos por eles. 
Agora, estão no topo do Evereste das minhas próximas leituras e foi com desvelo que sentei-me no sofá da sala com a lareira acesa e traguei num ápice estas cinquenta páginas de "Os Invernos em Paris." 
Suspirei no fim. 
Eu compreendo o exercício de condensação. Qual a capacidade de colocar num limite imposto, tudo!
Cortar o supérfluo, manter apenas o essencial.
"Os Invernos de Paris" são assim. No limite está lá tudo dentro.
Aquela pessoa funcional desfia o essencial da sua vida dentro daquele limitado espaço temporal. A sua infância, ou o que de mais importante aconteceu nela, a sua passagem pela escola, as suas viagens e a sua tese. Paris. Os seus amores.
Há espaço para todos, Christian, Ricardo, Francisco por fim.
Como todos desapareceram da sua vida. A morte da mãe. O luto patológico.
O frasco de comprimidos que se insinua diante dos seus olhos.
Confesso que o último capítulo surpreendeu-me com o seu sussurrante "contínuo a funcionar"
Se esticarmos as pontas não teríamos ficado por uma história de cinquenta páginas. Quem sabe um dia Isabel Rio Novo não tenha vontade de exercitar esta menina.
Esta pessoa funcional que continua a funcionar.

"Continuo a funcionar. Funciono sim, discreta, regularmente. A vida pode ser interminável como um Inverno."


18 de fevereiro de 2022

 


SKIFF - "OS OUTROS"
(TEXTO INÉDITO)


Os outros eram-lhe indiferentes.
Quedava-me a olhá-la por vezes. O seu comportamento desviante perante os outros seres humanos.
Não sentia nada por eles. Não alimentavam o seu ego, nem lhe remoíam o espírito e isso era inquietante.
As visitas eram saudadas com indiferença.
Por vezes dormia. Se a visita se alongava pela tarde toda como a Joana fazia, ela dormia.
-Consegues perceber que a tua gata é tão anti social como tu?
Foi uma pergunta tonta mas cheia de sentido. A miúda raiava os catorze anos e tudo o que dizia estava impregnado de confiança e sabedoria.
Não lhe respondi, olhei a Skiff que dormia no parapeito da janela e ressonava ligeiramente.
Ninguém ressona cá em casa. Só ela! Ligeiramente.
-Eu não sou anti social - acabei por dizer.
A minha voz acordou-a e ela desceu do parapeito. Sentou-se no sofá ao lado da Joana que se perdia num desenho.
Olharam-se. Avaliaram-se e Skiff olhou o desenho. Era o seu perfil adormecido. Despertou um pouco. Largou aqueles olhos ensonados e aborrecidos. Perdeu-se também ela ali um pouco. Sentia-se ligeiramente reconhecida.
Retirei o meu olhar dos livros, da folha de texto do computador, olhei a janela e senti o calor morno do Sol.
Skiff mantinha os seus olhos presos no desenho hipnotizada, fascinada.
-Não parece tão anti social assim - respondi acanhada.
A verdade é que nem eu acreditava nisso. Ela era solitária e cultivava a sua própria solidão. Havia um abismo chamado silêncio no qual ela, exigia respeito.
Seria porventura a sua própria independência. Algo que devemos a nós próprios. Ela gritava-o como um valor inestimável.
Joana bufou perante o olhar reconhecido mas impenetrável da gata. Olhou-a e colocou a ponta do seu lápis por baixo do seu queixo. Subiu-lhe ligeiramente a cabeça e uniu os seus olhos aos da reservada Skiff.
-Como és diabólica, Skiff. Tão fria, tão severa. Como és impenetrável. Como estás ligada a este lugar, diabólica Skiff.
Skiff não lhe fez caso. Retirou o seu rosto do peso do lápis e olhou-a com desdém. Voltou ao parapeito da janela e adormeceu.
-Meu Deus, como tu a desumanizaste!
Voltei o meu olhar para os meus livros e procurei entre eles o meu valor inestimável.
-Eu! - soltei a minha expressão mais inocente. - Que tenho eu a ver com isso?  

16 de fevereiro de 2022

 


VALE A PENA? CONVERSAS COM ESCRITORES - INÊS FONSECA SANTOS



Foi uma pequena surpresa este livro de ensaios.
Adquiri-o na leve esperança de compreender o que transborda na alma de um escritor.
Se são loucos ou génios, ou se a sua vida, abnegada e povoada de obsessões pela escrita os consome diariamente.
Deparei-me com algo bem maior do que isso e subjuguei o meu pensamento.
Várias palavras a quem não damos o devido valor.
Literatura, literatura de entretenimento, arte, cultura, leitura, criatividade, curiosidade, inquietude, conhecimento.

Como devem de compreender o meu pequeno exemplar desta edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, está povoada de Post´it, povoada de frases sublinhadas e de notas pessoais de rodapé.
A palavra profissão não encaixam neste universo de renuncia e ideias fixas, esta perseguição diabólica pela palavra escrita, pelo contexto, pela história, o enredo e as personagens.
Ser escritor não vem na folha de recibo do vencimento. Não é algo que se aprende na escola. É algo que se traz dentro do corpo. 
Esse caminho, esse ADN como diz Afonso Cruz está no sangue e na alma e um escritor não pode renunciar a ele. Pode fugir-lhe. Pode chegar-lhe aos quarenta sempre a fugir-lhe, mas acabará por enfrentá-lo.

Este livro é um ensaio de conversas entre Inês Fonseca Santos, jornalista e também escritora com outros escritores.
O livro, atropela as suas opiniões sobre o que é ser escritor, o papel dele na sociedade, o que é ou não literatura.
Confesso que a minha opinião por vezes não é tão linear.
O conceito profissão de "escritor". o mercado editorial, o papel dos editores e das editoras. E o leitor.
Aquele que é o "companheiro de percurso" do escritor. Aquele que Mário de Carvalho designa por "aquela pessoa que faz o livro connosco. O leitor traz a sua vida, a sua vivência pessoal, traz tudo o que leu, traz os filmes que viu, etc, e faz com isso um livro."

Muito se poderá dizer sobre este livro. O seu despreendimento e a capacidade de redenção que apresenta é tremenda.
Aquele caminho que tem de ser percorrido, coloca o escritor num patamar diferente da maioria.
Escrever é mais do que uma profissão ou tendência.
Escrever é uma obsessão para quem o faz, feita de resiliência e impossível de partilhar.
É um ato de solidão e isolamento. É um ato de abandono, sem a devida retribuição pecuniária.
Quem se entrega a isto só pode estar louco.
É uma bênção termos tantos loucos! 


"A leitura é uma espécie de celebração mágica. É a maneira de paradoxalmente descobrirmos que a realidade é aquilo que sonhamos e não aquilo que temos entre mãos. É essa espécie de travessia de continentes. Que não existem. E nos quais reconhecemos aquilo que é mais profundo em nós e que não pode ser dito."

"A escrita nasce de uma pulsão íntima, sempre singular, mas corporalmente evidente e irrecusável, traduzida na necessidade de escrever diariamente ou quase diariamente."

"Escrever não é só escrever, é ler, não fazer nada, é estar atento, esperar."

"Os livros são bocados de carne de uns que invadem a vida de outros. São objectos de alma inqualificáveis e não identificáveis mas indispensáveis à sobrevivência humana. Quem se dedica a este ofício é certamente louco, e tem também uma costela de missionário."

"Nenhum escritor que se preze escreve para um público, nenhum escritor que se preze escreve uma obra-prima para ganhar a vida, nenhum escritor que se preze sabe por que ou para que escreve e, no entanto, nenhum escritor que se preze pode parar de escrever."




15 de fevereiro de 2022

 


O QUE EU QUERO COMPRAR EM BREVE


Chamo-lhe as listas da desgraça. Aquelas que me dão cabo do orçamento mensal, anual, e o que mais pode haver.
Tenho o conforto de ter as paredes parcialmente forradas de livros, na sala, no quarto, na mesa de cabeceira, em cima do sofá, no escritório.
As estantes feitas de caixas de madeira de garrafeiras de vinho que se vão moldando às necessidades. Caixas lixadas, envernizadas que são também elas um pouco dos meus livros. 
Afinal! Foi graças a elas que finjo que sou carpinteiro.
E querem saber a verdade! Estou a adorar esta atitude de carpinteiro aos domingos à tarde.
Quanto ao que eu quero comprar em breve, parece uma sucessão de lista interminável.
Aqui vai a minha resenha do mais consumista que pode haver!







11 de fevereiro de 2022

 



QUAL A IMPORTÂNCIA DE ESCREVER?



Mais uma pesquisa. Confesso que as escolhas eram mais variadas ou eu olhei invariavelmente para o lado. Aqui a diversidade iluminou-me.

Credibilidade, confiança, organizar e articular ideias, criatividade, autoconfiança. Refletir, organizar ideias e transmiti-las com mais clareza... Escrever é pensar no papel.
Escrever são emoções... Escrever são emoções!

Voltei atrás, caderno na mão. Porquê a pressa. O combinado são três páginas e eu faço constantemente batota. Como se não tivesse mais nada para escrever. Encontra!
Procura dentro de ti, não deixes ficar aí.
Dói-te a cabeça? Ótimo! Coloca no papel. Dói-te o dedo do pé?
Melhor, escreve e descreve a dor.
Ela poderá servir mais tarde para alguma coisa.

Agora a sério! Qual é a importância de escrever?
No limite da simplicidade, tirar cá para fora esse lago de palavras, esses seres imaginários que tens dentro de ti. 
E para ti? O que é escrever?


9 de fevereiro de 2022

 


A HISTÓRIA DE LISEY - STEPHEN KING



Estas coisas são tramadas. Tantos anos a fugir de Stephen King, para esbarrar nele num livro sobre escrita.
Senti-me uma filha a receber lições condescendentes de um pai. Senti-me na obrigação de lhe ler a obra e compreender o que tinha compreendido dele como ser humano. 
Confesso que andei meio perdida na escolha do primeiro título. "Misery" e "Carrie", estiveram na lista, mas acabei por decidir-me por esta "A história de Lisey"
E que livro, meu Deus! Jesus, Maria José!
Que lago de palavras e expressões. Que voltas soberbas que King deu à história. Que pontas que se vão juntando, umas a seguir às outras com a delicadeza de quem sabe o que faz.

Vou dizer algo muito estranho, mas custou-me muito lê-lo. É sem dúvida uma sensação estranha. Duas semanas intermináveis que me pesaram na alma. Eu não conseguia avançar condignamente. 
Há uma necessidade do autor de manter-nos presas ao lago e se não tivermos cuidado, também nós não conseguiremos sair dele.
Em determinada altura eu acreditei que Lisey não teria forças para o fazer. Scott só  o conseguiu graças a ela. Ora aí está, a suprema importância da pequena Lisey, da apagada, insignificante, a que seguia uns passos atrás, a que não era referida, ou apenas pela esposa, a cujo nome raramente era mencionado. A pequena Lisey que mantinha à tona da realidade humana o génio, a estrela, a vedeta Scott. 

Em retrospetiva todo o livro assenta na possibilidade ou não de desistir. Até que ponto estamos mesmo dispostos a aguentar, ou a simplesmente desistir.
"Aguenta sempre que possas", uma das expressões mais carismáticas de Scott. Ele dava-lhe com que beber, ela devolvia-lhe o alento para continuar.
Vou contar-vos outro segredo. Também a história de Lisey é uma história de amor e de luto. Ignoramo-lo até ao limite das possibilidades. 
Confesso que esta pintura não estava nos meus planos. 

O espaço temporal desta história difere em dois anos da morte de Scott.
Lisey, atreve-se a recordar o marido, a fazer-lhe o luto e a despedir-se dele.
As lembranças estão sempre presentes, mas teimamos em sobrepor-lhe camadas sobre camadas. 
Adicionar-lhe palidez e opacidade. Transformamo-las em sacos de plástico descartáveis.

Vou contar-vos outro segredo. Também estamos perante uma história de ilusão. De floresta encantada, de um lago que cura, de um sol ao entardecer puro no local onde vamos todos beber as palavras. Há ilusão.
Onde o eu criança se perde na terra do nunca e o eu adulto esquece o caminho para lá voltar. Os que não esquecem tem sempre um pé lá e outro cá. São acometidos pela soberba de genialidade, vivem no mundo paralelo. Quem sabe os únicos que realmente vivem. A realidade por vezes é dura demais.

Esta é uma história cheia de recursos. Por vezes, no meu entender um pouco longa. Não fica nada por dizer, nem nada por explicar. Uma história para afogarmos a nossa capacidade de entendermos as várias nuances da loucura humana e pasme-se! Como estamos tão perto dela.
Como ela nos roça devagar e insinua descaradamente. Como "a coisa", que pode ter pelos, ou escamas, mau hálito ou cheirar a esgoto ou quem sabe, vir adocicado com um profundo cheiro a rosas (um dia vão compreender), está ali, ao virar da esquina
Aí tudo pode acontecer "meu velho". 


"Dizia que escrever um livro era como encontrar um fio colorido entre as ervas e segui-lo para onde ia dar. Às vezes o cordel partia-se e ficava-se sem nada. Outras vezes, quando se tinha sorte, coragem e perseverança, encontrava-se o tesouro. E o tesouro não era o dinheiro que se ganhava com o livro; o tesouro era o livro(...) O que nunca lhe tinha dito (mas ela sempre havia desconfiado) é que se o cordel não se partia o levava sempre de regresso ao lago. Ao lago onde todos vamos beber, onde lançamos as nossas redes, onde nadamos, e onde por vezes nos afogamos."



8 de fevereiro de 2022

 





SKIFF

A catraia entrou em casa enrolada numa toalha e eu fiz um ar de desconfiança. Não fazia parte dos meus planos ter uma bola de pelo ambulante a cirandar pela casa, com um caminhar frenético e um miar de piedade.
-Tens a certeza que isto! - olhei-a de esguelha - Isso! - apontei-lhe o dedo inquisidor - é boa ideia?
Ele encolheu os ombros e sorriu timidamente. Encostou-a mais ao  peito. O animal tremia de frio ou de medo, não sei.
-É linda.
-Vai sujar tudo, deixar a casa cheia de pelos, subir para o sofá, rasgar os cortinados. Vai tomar posse. Eu não sei lidar com isso.
-Só faz o que deixarmos que faça - fez a sua melhor expressão. Ele claramente esforçava-se. 
Eu, ao contrário dele, tinha pouca capacidade para contrariar alguém. Pouca capacidade para argumentar com alguém, e pouca habilidade para ignorar aquele olho azul que era o reflexo do meu.
-Tem de tomar banho. Não a quero cá em casa sem banho. - Acabei por dizer em pleno juízo da minha ruína. Já não conseguia olhar para ela. 
-É um gato! Banho?
-Sem banho não há gato!
-Gata. É uma fêmea.
Olhei-o de esguelha. Ele queria baralhar-me ou estaria admirado com a facilidade da vitória.
-E come na cozinha. Necessidades na copa das máquinas. 
-Estás a ouvir catraia? - Ele sorriu radiante. Já não era um sorriso tímido cheio de condicionantes, era um sorriso vencedor. Enquanto o fazia olhava-a com ternura e puxava-lhe levemente a orelha.
A catraia foi ficando. Acredito que lhe tenha desarranjado o espírito nos primeiros tempos.
Encurralada na casa das máquinas para aprender onde se fazia as necessidades, apreendeu a comer na cozinha, a tomar banho todas as semanas e a dormir no sofá da sala em cima de uma manta. Ali, e só ali.
Eu fazia o possível para ignorá-la e esperava que ele fosse o seu dono.
Mas ela prendia os seus olhos nos meus desde que eu saía do quarto. Seguia-me abnegadamente.
Eu estranhei esta atitude e pensei que seria um teste. Ela queria provocar-me.
Mas se ela quisesse provocar-me só teria de subir os cortinados, correr pela casa ou rebolar pelas escadas.
Não! Ela não fazia nada disso. Seguia-me pela casa ou esperava por mim no sofá.
Subia o parapeito da janela quando o cortinado estava desarredado e olhava pela janela. Dormia horas ali ao Sol da tarde.
Enrolava-se nas minhas pernas, colocava a sua cabeça no meu colo, olhava-me enlevada sem pestanejar.
Eu sou distraída e perdida nos meus papéis, não a vi descer do parapeito da janela e apenas senti o roçar do seu pelo nas minhas pernas. O Sol já fugia, ela deu conta, eu não. Olhei-a profundamente distraída e quase por favor, mas ela exigiu atenção. Miou freneticamente.
-O que tu queres Skiff?
Foi a primeira vez que a chamei assim. Não era diferente de catraia. Era o seu significado em Italiano.
Ela não estranhou, não mostrou que não era com ela. Não negou o nome. Olhou para mim e miou. Olhou para a cadeira ao meu lado.
Queria a sua manta em cima da cadeira.
Pedia a minha permissão para sentar-se ali, mesmo ao meu lado.
Exigia que eu fizesse parte da sua vida. Foi a mim que ela escolheu.
Ela estava disposta a ser velha antes do tempo. Pachorrenta e submissa se preciso fosse. Ela entregava-me toda a minha vontade em troca da sua posse.
Ela queria possuir-me.
Assim a minha Skiff respondia ao meu chamado, ouvia os textos que eu escrevia, as palavras que eu traduzia e os desabafos que eu sussurrava como se falasse para o mundo.  
Respondia com miados surdos e sussurrantes e perdia-se deitada no chão da casa de banho à espera do banho.
Com seis meses a Skiff era mais velha, lenta e paciente que qualquer gatarão das redondezas que dormia ao Sol o dia todo.
Ela era o meu rosto, a mentalidade de um idoso, encerrado num corpo jovem e cansado. 


texto inédito

2 de fevereiro de 2022

 


O SANGUE DOS ELFOS - ANDRJEJ SAPKOWSKI

Por mim ficava aqui até ao final da saga.
É o problema de ler sagas e ler histórias de fantasia.
Tenho um carinho especial pelo "Bruxo" Geralt de Rívia.
Para um mutante que os elixires, os venenos e as porções transformaram num ser não ser, é bastante frágil e humano.
Gosto muito da Ciri. Gosto mais da Ciri do livro do que da Ciri da famosa série do "NELFLIX". 
Não consigo imaginar a Ciri como aquela que aparece no ecrã da minha televisão.
Vejo nas páginas do livro uma Ciri mais inocente, mais inteligente, mais meiga e mais criança.

Gosto muito de Yennefer. Aliás, é a minha personagem preferida. É uma personagem cheia de nuances.
Uma personagem apaixonante e apaixonada. Sem coração como diz. Garantidamente sem coração.
É uma personagem solidificada na magia, no caos, na arte e na ciência. Ela é uma maldição e uma bênção.
As aulas que ela dá a Ciri, a maneira como ela atendeu ao pedido de Geralt de Rívia. O despreendimento que ela tem pela vida e a maneira jocosa como ela assimila as situações dão-lhe uma áurea reconfortante e provocadora. Estar ao pé dela pode ser gratificante mas também pode ser bastante perigoso. 
E porque tudo isto tem a capacidade para ser uma saga?
Porque as personagens são maiores que a própria história. As personagens tem tanto potencial que se recriam e alimentam a si próprias.
Humanamente impossível ficarmos por um livro. 
Jaskier, o trovador impertinente.
E a magia! Aí como eu gosto de magia!

"Porque em cada um de nós há caos e ordem, o bem e o mal."