3 de novembro de 2022

 



A OUTRA VENEZA - PREDRAG MATVEJEVITCH


Um livrinho pequenino que trouxe da feira do livro de Lisboa. Veneza, a outra Veneza foi o primeiro livro que li desta coleção da Terra Incognita da Editora Quetzal.

Confesso que já espreitei as outras obras e existe por lá um título ou outro que figurará nas minhas estantes.
Porque veio este e não outro? Porque não as praias de Portugal ou os banhos das Caldas? Porque Veneza é Itália e Itália é um luxo na minha imaginação.

Não é este livro que nos abre os olhos para Itália dos sonhos românticos, mas tem um quê de inocência e prazer associado a uma maneira de viajar e conhecer outras paragens que encanta-me.
De que nos serve visitar uma cidade num dia; os seus monumentos e pontos turísticos se de lá nada registamos. 
Quantos de nós conhece Óbidos para além das duas ruas principais?
Este breve livro de Predrag Matvejevitch explica isso mesmo; não nos dá uma visão panorâmica de Veneza, mas um deslumbre das sombras que nela habitam. Fala-nos do nascer e por do sol, do vento, dos reflexos, da ferrugem e da patine; as cores e as suas nuances. Os filtros da bruma que não veremos em nenhuma cidade, nem mesmo na nossa se não nos dispusermos a olhá-la.
Fala dos jardins, flores, arvores e plantas; refere o esquecimento.
Tem palavras doces com que trata a Sereníssima.
Não esquece o mar e os marinheiros; os judeus, eslavos e o entrelaçado de línguas e culturas que construíram Veneza.
Fala do pão; O pão dos judeus, dos otomanos dos arménios e dos venezianos - o pão das lágrimas, o pão da nostalgia, o pão do exílio e o pão da humildade; não esquecer o pão de Pádua e o pão da paciência.  
Relembra os albergues e tabernas, os asilos psiquiátricos onde "os internados nessa instituição, como relata uma das suas crónicas, acusavam-se mutuamente de não regularem bem da cabeça, troçando uns dos outros. Cada doente andava à procura de outro mais doente que ele, cada louco de outro mais louco."
E fala dos barbeiros, "Em Veneza, mais do que em qualquer outra cidade, dava-se-lhes o nome de figari."
"Em parte alguma ele eram mais numerosos, mais hábeis ou mais loquazes, nem sequer em Sevilha."

Para conhecer esta Veneza ou qualquer cidade do mundo a lógica da nossa própria existência teria de ser diferente. A quem o consiga só posso apelidar de afortunado; muitas vezes passamos os olhos e não vemos.

31 de outubro de 2022

 


A IDADE DA INOCÊNCIA - EDITH WARTON



Releitura.
Li-o pela primeira vez ainda adolescente, ainda dependente dos livros da Biblioteca Municipal.
Essa primeira impressão não recordo, mas tenho presente que o li - e isso, no emaranhado de livros que peguei e larguei e li e reli nessa altura e que hoje não dou conta tem o seu significado.
Vi o filme; tinha que ver - sou fã de Michelle Pfeiffer.

Confesso, estou com alguma dificuldade em fazer a opinião deste livro; avassalou-me por completo.
Abriu fissuras que tento reparar nestes dias seguintes; o desinteresse por qualquer outra leitura, pela escrita, pelos hábitos adquiridos.
É dificil explicar o impressionismo simples da dignidade de uma mulher; Ellen Olenska.
Tudo o mais é supérfluo e acessório.
O essencial está nas entrelinhas desta história.

Terminei-o há dois dias e ainda estou a remoê-lo. A idade da inocência; o tempo em que acreditamos que seremos capazes de tudo, e o limite de compreendermos que nada conseguimos.
 



25 de outubro de 2022

 


BARTLEBY, O ESCRIVÃO - HERMAN MELVILLE



Dar uma opinião sobre Bartleby? 
Preferia que não.

Livro de renúncia; poderá ser filosófico ou apenas utopia. Provavelmente foi um momento hilariante de Herman Melville.
Com uma pitada de moralidade e imoralidade diz-nos tudo e não quer dizer quase nada. 
Como Bartleby responde; preferia que não.   




23 de outubro de 2022

 


O DESPERTAR - KATE CHOPIN





"O pássaro que se alcandorar acima do plano horizontal da tradição e do preconceito tem de ter asas fortes. É um triste espectáculo ver os que fraquejam adejarem de volta à terra, contundidos e exaustos."

Um dos melhores livros que li este ano. Esta história simples contada com subtileza sobre a condição da mulher numa sociedade feita por homens e para homens. 
Eles decidem até ao fim; dispõem as cartas e baralham as ilusões e o pássaro que tenta voar, que se predispõem a inverter a tradição e o preconceito acaba por cair.
O triste espectáculo final faz lembrar um comentário que ouvi em tempos sobre os contos de Maria Judite Carvalho; "por mais que tentem, elas, nunca conseguem."

Edna nada consegui; não porque não tentasse. 
Nestas páginas assistimos à tentativa de transformação da mulher; a visão clara, as perceções e as realidades mais primitivas. 
Edna caminhou sobre elas com a inocência da descoberta, ciente dos olhos reprovadores da sociedade que a poderia marginalizar. 
Bem perto do fim, Edna responde a Robert aquilo que eu esperava ouvir da sua boca quase desde o inicio do livro. 
Falhava-me a compreensão; como esta mulher teria a capacidade de redescobrisse a si própria, apenas para servir outro homem, ou outro amor?
"Foste um rapaz muito, muito pateta, perdendo o teu tempo a sonhar com coisas impossíveis, quando falas em que o Senhor Pontellier me libertar! Eu já não sou um dos pertences do Senhor Pontellier de que ele possa ou não servir-se. Eu dou-me a quem eu quiser. Se ele dissesse, "Toma, Robert, fica com ela e sê feliz: ela é tua", eu ria-me na cara dos dois."

Pois é! A descoberta ia para além da palavra servir, e a Robert outros valores demoníacos soaram mais fortes; Edna sem opções - voltar a trás estava fora dos limites da sua natureza - restou-lhe o sacrifício de si própria em troca de si mesma. 
Eu sei! É uma dualidade o que acabo de escrever, mas são duas coisas diferentes. O eu como pessoa e o eu como alma humana; o estar e o estar sem estar.
Edna já não estaria por isso cedeu.  
    


 


DEUSES DE BARRO - AGUSTINA BESSA-LUÍS



O meu principio com Agustina Bessa-Luís é o seu princípio. 
Deuses de Barro foi escrito pela escritora aos dezanove anos e manteve-se até hoje inédito.
No prefácio, Mónica Baldaque refere que Agustina enviou-o ao escritor Sousa Costa, pedindo-lhe um prefácio ao qual ele lhe responde que não o faria e aconselha-a; "a que escreva um novo romance, a que nos dê um novo trabalho a prova real das suas possibilidades"

Escreve outra coisa Agustina, mas não deixes de escrever, parece-me a mim o que está implícito na sua resposta. Talvez a frase que em consciência qualquer escritor amador/iniciado precisa de ouvir.
Agustina fez-lhe a vontade e escreveu, escreveu muito.

Deuses de Barro não é um livro que ficará na memória; escrito em três ou quatro meses quando Agustina tinha apenas dezanove anos.
Nenhuma personagem é digna de lembrança ou sequer transmite piedade, complacência, amor ou generosidade. 
Nenhuma delas figurará no quadro daquelas personagens que nos machucam e deslaçam. 
A pobreza e a riqueza que as coloca estanques em cada submundo, não lhe dá nenhum travo amargo ou doce, e a Ana, o José Maria e a Maria José são apenas futilidades presas à condição de si mesmas. 

Agustina apanha esse vazio; aí está a genialidade desta narrativa. O retrato perfeito do mundo de castas e sociedades. A educação que cria abismos entre seres e os difere e limita. 
Nem os Deuses nivelaram a humanidade, só poderiam ser Deuses de Barro.  


22 de outubro de 2022

 



TEORIA KING-KONG - VIRGINIE DESPENTES



O livro é controverso; não digo para o mundo mas para mim. Quando terminei de lê-lo apenas o silencio sobressaiu dele.
Tentei perceber porquê e não encontrei a resposta. Foi necessário esquecê-lo na mesa para chegar à conclusão da relutância em escrever sobre ele. Talvez os ideais estejam intrincadamente nítidos nas suas páginas e aflorá-lo pede também que os meus ideais sejam nítidos.
Nunca dei grande importância em exprimi-los, em deixar clara a minha posição ou julgamento; fui ensinada a estar calada e a submeter os meus julgamentos para o meu íntimo. 
Talvez haja relutância em compreender porque nos calamos ainda, mas a verdade é que o fazemos.
A maioria da população portuguesa foi criada dentro de um regime fascista; esses ideais morreram com o 25 de Abril e com a liberdade mas não morreram dentro das paredes das casas. Não se mata uma educação com um cravo na lapela. Se para muitos o dia da liberdade foi o primeiro dia das suas vidas, para outros foi um dia igual ao anterior - nasci dois anos depois e sempre recordei o dito da minha mãe quando lhe perguntavam sobre aquele dia; não dei por nada, foi o vosso pai que me contou quando chegou a casa do trabalho - esta mulher que não deu por nada porque cuidava da casa, não tinha TV e, nem ligava o rádio, não foi tão servil assim quando anos antes escreveu com o seu punho uma carta a Marcelo Caetano, já este primeiro ministro, reclamando os meses excessivos que o seu marido passava na guerra; 36 meses a aguardar que o seu pelotão fosse rendido. Não obteve resposta e foi seguida pela PIDE. Consigo imaginar o tom da reclamação quando a observo, também consigo imaginar que aos dias de hoje a reclamação subiria de grau, seria mais vincada e torpe.
Esta viragem que deu lugar à revolta e ao cansaço não reclama ideais que se alteraram mas mágoa e arrependimento.
O que muitas vezes altera a nossa maneira de ser; a espontaneidade da esposa, a luta e o próprio amor é a mágoa de nos deixarmos calar. É o lugar secundário onde nos colocam, é o espelho onde se querem ver refletidos, amados e considerados.
É desgastante olhá-los dia após dia e presenciar ao seu alienamento por questões tão básicas como a substituição do eu pelo nós; falo de questões básicas. Imaginem questões básicas, não falo sequer de assuntos essenciais.

Teoria King-Kong será ainda controverso; esse olhar para o outro lado do espelho, não para vê-lo a ele, mas para nos vermos a nós próprias com outros olhos e despidas de preconceitos e sofismo.
Muitas de nós teremos de nascer de novo.
Mas quem são elas? De quem falo eu afinal?
Falo das caladas; das ainda caladas; das que morrem às mãos dos homens; das velhas e coxas que são humilhadas na via pública pelo velho, coxo e nojento marido; por todas aquelas que são apelidadas de cabras num banco do jardim porque foram viver a sua vida e ele não gosta.
Podem dizer que os direitos femininos são hoje uma realidade nunca antes presenciada, mas tenham cuidado com a alegria e a liberdade.
Essa realidade das caladas atravessa gerações de gerações e miúdas com acesso a educação e a exemplos continuam a calar a sua voz numa relação com outro homem. Não nos consideramos superiores, muitas vezes não nos consideramos iguais; os homens tem tendência a exaltar-se e as mulheres a eliminar-se.
Temos tendência também a vermos coisas diferentes; numa loja de roupa a minha mãe admira um vestido cumprido e encontra-lhe sedução, para mim é apenas um trapo. Nunca veremos coisas iguais.       


19 de outubro de 2022

 





SONTAG - BENJAMIN MOSER




Mais do que a mexeriquice da vida privada de Sontag, este livro é uma pequena preciosidade no que toca à literatura e ao ensaio.
A vida de Sontag é acima de tudo uma vida focada num ideal próprio, sempre na premissa que a arte, a cultura e a literatura estavam acima do eu pessoal. Como tal, e para tal, Sontag é um exemplo para quem procura a perfeição e a realidade de não ser possível alcançá-la.  
Confesso que detesto a persona, mas amo a artista... 


12 de outubro de 2022

 


A FICÇÃO COMO CESTA: UMA TEORIA e outros textos

Ursula K. Le Guin



"O que Freud confundiu como a falta de civilização da mulher é, na verdade, a falta de lealdade da mulher à civilização", observou Lilian Smith. A sociedade, a civilização de que falavam esses teóricos, era evidentemente a deles; eram eles os seus donos, gostavam dela; eles eram humanos, plenamente humanos, ao golpear, apunhalar, empurrar, matar. Ao querer também ser humana, procurei por evidências; mas se, para tal, fosse necessário fazer uma arma e matar com ela, então, evidentemente, ou era extremamente débil enquanto ser humano, ou nem tão pouco humana.
Isso mesmo, disseram eles. Tu és uma mulher. Possivelmente não és humana, certamente com defeito. Agora fica aí sossegada, enquanto contamos a história da Ascensão do homem, o Herói."

E então? Despertei a curiosidade para lerem este livro?





30 de setembro de 2022

 


CAPITÃO ROSALIE - TIMOTHÉE DE FOMBELLE; ISABELLE ARSENAULT



"Tenho um segredo. Na escola, todos pensam que estou a sonhar. Mas eu sou um soldado em missão. Capitão Rosalie."

"Estou disfarçada de menina de cinco anos e meio, com os meus sapatos, o meu vestido e os meus cabelos ruivos. Não tenho capacete nem farda para não dar nas vistas. Fico ali, em silêncio. Para os mais velhos, sou a menina que se vem sentar ao fundo da sala e não faz nada o dia todo."

Rosalie era um soldado em missão em plena primeira guerra mundial; a sua missão? Espiar o inimigo.
Com cinco anos e meio ainda não tinha direito a um banco de escola, a um livro de leitura ou sequer a aprender a ler. Por isso desenhava escondida entre os casacos dos meninos da sala, silenciosa e espiava.
A narrativa caminha para o ponto intermédio; a guerra. O seu pai que está na guerra e que escreve à mãe. 
Rosalie não gosta quando a mãe lhe dita as cartas do pai. A guerra está longe da aldeia onde vivem e para Rosalie não passa de uma imagem difusa que sempre esteve presente na sua vida.
A missão de Rosalie é diferente de um simples soldado entrincheirado. O final da história deixou-me em lágrimas.

As imagens deste livro são impressionantes; a narrativa profunda. 
Há muito tempo que não comprava um livro infantil; a criança cá de casa já não se dá a ares de menina, mas foi tão bom gastar o domingo a percorrer as estantes de livros infantis da livraria Bertrand.
Rosalie conseguiu cumprir a sua missão; afinal a missão própria de um capitão de cinco anos e meio.




29 de setembro de 2022

 


A RELIGIÃO DOS LIVROS - CARLOS MARIA BOBONE



Não sou alfarrabista, nem tenho livraria; descobri nestas páginas que nem sou colecionadora, não posso sonhar em caracterizar-me por bibliófila, nem sequer aprendiz de feiticeira.

Mas tenho sonhos, e entre eles consta uma livraria à entrada de Óbidos; quem sabe, numa escola primária quase abandonada, em que as paredes exteriores poderiam ser grafitadas por alunos do ESTGAD com alusão ás personagens inesquecíveis dos livros; as personagens sou eu que as escolho, claro está! O sonho ainda é meu.

Da dita livraria ainda encontraria lugar para um pequeno café, com esplanada exterior, que espaço há de sobra, lançamento de livros, oficinas, e muitos livros independentes, pequenas editoras e livros em segunda mão.
Há! E uma sala única para literatura infantil.
Para cumprir o sonho teria que ganhar o euro milhões, mas faço parte daqueles que se esquecem de jogar; a sorte ao jogo também não faz parte dos meus predicados, por isso o jogo não será solução.

Ler este livro, foi reviver um pouco esse sonho; descobrir as subtilezas de uma profissão que é tão apaixonante se as pessoas que se dedicarem a ela forem apaixonantes, as subtilezas do mercado livreiro não são nenhum conto de fadas como a história da bela e do monstro, mas similares a qualquer profissão em Portugal; feita de astúcias, beleza e sonhos, muitos sonhos. 
Como diz o autor "É costume dizer-se que, enquanto houver leitores, o livro não morrerá. Para os livreiros, não é esta a única esperança. Porque enquanto houver livros, haverá muito mais do que leitores."

27 de setembro de 2022

 


RUMO AO FAROL - VIRGINIA WOOLF




São seis da tarde, tenho a janela aberta do meu quarto, os pássaros cantam nos beirais das janelas e nas cordas do meu estendal. Hoje o som do balidos das ovelhas não se ouviu; devem ter escolhido outro caminho para o pasto, há vários dias que só lhes oiço o silêncio.

Rumo ao Farol perde-se ainda em cima da minha secretária embora já tenha terminado a sua leitura à dias; ficará ainda mais algum tempo aqui, ficará porque preciso dele. Preciso de lhe sentir os passos e preciso da esperança, do ridículo, da subtileza, da beleza e da simplicidade de Mrs. Ramsay.
Mais do que Mrs. Ramsay, necessito de Virginia Woolf; da sua maneira única de escrever, da sua falta de confiança na realidade - também não a tenho - na sua abordagem com particular valorização na personagem, neste ser humano vivo, pulsante e controverso a quem a alma também de si humana se remexe e desfaz. 
Ela; Virginia Woolf, compreendeu essa alma difusa que se distancia da realidade e questiona-a melhor do que ninguém.
A subtileza com que dilui a condição da mulher; o que dela se espera em comparação ao que se espera do homem. Aquele irmão que cresceu e está ao nosso lado está sujeito a outras pressões e a outras divisões dos sentidos. 
A mulher que nunca casou, talvez porque era bastante fria, distante e independente; e todos esses adjetivos tornavam-se um rasto de qualquer coisa, algo único que agrada a outras mulheres que a conseguem compreender, mas que não agradará decerto a nenhum homem.

Virginia Woolf desenha a vida de Mr. Ramsay e Mrs. Ramsay como um casal perfeito aos olhos alheios; ele professor, escritor, filosofo de relativo sucesso; ela mulher, mãe de oito filhos e extremamente bela.
Ele, por vezes, impulsivo e desagradável, ela, contida, amante, mulher, serena e respeitada, enfim, mais do que tudo, amada. 
O livro é uma ode à palavra amada; Mrs. Ramsay tem uma magnitude espontânea perante todos e todos a amam. É dificil compreender como uma mulher com este estatuto consegue ser subjugada pelo marido; o seu temperamento difuso, a sua falta de humanidade, os seus gestos bruscos subjugavam-na e ela sente-se pequenina e jamais consegue dizer-lhe o que sente; nem sequer a palavra amor. 
É intuitivo a maneira como ela, perante ele, se cala. Fica o silêncio, cavo e profundo de alguém que se sente acuada pelo próprio amor, profundamente marcada pela complexidade das coisas.

Aqui vai um exemplo; "... dos dois, era ele infinitamente o mais importante, e aquilo que Mrs. Ramsay dava ao mundo, em confronto com aquilo que o marido dava, era desprezível; mas, uma vez mais, era também o resto - o não ser capaz de lhe dizer a verdade, o ter receio, por exemplo, de lhe falar do telhado da estufa e da despesa que levaria..."  

Há alguns anos, se alguém me perguntasse qual ou quais os meus escritores favoritos eu calava-me e procurava nas minhas estantes; para mim, na maioria das vezes o último livro lido era um exemplo.
Hoje, posso dizer que Virginia Woolf faz parte de um grupo de escritoras mulheres de quem eu tudo quero ler; a obra, a vida, os diários.
Virginia Woolf é garantidamente uma referência e uma paixão; é também uma inspiração. 


25 de setembro de 2022

 


O BOSQUE DA NOITE - DJUNA BARNES



Vou fazer uma opinião curta sobre este livro. 
Não me desagradou, nada disso significa esta expressão; apenas sinto que terei de relê-lo continuamente para expressar verdadeiramente aquilo que sinto e aquilo que li.
Optei por carregá-lo comigo nos meus curtos cinco dias de férias, na alegria que o devoraria a ele e a mais uns quantos; dei por mim, absorta nas suas páginas de leitura lenta; o livro assim o exige, fechada num quarto com a janela aberta enquanto lá fora chovia miúdo. Agradeci a Deus um tempo tão inóspito e despropositado, as vizinhas conversavam no patamar das suas casas e o seu som difuso chegava até mim no andar de cima.
Se me pedirem para eu definir o ócio, direi sem sobra de dúvida que estar à janela a ler um livro e  ouvir as vizinhas emprestadas em terra antiga é uma definição de ócio muito bem conseguida.

Quanto ao "O Bosque da Noite", como é dito na introdução de T.S.Eliot, esta é uma prosa inteiramente viva e vai exigir de mim mais do que eu estive preparada para lhe dar; assim terei que voltar e voltar e quem sabe voltar, até tomar como certa esta ambiguidade, fatalidade simbolizada na linguagem. 


23 de setembro de 2022

 


A MORTE EM VENEZA - THOMAS MANN




Uma novela simples e delicada sobre os sentimentos fascinantes que um escritor de renome, sente por um adolescente numa estância de férias em Veneza.
Ainda no seguimento do tratado de Sêneca, foi com alguma surpresa que encontrei na minha leitura seguinte, semelhanças à ameaça referida por Sêneca.
Aschenbach é um escritor reconhecido no seu meio, viúvo, que dedica o seu tempo à escrita; dono de um quotidiano férreo ao qual não se permite, ele próprio, ao ócio. 
Teria Aschenbach tempo para si? Seria ele capaz de subjugar a sua realidade quotidiana a uma verdade mais profunda e duradoura?
Foi nesta perspetiva e após cruzar-se com uma personagem desconhecida na rua que Aschenbach colocou dúvidas de si para si e decidiu tirar umas férias.
Em Veneza descobriu o rosto da beleza consagrada em Tadzio, um adolescente que partilhava o mesmo hotel.

Os dias passam e Aschenbach sobre a influência filosófica, subjuga-se à relação com o belo e compreende-se.
O desejo e a virtude gravitam na sensibilidade com que este escritor dedica nos olhares tardios que dedica a Tadzio. É contudo nobre todos os seus sentimentos, apenas espirituosos que se limitam a contemplar o belo e o fugazmente eterno; a imagem dele, idolatrando aquilo que vê, subjugando os seus próprios sentimentos de homem ímpio e limitando-se à veneração. 
Estas paixões acontecem porque Aschenbach deixou de ser um homem ocupado, como diria Sêneca; olhou para o lado, dispôs-se a compreender o meio envolvente à sua volta no vagar dos dias, ocioso de si e dos outros, disponível para o mundo como um todo.
São estes sentimentos que ele dedica ao longe, apenas na observação a um adolescente de deslumbrante beleza que permite que ele se veja e ás suas próprias emoções.

Uma novela de rara beleza e delicadeza; uma narrativa simples. Belíssimo.  


21 de setembro de 2022

 


SOBRE A BREVIDADE DA VIDA - SÊNECA



Um tratado breve de um filósofo, dramaturgo, político e escritor. Sêneca viveu na era antes de Cristo, a sua morte data de 65 d.C, e é considerado um expoente intelectual de Roma no início da Era Cristã.

Existe uma curta descrição da sua vida no início deste livro bastante interessante para quem a Era Grega e Romana e a filosofia tem interesse.
Apesar de suscitar-me bastante curiosidade este período e a própria filosofia em si, peguei neste livro com a leveza dos despreocupados, ciente que leria algo desatualizado e meramente informativo para os dias de hoje.
Enganei-me profundamente; o tratado é uma ode belíssima sobre a consciência da brevidade da nossa vida.
"A vida é curta, a arte é longa. A ocasião, fugidia. A esperança, falaz. E o julgamento, difícil.", já dizia Hipócrates, e Sêneca pega nesta sublime frase para proclamar o seu pequeno tratado.

"Pequena é a parte da vida que vivemos". Pois todo o restante não é vida, mas somente tempo.
O que difere a vida de tempo?
Provavelmente essa definição obtusa é também distinta de cada um de nós.
Acredito que o meu tempo, e a parte mínima de vida que lhe dedico é bem diferente do conceito de tempo e vida do meu próprio parceiro, da minha filha, da minha mãe ou do meu pai.
Sêneca fala da importância de se cuidar de nós mesmos, mas o paradoxo existencial remete-nos para a necessidade de cuidarmos de quem nos está próximo em abnegação do eu pessoal e intransmissível. 
A minha mãe ensinou-me a dar; a aceitar e a agradecer o que se recebe. Nunca a reclamar a parte de mim mesma que me pertence por direito.

Como tratado filosófico ele leva-nos a tentar filosofar; deparamo-nos com questões de fundo que não tem resposta coletiva. Seremos melhores como um todo, ou como uma parte, como individuo?
Saberemos cuidar de nós sem prejudicar ou negligenciar os outros, ou os outros nunca deveriam fazer parte da equação da nossa própria vida?
O espirito humano é cego, diz Sêneca e coloca umas perguntas íntimas que patinamos em responder;
"Perscruta a tua memória: quando atingiste um objetivo? Quantas vezes o dia transcorreu como o planejado? Quando usaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste uma boa aparência, o espirito tranquilo? Quantas obras fizeste para ti com um tempo tão longo? Quantos não esbanjaram a tua vida sem que notasses o que estavas perdendo? O quanto da tua existência não foi retirado pelos sofrimentos sem necessidade, tolos contentamentos, paixões ávidas, conversas inúteis, e quão pouco te restou do que era teu? Compreenderás que morres cedo."

Sêneca desliga-se do homem ocupado, mas não é o homem ocupado que as sociedades dão primazia? 
Na perspetiva final acredito que deveremos fazer contas, tomar iniciativas para combater a celeridade do tempo. Demorar-nos no essência da nossa própria representação; decidir se queremos vencer as nossas paixões subjugando a ocupação diária de todo o nosso tempo, ou pelo contrário, espicaçar os nossos demónios, ter consciência do nosso ócio; informar o nosso corpo que somos donos do nosso tempo, vergarmo-nos como um tributo a uma rainha, á assimilação do eu. Esse pronome pessoal desenraivado do nosso próprio ser.

Também podemos não pensar em nada disto!       

19 de setembro de 2022

 


MANIFESTO PELA LEITURA - IRENE VALLEJO



Irene Vallejo ficou irresistível desde o seu amado "O Infinito num Junco".
Talvez um dos melhores livros de não-ficção que li nos últimos tempos e que jamais esquecerei.

Por isso não foi dificil agarrar-me a este manifesto pela leitura que a causa, Ler é Essencial distribui gratuitamente.

É tão pequenino que cabe no nosso bolso das calças, mas é acima de tudo um manifesto de memória;
Memória que perpetua a necessidade de mudança;
Memória para compreendermos que a leitura faz de todos nós um pouco menos ignorantes do que ontem;
Memória para relembrar que a literatura é, será e foi um farol salvador de muitas almas no meio de tempestades;
Memória para conjugar a nossa fragilidade e que a linguagem, a escrita e a literatura permitiu-nos sonhar com o inacreditável;
Memória para nos sentirmos na pele dos outros, experimentarmos a empatia, desconfiarmos do egoísmo e esperar que nos aconteça o melhor que nos pode acontecer; ser todas as pessoas e não ser nenhuma.
Memória que podemos enriquecer diariamente, em águas distantes ou tão perto de casa, através da intimidade das palavras, da convivência e as competências sociais que um livro nos dá;
Memória que a vida é injusta e a boa literatura é um desafio ao que existe, aos nossos desejos e aos nossos sentimentos de posse.
Memória de que muitas vezes, é nas páginas de um livro que encontramos os sentimentos confusos que sobressaltam a nossa real vida, escarrapachados aí, como se o escritor nos virasse ao contrário e nos apontasse o dedo! É para ti que escrevo.
Memória de que o nosso fracasso escolar é basicamente, um fracasso linguístico.
Memória de que a leitura cura.

Numa época convulsa feita de pressas, de produtos completos, prontos a digerir, o livro não é um ato passivo; é a liberdade acima de tudo, a verdade mastigada sem demora, as ideias que nos libertam e devoram.

30 de agosto de 2022

 



A CIDADE DE ULISSES - TEOLINDA GERSÃO


Um soco no estômago.
Talvez o tenha interpretado mal, mas este Paulo Vaz não me despertou nenhuma empatia.
Teve, contudo, um feito (dois), a sublinhar; tornar Cecília Branco inesquecível e recriar a vida da mãe, um pequeno exemplo da sociedade portuguesa do século XX.

Até há sublime história de sua mãe, o seu discurso pouco ou nada me interessou. Repleto de vaidade, muito narcisista, Paulo Vaz expõem-se como alguém muito importante e muito distante dos outros.
Soube captar a minha atenção na história de Ulisses, mas essa história não era dele, mas de Cecília.
Estragou tudo com o espelho que se fez a si próprio do pai, apesar da busca desesperada de fugir do seu sangue.
Paulo Vaz tinha uma teoria solidificada assente na sua infância, no caracter dúbio e mesquinho de seu pai, na vida sofrida e solitária da sua mãe; um talento abandonado ao despotismo da época e ao rancor de um homem que se considerava acima de si mesmo. 
Paulo Vaz acreditava pouco na palavra família, Cecília acreditava muito nessa palavra. Impôs sempre as suas limitativas condições.
Considerava-se a excepção, aquele que aceitava o talento da mulher, mas via o mundo pelo prisma de um homem. Compreendi, por fim, nessa fase da narrativa, quando se assume como alguém excecional nesse campo, que não fez mais do que se enganar a si próprio.
Da vida retirava uma parte, o todo, segundo Paulo, limita. O todo destrói o talento; abdicar compromete a arte. 

Quando refiro que a narrativa é um murro no estômago, refiro três pontos da história:
A vida da mãe contada por ele que inclui a sua pequena atitude egoísta. O pai soberbo, altivo, senhor do seu pequeno espaço onde dita as leis; todos os homens sonham com o seu reino, e ele está quase sempre no seu lar. Mas Paulo Vaz é egoísta; há um leve toque em que ele se apercebe disso, mas é tarde demais.
Quando ele perde Cecília pelos seus atos. Se ele compreendesse o todo teria decifrado as últimas palavras de Cecília.
"-Estou bem na minha vida e não quero mudá-la."
"-Mas ter-te conhecido foi o mais importante que me aconteceu."  

Tudo o que escrevo é discutível, será até alvo de outra interpretação de leitoras mais atentas, mas as interpretações são isso mesmo, próprias e pessoais.
Por isso, Paulo Vaz não me suscita nenhuma empatia, apesar de tudo, apesar do fim e da cedência.
Paulo Vaz teve medo de tornar Cecília e tornar-se ele próprio a sua mãe, acreditava que o talento murcha se não for regado com o egoísmo. 
Cecília mostrou-lhe com a sua própria existência que tudo pode ser precisamente o contrário; só ele teria de ser diferente.

É o meu primeiro caminho com a Teolinda Gersão e devo dizer que gostei muito da sua escrita. Esta viagem pelas escritoras do século XX está a ficar muito bonita. 


29 de agosto de 2022

 


QUICHOTTE - SALMAN RUSHDIE



Devo dizer que nunca terminei D. Quixote de Miguel Cervantes.
Acredito que essa falha seja predominante para a compreensão deste Quichotte da era moderna.
Que os dois livros descansam na minha estante à muito tempo também é uma pequena realidade.
E porque dispus-me a ler este Quichotte agora e não o outro? 
Bem! Que melhor homenagem poderemos fazer a um escritor quando queremos mostrar que o apoiamos?
Lê-lo.
Que tem a minha solidariedade quando pretendem roubar a sua própria voz? Quando a guerra, a violência, a ignorância e se me permitem, o patriarcado continua a dominar um mundo cansado, esgotado, enojado deste senhores ridículos e importantes. (Assim se acham!)
Escrita é liberdade; o livro, a narrativa transporta-nos para o imaginário, ficção, romance; o que não somos, entretenimento, repito, entretenimento. 
Saber; a maior arma contra a profunda ignorância que nos torna vulneráveis.

A escrita de Salman Rushdie é tosca. Estas palavras não são minhas, mas subscrevo-as inteiramente. Acredito nelas. 
Nunca coloquei Salman Rushdie entre os meus escritores preferidos. Nunca li " Os versículos satânicos", mas como sou do contra, agora apetece-me lê-lo.
Lembro-me de "Harun", tenho a versão ilustrada e recordo bem que o adquiri em preço de saldo numa época onde não haviam promoções, nem vendas online e nas Caldas da Rainha existia a mística Loja 107 Livraria, Lda.
Depois disso veio "O suspiro do mouro" que eu devorei em duas tardes de Domingo, em pleno Agosto tórrido na esplanada panorâmica da Inatel da Foz do Arelho.
Relembro as circunstâncias desse livro, porque um "familiar" que nos fazia companhia e não se calava, observou pela primeira vez a minha faceta antissocial.
O livro era bom, era muito bom, viciante, pegajoso. Eu não conseguia separar-me dele e o "familiar" perfeitamente dispensável.
Pena não ter poderes sobrenaturais; capacidades transcendentais como nos livros e aplicar o manto da invisibilidade a ele, para todo o sempre.
Deixemo-nos de desvaneios; voltemos a Quichotte.
Há pessoas que falam e falam; a uma determinada altura eu própria senti-me um pouco assim. Meu Deus! Salman Rushdie escreve, escreve. 
Histórias intrincadas umas nas outras, narradores múltiplos; o eu narrador que o deixa de ser algumas páginas mais à frente. As personagens que se sobrepõem na história e se desdobram em outras personagens. O tosco da escrita, o narrador escritor que também é ele uma personagem em determinada altura.

Salman Rushdie não esquece as raízes Indianas nem o racismo de países como Estados Unidos ou Inglaterra. Pinta-nos o quadro metafórico do fim do Universo barra Mundo. Escreve como se falasse ao ouvido e as regras, o estilo são remexidos e subjugados ao seu belo prazer. 
Quis largar o livro inúmeras vezes pela confusão e falta de paciência (confesso que tenho atravessado dias dúbios e cinzentos), mas nunca conseguia.
Virava a página subcarregada com o discurso longo, remoía de mim para mim, que iria abandoná-lo, mas lá vinha a frase ou o parágrafo que subjugava tudo.
Salman Rushdie não se deixa abandonar, nem vencer, nem domar. Ele próprio investe nessa premissa.
D. Quixote de Miguel Cervantes combatia moinhos imaginários e tinha os seus ideais (terei de ler o livro em breve para consolidar esta medíocre opinião). Quichotte de Rushdie, bate nos pontos todos da era moderna, na busca exclusiva do amor.
Só ele nos salvará. Onde anda meio mundo?
Como devem ter compreendido, tremo na tentativa de dar uma opinião objectiva sobre este livro. Aquele famoso, gostei ou não gostei. 
Sim! Gostei muito da narrativa. Gostei de todas as metáforas lancadas cá para fora. Todas as pontas de razoabilidade dentro de um mundo risível e terminal, todos os desaparecimentos e ressurgimentos segregados a um único sentimento puro e cristalino.
Gostei principalmente da capacidade de mostrar o nosso caminho fragmentado, dúbio, opaco. O vazio das mentes subjugadas e a morte como principio, meio e fim. 
Mas considero que a escrita de Salman Rushdie é tosca.

  

15 de agosto de 2022

 


O PERFUME DAS FLORES À NOITE - LEILA SLIMANI




"A mim o que me faz medo é o mundo lá fora. São os outros, a sua violência, a sua agitação. Nunca tive medo da solidão."


Pela primeira vez permiti-me ler Leila Slimani. Digo, permiti-me, porque fazia de conta que não a via. 

Acreditem! O vício é grande, as distrações enormes, as solicitações transbordam o rio, os escritores e os seus livros guardados na estante imensos, e eu, de quando em vez, simulo que não estou a ver.
Já admiti que leria tudo o que me viesse parar às mãos, teria tempo para todos os livros onde deitasse o olho; hoje aceito que não será assim.
Já consigo compreender que não sou eterna, eles, os livros, irão ultrapassar-me.

Por isso, desinteressei-me quando publicou "Canção Doce", foi fácil fugir aí; "No Jardim do Ogre", mais dificil, mas passou; "O País dos Outros" ainda esteve na minha mão, mas voltou à estante da livraria e "O Perfume das Flores à Noite", cercou-me por todos os lados e venceu a batalha.

Agora, já não tenho escolha; terei de esticar um pouquinho mais a minha não eternidade para caminhar sobre as linhas de Leila Slimani e nos seus livros que deixei para trás.  

12 de agosto de 2022

 


A ALEGRIA DE SER MISERÁVEL - RUTE SIMÕES RIBEIRO



Mais um livro da Rute que adorei.
Com um estilo único de juntar letras, este Zé de
Marvão enche as medidas de quem o quiser
compreender. Sem necessidade de interação com os
outros, devolve ao contexto social a simplicidade dos
gestos e das expressões de quem se fez, ele próprio,
simples.
As ideias que o acompanham, juntinhas, traquinas,
protegidas por cobertores quentinhos, com as suas
perninhas esticadas, a sua conversa pachorrenta, circunstancial e útil, dão à própria narrativa um estilo próprio e leve.
Ler, Rute Simões Ribeiro é isso mesmo; experimentar as subtilezas das camadas que nos compõem como seres humanos e deixar-nos seguir por ali fora, contentes e desejosos de mais algumas linhas repletas das suas palavras.
Ninguém escreve assim, e esta originalidade que lhe dá corpo e alma, transforma as suas personagens límpidas e inesquecíveis como a Adelaide que deu a Zé de Marvão um sentido para a sua existência sem perspetivas mas sedenta de vontade.

Obrigada, Rute, pela bondade!

10 de agosto de 2022

 


ORLANDO - VIRGINIA WOOLF



Chega-se a Virginia Woolf e o mundo
dispara.
Sempre com um começo tímido, sem graça, coloco
sempre a questão ao meu subconsciente "O que é que
eu estou aqui a fazer com a Virginia Woolf?"
A dúvida é parca e existe sempre um momento ténue
que transforma aquele começo tímido numa leitura
compulsiva até ao fim. A sua escrita é sublime, nada
está a mais. O elo entre o ser humano e a natureza e a
forma nata como descreve a condição humana.
Orlando é delicado como homem e sublime como
mulher. Coloca-se nos dois lados, como se fosse
íntima da compreensão e do fascínio desta ou daquela
condição.
A condição da mulher, a sociedade e a sua evolução
em trezentos anos, os meandros e deceções do que
rodeia a escrita; as ilusões e desilusões do domínio da
raça humana que se opõem a si própria, confunde,
permeia e devora.
"Estou farta de gente" diz Orlando algures nestas
páginas, como se quisesse dizer, como estou
dececionada; existe um desenrolar eterno nas paixões
de Orlando que terminam em deceções, talvez,
revelando que a vida curta ou extensa resume-se a um
aborrecimento que se sobrepõem e elimina pela
curiosidade constante.
Orlando não desiste nem abdica mantendo intacta a
sua candura.

Certa vez ouvi um comentário que Virginia Woolf
escrevia sobre o nada, não posso discordar mais;
Virginia Woolf escreve sobre o tudo.

5 de agosto de 2022

 


GRANDE MAGIA - ELIZABETH GILBERT



Tola fui ao acreditar que três dias bastariam para degolar este livro imenso que do nada faz quase tudo. Ele fará parte da cabeceira, a vida inteira.
Sem vaidade é quase um manual sem o ser, repleto de ideias, conselhos e conclusões que podemos escolher seguir.
Sejamos sinceros, as ideias dos outros só nos influenciam se estivermos dispostos a nos influenciar por elas.
"Grande Magia" tem em inúmeros espaços essa transcendência que só o é, se estivermos dispostos a aceitá-la.

Não concordo com tudo, mas está acima da mais ténue certeza que eu alguma vez alcancei; conclusão, dificil eu conseguir atingi-la sozinha.
Curiosamente muito do que aqui se escreveu é o mais perto do que alguém, um dia me aconselhou; conselhos que ainda hoje guardo no coração e que pretendo guardar para sempre.

Todos somos criativos quando empenhamos a nossa coragem à curiosidade e limitamos o medo à sua verdadeira utilidade. Mas como estancar o medo, dentro dos meandros da sua verdadeira função? Como redefinir o ego na encruzilhada da nossa própria existência?
Não cabe a "Grande Magia", fornecer-nos resposta a todas estas e outras questões, apenas relembrar-nos coisas básicas que nos esquecemos diariamente, talvez demasiados preocupados com os minutos que passam e se dissolvem, talvez a dar importância relativa à nossa capacidade de realmente sermos todos criativos, se nos dispusermos a isso.
Esse conceito de criatividade vai além do poeta ou pintor, do artista ou do mágico, mas "viver uma vida mais motivada pela curiosidade do que pelo medo."  

Para principio de conversa este livro não é sobre ti, mas tem tudo a ver contigo. Comigo, connosco. Com a criatividade, a magia, com a confrontação dos nossos próprios demónios; com a sensação de sermos mais do que meros consumidores, ou mais do que a multiplicação das nossas obrigações morais e financeiras, mais do que os nossos deveres.
Este é um livro que nos pode relembrar que "estou aqui"

Termino com uma das muitas frases sublinhadas;
"Não, pretensão significa simplesmente acreditar que você tem o direito de estar aqui e - pelo mero fato de estar aqui - se expressar e ter uma visão própria."


P.S - Elizabeth Gilbert é uma escritora de sucesso; um dos seus livros foi bestseller durante anos "Comer, Rezar, Amar"; eu, na encruzilhada das minhas estantes, nunca tive apetência, inclinação, como lhe queiram chamar, para nenhuma das suas obras.
No Youtube existe uma apresentação da escritora "Elizabeth Gilbert em: alimentando a criatividade", que por acaso, assisti.
Despertou-me para este livro; esgotado. Procuro-o há meses nas plataformas de livros usados e nos poucos alfarrabistas que tenho acesso. 
A versão que me chegou às mãos é brasileira; adquiri-a na @lanterna.alfarrabista, num golpe de sorte. 
Queria fazer esta ressalva porque o trabalho da Kelly na lanterna alfarrabista é também em si, um excelente trabalho criativo. Vende livros manuseados, edições esgotadas e raros. As suas publicações são de extrema beleza e acreditem o embrulho do livro vem repleto de coisas bonitas e feitas com a delicadeza de quem entrega ao trabalho toda a sua criatividade.
Espreitem o seu perfil no Instagram @lanterna.alfarrabista e digam lá se eu não tenho razão.  


29 de julho de 2022

 


O ENVIADO - MARIA ISABEL BARRENO



Fui à biblioteca e trouxe-o debaixo do braço; lamento que não seja meu.
Tenho um sentimento de posse no que toca a livros; um defeito consumista desenvolvido ao longos dos anos. De presença habitual na biblioteca, passei a ignorá-la quando deixou as suas instalações nos velhos edifícios do Parque D. Carlos I; com vista para o lago, com montes de relva adjacentes e o correto ao fundo. Na nova biblioteca, mais perto de casa, a vista é desinteressante, o edifício transpira modernidade e vazio. Conjugado a tudo isto, cresci, arranjei casa e trabalho, passei a  dispor de alguns trocos para os livros e construi estantes.  
Quando voltei lá, não foi por mim, mas pela filha e vou descobrindo de quando em quando, o caminho das suas estantes - confesso que me confundem por vezes -, a última paragem deu direito a trazer "O Enviado" de Maria Isabel Barreno debaixo do braço. 

Livro de contos breves, exploram o desacerto da raça humana; da sua incompreensão perante um mundo extremamente adverso.
Há uma tentativa de repor a ordem, ela, está à vista de todos, mas os nossos olhos desabituaram-se das hesitações, da simplicidade e do amor.
Maria Isabel Barreno serve-se do imaginário, da realidade inexistente para personificar, não o ideal da existência, mas o ideal da capacidade de encontrarmos o sentido do que somos.
Em cada conto, antevejo-lhe a procura; seríamos todos seres mais completos se procurássemos apenas.
... chegando ao coração da rosa, da rosa de ouro, da rosa ígnea, desaparece para sempre o caminho que até aí conduziu.
É um pequeno tesouro, este livro.
Destaco "O Enviado", uma metáfora aos dias de hoje e à realidade de consumo que substituí qualquer valor moral e ideológico; a  personificação de encaixar Deus em qualquer contexto. Deus representará sempre o bem e o mal; Ele não é bom nem mau, mas expõem o significado entre as duas dualidades. E o que fazemos com isso? Contextualizamos as certezas e as convicções, a dualidade de critérios, o simbolismo dos ideais e agradecemos a Deus todas as vitórias.
Deus sabe tudo. Não têm os apóstolos e seus sucessores o poder de dar a absolvição após confissão dos pecados? Hoje em dia, e porque o mundo mudou, a absolvição vem na forma de dinheiro.
"A Busca", trás outra subtileza; o culto da pessoa como unidade, separada do sentido de comunidade. Como ser indivíduos no emaranhado das sociedades, qual a nossa capacidade de tolerância e despreendimento com os outros? Qual a nossa capacidade de compreendermos que as nossas irritações, intolerâncias e personificações com o outro, são apenas o espelho dos nossos defeitos que não queremos e não podemos assumir.   

Em todos os contos a mulher é retratada como Deusa, ou apenas despida desse conceito. É dificil definir a posição que Isabel Barreno lhe quer dar, mas quando lhe dá os meios, quando fomenta as suas capacidades ela termina o conto como Deusa. 

Talvez não tenha compreendido nada; talvez tenha seguido um carreiro diferente nas linhas de Isabel Barreno e o meu entendimento esteja seriamente corrompido. São os mais altos que tem o poder de mudar todas as coisas na face do tempo, e eu, estou no ponto mais baixo. 

Quem quer ler?


27 de julho de 2022

 


O CORAÇÃO DAS TREVAS - JOSEPH CONRAD


Sem encher as medidas, longe da espetacularidade que lhe idealizei, O coração das trevas, é um livro sobre o Universo masculino, as suas lutas existenciais e a degradação do ser humano subjugado por outros.
Essa particularidade; a maneira como a expõem, quase sem nos apercebermos do mal que o homem branco infligiu na raça negra, nomeadamente no Congo é o único ponto de interesse do livro.
Não se iludem com as minhas palavras, elas apenas refletem os meus gostos literários e as minhas tendências atuais que infelizmente para O coração das trevas estão muito longe de tudo que o livro nos quer dizer. 
Talvez lhe tenha pegado em má altura iludida pela sua fragilidade e possibilidade de rápida leitura, mas as suas páginas não me trouxeram nenhuma alegria ou tristeza, nenhuma solidez ou textura.
As personagens apresentam-se tão dúbias e distantes na última página como na primeira.
Mas não se prendam pelo que escrevo aqui, dediquem-se também um pouco a este livro e digam-me por favor que eu estou errada no meu juízo.   


23 de julho de 2022

 


O FUNERAL DA NOSSA MÃE - CÉLIA CORREIA LOUREIRO



O amor é um sentimento ambíguo, esponjoso, volátil, maligno, mas redime.
Amar alguém pode ser destrutivo, apaziguador ou cruel. 
Célia Correia Loureiro encontrou esse caminho nesta história; estas personagens demoraram a sair da pele, com toda a certeza. 
Classifico-o, no mínimo como intenso. 
Não gosto de dar pontuações, como se fosse uma professora dos bancos de escola em que avalio e atribuo notas diante do meu discernimento. Não tenho competência para isso, e tenho para mim que os livros não devem ser avaliados, nem tão pouco comparados entre si.
Gosto de carregá-los de adjetivos, pisando as regras do bom escrever que nos ensina a moderar.

Um desfile perante as possibilidade da palavra amor; até que ponto ele nos condena ou absolve? Seremos puros quando experimentamos o amor, ou é nesse ponto que o deixamos de o ser?
Confesso que a determinada altura temi pela existência de história a mais - algures na descoberta do filho da outra - e, com tantas páginas por ler, tive uma leve sensação de mais, em detrimento do menos.
Que essa história a mais iria acabar por se diluir e perder no emaranhado de tantas memórias comprometedoras.
Célia Correia Loureiro parecia ter descoberto a tampa do poço da imaginação e não sentiu necessidade de a voltar a fechar, deu livre arbítrio às escolhas que a história lhe dava e cedeu a todas as suas vontades - acabo de ler um post da Célia em que escreve "não sou eu que mando na escrita, é ela que manda em mim"

E o que é esta história? O amor destrutivo.
Perante tantos disparates nunca consegui condenar a Carolina. O amor tem trilhos que não se coadunam com a honestidade. Não todos os dias, não em todos os momentos. Acima de todos os males ela era pura e amava.
Foi claro para mim que Lourenço também a amava, sempre a ela e nunca à outra. Tão claro que a outra também o sentiu quando os viu juntos pela primeira vez; tão claro que cedeu sem luta. 
Ingrid nunca lutou por um amor demasiado frágil; aos seus olhos cresciam sentimentos que ela não experimentara e dos quais Lourenço não compreendia. 
Ele não compreendeu de imediato a grandeza do amor que se estendia a seus pés, mas sentiu qualquer coisa dentro de si para não a rejeitar poucos momentos depois de ter rejeitado a outra.  
Quando a classifico de pura, também o faço pela maneira como se puniu, acredito que Carolina nunca se perdoou a si própria e considerava o seu ato tão vil que nunca teve palavras para o justificar. A forma como se justificou foi tão parca que denotava a falta de fé em si própria.  
A história acaba por se revelar não a mais, mas com a sabedoria de quem sabe encaixar as peças do puzzle com a medida certa.
O caminho que se fez com os pais até se chegar aos filhos. 
Elas e ele; filhos do mesmo pai, de mães diferentes que carregam os traços, as virtudes e os defeitos de quem os gerou.
Também eles não fogem à imensidão da palavra amor e de toda a sua vulnerabilidade.
Gostei muito @celiacorreialoureiro

14 de julho de 2022

 


AS INSEPARÁVEIS - SIMONE DE BEAUVOIR



Pode-se morrer de inconformismo? Revolta? Tristeza? Solidão? Amor infeliz?
Pode-se morrer porque se é excecional e os tempos não permitem exceções? Pelo cansaço, a falta de liberdade?
A indignação e a dúvida entre o bem e o mal?
O privilégio é uma palavra e uma acção dúbia, o amor tem diversas formas. Os Gregos tinham diferentes palavras para diferentes tipos de amor.

Início do século XX, o mundo e a sociedade tinham uma textura diferente. Fim da primeira guerra mundial, acredito que as convicções e certezas estavam um pouco confusas. Submergiam entre o antes - casto - e o depois - louco.
Não existem meio termos neste mundo. As que fogem às normas (sejam elas quais forem), são loucas, as que se submetem a elas serão castas até à loucura.

O que poderia ser uma mulher neste Universo? Acredito que ainda longe da transição entre um simples objeto e um ser humano.
A identidade, a resistência, liberdade, escolha, são lutas recentes e que se desvanecem quando à alma não lhe é permitido aceder.
O peso da culpa e do pecado, a assunção autoritária da bondade ou maldade de Deus.
O homem com livre arbítrio do julgamento da necessidade.
Como ao homem é dado a primazia da escolha? Como pode um homem afirmar amor, quando não se dispõem a abdicar?
E porquê abdicar? Que pensamento tão feminino!
Pode-se morrer de dor, não física mas emocional; pode-se morrer por desistência ou cansaço.
Pela privação do ser.

Este testemunho de Simone ficcionado em novela revela a candura do amor inocente dos bancos de escola. Digo inocente, mas será talvez, o mais puro e verdadeiro, desabrochado na verdade e ausente de interesses.
Simone de Beauvoir poderá ser considerada privilegiada à luz do seu tempo; sendo ou não, Simone alcançou sem esforço a primazia do amor que nada exige, a tudo se dá e encontra a alegria na rosa desabrochada do outro.
Zaza, ficcionada de Andrée não... pode-se morrer pela privação do ser.