CEMITÉRIO DE PIANOS - JOSÉ LUIS PEIXOTO
José Luis Peixoto tem a capacidade de falar do luto como nenhum outro. Não se limita a falar da morte, mas dá forma a esse sentimento tão dificil. O luto.
Cemitério de Pianos não é um livro que se leia de ânimo leve, nem tão pouco que se devore as páginas umas atrás da outras como se procurássemos encontrar alguma coisa para além do que lá está escrito.
Levei tempo a perceber que o livro precisava de tempo, e quando o compreendi e aceitei fiquei disponível para a história.
"Havia um instante em que, ao mesmo tempo, dávamos valor a estarmos juntos."
Aquele tempo necessário tornou-se urgência, e ontem, domingo, sentada no sofá da sala e sem dar por isso como uma consciência abstrata li cerca de 200 páginas. Não o li de ânimo leve, mas a verdade é que Peixoto, no seu puzzle sobreposto prendeu-me o pé e não consegui mais parar.
A história não se situa no tempo, mas chegamos à conclusão que não se passa nos nossos dias... o tempo é lá atrás.
A angústia é familiar. É própria de Peixoto. É o que me puxa constantemente para ler o que ele escreve.
Esta angústia, sempre esta angústia.
A forma subtil como retrata o ser humano, cheio de defeitos, cheio de humanidade.
A história do Pai e dos filhos confundem-se e entrelaçam-se.
O amor está lá, mas acima de tudo, a perda, a mágoa, o luto, a solidão, a paz.
"A passagem do tempo fez-me perceber que o meu entusiasmo, comparado com a realidade, era ridículo. A realidade era aquela sala arrumada e velha. O meu entusiasmo era uma ilusão que construía sozinho a partir do nada."
Peixoto traz para este livro uma maneira diferente de contar uma história. Parágrafos que se unem, desencontrados de si mesmos, como se várias histórias estivessem a ser contadas.
Quando dei conta desta subtileza, já estava tão enrolada no próprio texto que já não havia capacidade para parar de ler.
Um homem que morre de doença e que conta a sua história. A sua mulher que em todo o livro não é mais do que a sua mulher, não passa da sua mulher. Não tem nome. É a mulher, é a mãe e depois é a avó.
"- Ninguém pode viver a vida dos outros?
- Não é verdade. Não viveste só a tua vida. Já viste a avó? Gastaste-a"
Os filhos, quatro. Marta, Maria, Simão e Francisco.
O livro saltita entre as narrações do pai que já morreu e o filho Francisco que ainda está vivo.
Os outros são o complemento desta história, mas as suas vidas não passam despercebidas.
"É pouco. Nunca as ouviste realmente, nunca olhaste para elas realmente. Tiveste medo. Continuas a ter medo."
Medo, egoísmo. A nossa existência! Não há volta a dar. Seremos todos de uma forma ou de outra por medo ou egoísmo a razão do desamparo do outro.
Peixoto transcreve algures neste livro um dos seus poemas mais caros;
"Na hora de pôr a mesa éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmão mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco."
A verdade, verdadinha, é que a minha essência estará sempre nesse caminho. Posso ser muita coisa, mas nunca deixarei de ser mais uma alma do meu universo familiar.
Mesmo quando alguns deixaram de estar presentes, continuaram todos a ser presentes enquanto algum de nós existir.
Estas páginas de Peixoto compreendem isso mesmo. Apesar da mágoa, apesar da angustia, se fomos cinco, seremos sempre cinco.
Nunca deixaremos de dar valor a estarmos juntos desde que exista um de nós para sermos um todo.
Apesar de tudo...
Que o egoísmo percorre cada página, que existe a capacidade de fazer o outro sofrer sem querer, ou por querer! E que a vida, essa! Bem. Essa não tem propriamente explicação.
Se gostei do livro? Sim, muito. Para mim, Peixoto é sempre Peixoto. Só é pena que publique tão pouco.