FAHRENHEIT 451 - RAY BRADBURY
"Apenas Silêncio"
Este é o primeiro livro que escolhi para o projecto de leitura dos clássicos que vos falei no início do ano. Fahrenheit 451, saltou assim para o mês de Janeiro.
Admito que quando escolhi o livro, não tinha noção da magnitude da história, nem que se estava a falar de um livro de ficção cientifica. Nunca li nenhum livro do género, e uma vez mais a influência de Neil Gaiman resultou em cheio.
A história não é mais do que uma visão profética, apocalíptica de um futuro. Se ele está longe ou perto dos nossos dias, ninguém sabe, mas parece-me que já esteve mais longe.
O livro têm 3 capítulos. Fui um pouco de espirito leve para o mesmo. A partir do momento em que me dei conta da parte "Ficção Cientifica" não alimentei grandes expectativas pelo livro e o início teve um interesse fugaz até Montag ter uma conversa com o seu chefe Beatty.
Quando esta conversa se dá, já Montag mantinha com regularidade conversas com a sua vizinha Clarisse. Clarisse questionava a ordem natural das coisas. E o que é questionar a ordem natural das coisas? Para Montag, bastou uma dúvida instalada para perceber que algo estava errado na normalidade adquirida.
Este é um futuro em que as casas não ardem, mas os bombeiros existem para queimar livros. A ordem natural das coisas reposicionou-se, e neste futuro profético, não alimentamos o saber, mas a homogeneidade.
Por volta da página 85, o discurso de massas é-nos apresentado, e eu juro-vos que se olharmos para ele vemos o nosso futuro.
Reli aquelas páginas, 85,86,87, algumas vezes antes de prosseguir na história. Ainda incapaz de assimilar que um escritor em 1953, conseguiu imaginar de uma forma tão clara a nossa própria evolução como sociedade.
"Não houve uma ordem, uma declaração, um ato de censura, nada disso! A tecnologia, a exploração massificada e a pressão das minorias fizeram tudo sem qualquer ajuda. Hoje, graças a elas, pode manter-se feliz o tempo todo, pode ler banda desenhada, revistas de mexericos ou jornais especializados."
"Um livro é uma arma carregada na casa ao lado."
Com toda a certeza. Um livro move caminhos, salta fronteiras, molda-nos a personalidade, faz-nos pensar, puxa a nossa melancolia, fazemos perguntas, não aceitamos os caminhos só porque sim. Não ambicionamos apenas a ser felizes, mas queremos a procura. Podemos tornar-nos infelizes? Sim! Mas nunca seremos vazios. Teremos sempre emoções diferenciadas.
"Receamos sempre o que não conhecemos."
"Quanto maior o mercado Montag, menor a margem para controvérsia: lembre-se disso! Todas as minorias, as mais pequenas e menores minorias têm de ter um umbigo bem lavado e limpo. Autores, cheios de pensamentos perniciosos nas vossas cabeças, fechem à chave as vossas máquinas de escrever! E eles fecharam-nas"
Pois é!
"Receamos sempre o que não conhecemos"
"Nem todos nascem livre e iguais, como diz a Constituição, mas todos se tornam iguais. Cada homem à imagem do outro, todos felizes, pois há montanhas que os intimidem ou que os diminuam."
Montag, no entanto ousou pensar, talvez motivado por uma Clarisse que morreu sem deixar rasto, talvez porque dentro dele já existia a pedra de toque de uma vida diferente. Mildred, a sua mulher já não é um ser humano, mas um espetro do futuro agarrada à realidade virtual. Montag esconde 20 livros, que mostra à mulher após a sua conversa com o Comandante Beatty.
Agora, fechados os dois em casa, já não há volta a dar. A aventura da literatura vai começar. Vamos ver onde ela nos leva!
Neste segundo capitulo, o pormenor literário agiganta-se. Este é um tempo apocalíptico em que os livros não tem lugar. A verdade é que se criou uma sociedade gerida pelas maiorias que pretendem mascarar a realidade e a realidade das pessoas.
Faz-me lembrar a frase "Vai ficar tudo bem". Se a repetirmos vezes e vezes sem conta e se não olharmos para o lado, para os outros, somos capazes de acreditar nela sempre e a tristeza não nos invade.
Montag está confuso. Montag já não se contenta com a breve explicação de uma felicidade inventada, por isso com a Bíblia debaixo do braço, vai visitar um velho que conheceu num parque em tempos. Montag tem esperança que ele, antigo professor, lhe explique o significado do que está escrito nos livros.
Se com Beatty no capitulo passado assistimos a um discurso de massificação, sobre as certezas e a ordem, com Faber, o velho professor, assistimos a pura poesia e paixão pela palavra escrita. Pelo conhecimento, pela procura...
"Os livros eram apenas um tipo de recetáculo em que guardávamos as coisas que tínhamos medo de perder. Em si mesmos, nada têm de mágico. A magia está no que eles nos dizem, em como nos apresentam uma única peça feita da costura de vários bocados do Universo."
Apenas um pormenor... livros são alma, a nossa alma. a alma de todos de uma forma ou de outra, sempre a alma.
"O pormenor revelador. O pormenor fresco. Os bons escritores tocam muitas vezes a vida. Os medíocres apenas lhe passam a mão pelo pelo. Os maus violam-na e deixam-na para as moscas. Vê agora porque os livros são temidos e odiados? Porque mostram os poros da vida"
Já em 1953 o mundo caminhava para uma realidade virtual. Difusa, insipiente em comparação com os nosso dias. Neste tempo futuro do livro de Ray Bradbury, a realidade virtual trabalha assente na televisão e na tecnologia que proporciona a interligação do eu com essa realidade. O importante é pensarmos pouco. Podemos ter muito tempo livre, mas não o utilizamos para pensar, não temos espaço na cabeça.
Montag inicia então uma espécie de revolução, de subversão, mas não tem seguidores visíveis e não sabe pensar por si só, afinal não foi assim que a sua mente trabalhou até aqui.
As suas ideia são muito confusas, e tropeça nos primeiros tempos. Escancara aos outros as suas dualidades e atrapalhações. A ajuda de Faber, nem sempre é aceite, porque Montag acima de tudo quer pensar por si próprio e não pretende continuar a fazer apenas e só o que lhe mandam.
A sua ingenuidade, todavia paga-se caro, e na primeira deslocação a uma casa para incendiar livros, os bombeiros do seu quartel com o próprio Montag vão dar à sua casa.
O terceiro e último capítulo é obscuro. Montag num acto de extremo stress mata o seu comandante e tem de fugir.
A fuga transforma-se num espetáculo televisivo, mas com alguma sorte Montag consegue chegar às montanhas atravessando o rio.
Lá, encontra a margem da sociedade, as minorias que foram colocadas de lado por não aceitarem o paradigma universal.
Lá Montag descobre que não está sozinho, que há muito, muito tempo existem outros como ele. Pessoas que guardam os livros não nas estantes mas dentro de si.
Tal como num tempo virtual a guerra chegou e imediatamente partiu. Tudo desaparece, qual Arca de Noé.
Mas por baixo das cinzas, da mesma forma que uma Fénix, existe o renascer de uma nova sociedade e quem sabe, do caminho para o pensamento.
"Enche os teus olhos de coisas maravilhosas, vive como se fosses morrer dali a dez segundos, vê o mundo, é mais fantástico do que qualquer sonho produzido em fábricas, não exijas garantias nem segurança, nunca houve disso na natureza, e, mesmo que tenha havido, seria algo mais próprio da preguiça..."
P.S. - Como livro surpreendeu-me. O paradigma da sociedade e do ser humano como individuo é bastante transparente a revelador. A alegoria é fantástica!