O INFINITO NUM JUNCO - IRENE VALLEJO
Este é dos difíceis. Ainda percorri uns passos no corredor para trás e para diante, no pânico gritante do vazio da inspiração.
As primeiras linhas, são a beleza possível para continuarem a ler. São elas o combustível para o desbaratar das minhas humildes opiniões.
Por isso, dou mais uns passos no corredor, perante a dificuldade imensa, em condensar tudo o que aprendi neste livro, em breves palavras. O mundo exige que nos limitemos, que se reduza ao essencial, tudo o que queremos dizer. Dificil, é sublimar esse essencial. Por isso, e sem mais delongas, não começo pelo principio mas pela minha origem, e ela, terá que resumir a importância do próprio livro no meu centro.
Qual o significado do livro para mim?
Faço também essa pergunta a quem, neste ponto, ainda aí está. Conto com a vossa resposta.
É talvez, a minha maior armadilha. O objeto onde guardo os sonhos e as desilusões. Onde encontro o que quis esconder. As vozes que sussurram. O alento.
Objeto? Sim. Começa sempre por ser um objeto, disso, eu não tenho dúvidas. Sobrepõem-se a modas, ao vício e ao prazer.
Ele, o livro, supera as fleumas dentro da minha casa, ganha espaço próprio, expande-se sorrateiramente, ocupa. Nesta casa, o livro tem uma atitude de ocupação.
Reconheço-lhe a coragem. Numa família de três, uma sucumbe a outros poderes, o outro nunca se sentiu atraído por eles. Sobro eu, e o meu silêncio, e os meus livros e os meus livros. Eles, os livros, são permissivos, silenciosos, respeitosos, até aduladores, e as estantes nascem por todo o lado.
Distraio-me, bem sei!
O livro! O que é o livro?
Conotá-lo de objeto é apenas um principio, ficarmos por aqui é limitá-lo.
Um pequeno instrumento de obsessão. Um sentimento de posse. É um pouco desvirtuoso, mas é verdade.
Posse e obsessão por uma realidade fora de mim, ocupada por seres imagináveis que ganham vida quando se abre um livro. Cada vez que o abrimos, elas florescem e insuflam de alento.
Lá, eternizamos o momento para não o deixarmos morrer. Como fuga da finitude, está muito bem conseguido. Perfeito.
Este é o principio da minha estrada com este livro. Devo dizer que quem me escolheu foi ele e não o contrário.
Levo isso de ânimo leve, acontece com frequência, e desarranja-me as dinâmicas listas que construo com particular atenção e frequência. A maioria, servem para fazer tudo ao contrário.
Também as tenho para livros e leituras, arrumadinhos para serem os seguintes, e depois passo o olho pela estante (olhar demoradamente é a pior coisa que se pode fazer), e lá está! Fico rabugenta pela intromissão, mas já nada posso fazer.
Irene Vallejo caí-me assim no colo, apesar da necessidade de algo mais pequeno. Aqui as necessidades sobrepõem-se, e o que eu penso ou quero é diferente do que preciso e aceito.
Não sei se deram conta, mas continuo a definir o livro e é possível que já estejam fartos de mim. Ainda nada disse de importante, bem sei, e resumi o livro a um objeto, um vício, uma obsessão e uma posse.
Este específico livro, confirma a minha ignorância. Os escritores que continuam a passar-me ao lado, (vão sempre passar, bem sei!) e o mais importante de tudo, que o livro, aquele que para mim é um objeto, um vício, uma obsessão e uma posse tem uma história de vida invejável e eterna.
E o que é o livro, senão a palavra. Ela está gravada nas suas páginas, sejam elas feitas de tabuinhas, junco, papiro ou papel.
Palavras como liberdade, democracia, eternidade, feminismo, cultura, sabedoria, humildade, arte, podem ser banidas da sociedade mas não dos livros.
Que a destruição do mundo, e as suas várias alterações cíclicas, (curioso como o ser humano se repete na maldade, na destruição, na dor, no ódio) apenas quebram o livro, não o matam. Renascimento é outra palavra que o pode definir.
Como a Fénix do famoso feiticeiro de "Harry Potter", o livro renasceu das cinzas e continua a renascer.
Aqui para nós que ninguém nos ouve, eu acredito que muita coisa do mundo moderno, acabará por eclodir. O ser humano vai colapsar, diante do constante movimento.
A palavra mantém a luminosidade de um livro, diz a autora; "as palavras, que são apenas um sopro de ar; as ficções que inventamos para dar sentido ao caos e sobreviver nele; os conhecimentos verdadeiros, falsos e sempre provisórios que vamos arranhando na dura rocha da nossa ignorância."
Irene Vallejo pede-nos boleia para contar-nos uma história épica. Tão histórica como os heróis de Odisseia e Homero.
Foram os colecionadores de livros, em anos tão distantes como 323 a.C, que deslumbramos a paixão pelos livros. Foram eles, que descobriram e construíram conceitos como Biblioteca, bibliotecário, copista, peregrinos, idólatras e loucos.
A transformação da palavra e do livro ao longo do tempo é surpreendente, e aqui volto a referir a palavra renascer.
Ele, o livro, renasceu, renasce e renascerá dos escombros, do fogo, da ruína, da miséria, do desespero e da literacia, continuamente.
Mantido ao redor de ricos e privilegiados, o livro entre a Grécia de Aristóteles, (o primeiro apaixonado por livros) e o poderoso Império de Roma, soube adaptar-se, transformar-se e progredir.
A globalização, a vanguarda, a democracia não são palavras modernas, mas realidades em Atenas, Alexandria e Roma.
"Naquele tempo os livros eram frágeis."
Sofreu várias transformações até chegar a este belo objeto, que cabe na minha mochila, na minha mão, abraçada a ele.
Desde as tabuinhas, ao junco, pergaminho, papiro. Desde os copistas, que copiavam letra a letra e criavam cada exemplar único, à versão impressa que permitiu a massificação, o livro compreendeu a arte da paciência, benevolência, da espera.
Ele está cá! Ele, atravessou caminhos inóspitos, e enquanto existir o leitor o livro perdurará. Dele, emerge a voz nunca silenciada.
Vamos falar de outra coisa, o reverso. Pessoas analfabetas.
No contexto actual, creio que é difícil imaginarmos a sua existência. Acreditem! Existem. Relativamente novos até. Em plena cidade. Não falo sequer, das zonas mais remotas, nem de população mais idosa.
Na Grécia antiga e no Império Romano, pouquíssimas pessoas sabiam ler e escrever. O que hoje é incomum, em civilizações tão antigas como a Grega era o mais comum. Na proporção da literacia entre estas duas realidades, o livro era e é, alimentado por muito poucos.
O livro não é um produto de massas mas de paixões, não é um objeto de moda mas "a extensão da memória e da imaginação"; citando Borges.
O resmungão do Sócrates, (não fui eu que o apelidei de resmungão, mas Irene Vallejo) não acreditava na palavra escrita. Esta, produziria esquecimento, seria uma aparência da sabedoria, e não a sua verdade.
Sócrates não podia imaginar, a estranheza em que se transformaria o mundo, e sim, a palavra escrita fala connosco, roça-se como íntima, parece e é inteligente e responde a todas as nossas perguntas.
Quem lê, compreende este livro. Acredito que quem não lê, poderá apaixonar-se.
Como ciosa do meu mundo e dos meus livros (meus = posse), fragmento os seus pontos de vista, as variações da minha própria leitura, o que ela me transmite e ensina.
Tudo se resume a simplicidade. A ingenuidade, credulidade, franqueza, candura de compreender-me dentro dele. Descobrir o que sou e o que nunca poderei ser e no que teimo em concretizar.
Em sentir-me em muitas palavras que leio em silêncio e compreender o que não compreendi até ali.
Faço parte da mínima percentagem dos amantes de livros, legado deixado por Aristóteles e seguido por outros até aos nossos dias. Nunca foram a maioria e nunca o serão.
Sei, para além de tudo isto, que a comunidade do livro nunca deixará, que este se apague.