26 de maio de 2022

 


A METAMORFOSE - FRANZ KAFKA



Uma manhã ao acordar de sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si transformado num bicharoco monstruoso.


Deixei este livro a um canto depois da sua leitura. Tinha um travo amargo na boca e não conseguia definir onde o colocar.
Relembrei o prefácio do livro, onde é sugerido que o próprio autor, não tinha gostado do produto final. 
Pessoalmente, tem o efeito definido pelo autor, algures noutro contexto qualquer, não recordo quando e onde; julgo que só se deveriam ler livros que mordessem e picassem...
É subjetiva esta expressão, e amplifica o sentido de qualquer livro. Dá o devido valor a qualquer narrativa. Ela, depende sempre do leitor. Transforma o livro, qualquer livro, num bem essencial para a multidiversidade do leitor.

Kafka define escolhas nesta historia surreal. A minha dificuldade foi encaixar as escolhas na narrativa em si. 
Morde e pica na situação peculiar que não pode ser alterada, como uma metáfora da condição humana. 
Gregor transforma-se num bicharoco, não por sua livre vontade, nem sequer num momento de escolha, parafraseando todos os acontecimentos da nossa vida que ultrapassam a nossa capacidade de sermos livres.
Morde e pica, no contexto da não possibilidade de escolha, para a formulação de uma escolha dentro dessa impossibilidade. 
Os sacrifícios familiares e a capacidade de os manter.
Gregor não tem opções, a família, essa sim, têm-nas. Morde e pica com a volatilidade dessas opções e escolhas.
A repugnância e o susto, que acaba por se transformar em doação, o  benefício que se vai desfigurando em cansaço, a fraqueza que dá lugar ao descontentamento, e por fim a escolha.
Gregor prescinde em nome de todos.
Pensou na família com carinho e amor. A sua opinião acerca de necessidade de desaparecer era provavelmente ainda mais decidida do que a da irmã.

Encerrará, porventura outras conclusões que uma releitura merece. Não é claro nem cristalino, perde-se nas entrelinhas tudo o que quer dizer-nos. Não o descobriremos de uma só vez. 
Quem leu Kafka?

22 de maio de 2022

 


MENDEL DOS LIVROS - STEFAN ZWEIG



... os livros só se criam com o fim de unir as pessoas para além da sua própria existência e, assim, de ser defender do inexorável oponente de tudo o que vive: fugacidade e o esquecimento.

Começo com a voz do próprio Stefan Zweig. Começo com a voz dos livros. A sua própria existência.
Contudo, somos feitos de fugacidade e esquecimento, e este pequeno conto de Mendel dos Livros, relembra essa perspetiva inquieta, oblíqua que atravessa a vida.
Apenas as histórias, os livros, os enredos e as narrativas, os poemas fogem do inexorável sentido da finitude.
Cada escritor, apenas nos sussurra; eu não posso ser eterno, eu serei esquecido, mas as minhas personagens não. Talvez por isso, elas, as personagens, são sempre maiores do que quem as escreve, tem vida própria e transfiguram as linhas onde o escritor as quer encerrar. 

Mendel era um ser, livro, viveu a sua vida dentro do próprio livro. Tudo o que o cercava era eternamente pouco, por isso ele não lia os jornais, não ouvia os outros, não perspetivava as transformações do mundo.
O que ele sabia estava no livro.
O seu espaço era uma pequena mesa do café Gluck que ocupava de manhã à noite. Vendedor ambulante, porque não tinha licença.
E de facto aquele Jakob Mendel não via e não ouvia nada do que acontecia à sua volta.
Mendel, era pois, o estereotipo de muitos sonhadores, concentrados no seu mundo sábio, de rara beleza, de pura, trágica e verdadeira obsessão.
Se o mundo me permitisse, eu, do mesmo modo, ficaria assim.
Pois lia como outros rezam, como os jogadores jogam e os bêbados atordoados, olham para o vazio, lia com uma concentração tão comovente que, desde aquele momento, todo o tipo de leitura feita por uma outra pessoa me parecia sempre qualquer coisa de profano.
Também para Mendel, o mundo provou não ser próprio para os sonhadores, para os concentrados da transcendência da palavra, e os acontecimentos dos homens práticos trataram de o chamar à realidade destruidora.
Não se adaptou, Mendel.
À exceção dos livros, este homem estranho não sabia nada do mundo.
Eu, pouco ou nada sei do mundo, e reconheço que raramente sei de livros. Não posso, portanto ser um Mendel, não tenho metade do seu despreendimento.
Foi triste ver Mendel quebrar com a guerra e o mal, mais triste vê-lo fragmentar-se aos tempos do lucro.
Já deram conta, como estamos a ser engolidos pelo lucro e pela imagem?
Se tiverem tempo, leiam este "Mendel dos Livros"
O tempo roubado é relativo. Na fugacidade do tempo a relatividade é um assunto, algo eterno.
Os livros têm o seu destino de acordo com o poder de compreensão do leitor.
 

 


BIOGRAFIA JOSÉ SARAMAGO  - JOÃO MARQUES LOPES





Estamos cada vez mais cegos, porque cada vez menos queremos ver. No fundo, o que este livro quer dizer é, precisamente, todos nós somos cegos da razão.
Citação de José Saramago, em entrevista ao JL, 25.10.1995, sobre o livro "O Ensaio sobre a Cegueira", em "Caderno de Lanzarote", anotação de 4 de Março de 1995, já tinha referido, No ensaio não se lacrimejam as mágoas íntimas de personagens inventadas, o que ali se estará gritando é esta interminável e absurda dor do mundo.




Detenho-me com mais vagar entre estas páginas, como o poderia ter feito, algures, nesta biografia de José Saramago. 
Um livro extremamente bem escrito, que acima de tudo, tenta refletir Saramago como um ser humano de convicções, fraquezas e defeitos. As suas opções políticas, o percurso profissional, a sua militância, e o abandono a que foi vetado, numa determinada altura da sua vida.
Como qualquer português, muito apreciado depois do sucesso do Nobel, por vezes ignorado e desprezado, antes dele.
Algumas curiosidades para mim desconhecidas, ou que já não recordava, como o facto de ter sido tradutor, e amanuense.
A influência da escrita de Eça de Queirós, no seu primeiro livro. Livros que se escreviam em quatro, seis meses.
Mas é no capítulo oito, e ao seu ciclo de alegoria e outras obras, que eu fico presa. 
Desperta-me a curiosidade para livros que ainda não li do autor. "Ensaio sobre a Cegueira", a eterna segunda escolha, "Ensaio sobre a Lucidez", e "A caverna", este último, morre na minha estante sem comprometimento, e ao qual eu ainda não lhe dediquei, sequer, um terceiro olhar. 
A possibilidade do fim da razão.

Saramago era feito de certezas e convicções. E um homem que é feito de certezas e convicções, que não se deixa abalar, franqueia o mundo com outra visão. 
Essa outra visão, não lhe permitiu mais do que o chamado exílio para Lanzarote, não lhe permitiu mais do que prémios literários e penetrações no mercado nacional e internacional, não lhe permitiu mais do que ser o único Nobel da Literatura português.
As personagens que se criam com o formato da terra e não do barro ou da idolatria, as desigualdades sociais e os direitos do ser humano, muito para além de uma ideologia política, o fim da razão, o abismo do pensamento único, a guerra infinita, e a subserviência pela palavra vende. Tudo isto, Saramago expõe.
Sou católica, mas o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não me choca. Chocante é, em pleno século XX, associar-se, literatura com religião. Misturar-se literatura com ideologias políticas, religiosas, etc, etc, etc... 
Literatura é um produto de ficção. Terá que ser encarado como tal. Essa é a minha opinião, vale o que vale.

Não será, porventura, o único grande escritor português do seu tempo. Mas é um grande escritor.
   

 

13 de maio de 2022

 


TANTA GENTE, MARIANA / AS PALAVRAS POUPADAS - MARIA JUDITE DE CARVALHO



Na sua escrita melódica, encontro a desesperança, o lúcido e o profundo.
Não foi um livro fácil de ler, e confesso que Tanta Gente, Mariana, sobrecarregou o meu entendimento.
Foi necessário prosseguir devagar, compreender nas entrelinhas do próprio texto.
Não compreendi muito bem, a minha própria dificuldade. 

Reencontrei um certo caminho com esta obra. Senti-me perdida de início, incapaz de lhe dar espaço, mas habituei-me à necessidade de a ler, como precisa de ser lida.
Sem aforismos, desprendida dos meus conceitos, eles, por vezes atrapalham mais do que ajudam.
Tanta Gente, Mariana, provocou-me estranheza de início. Voltei atrás e reli-o novamente. O que nos quer dizer está escondido na narrativa que descreve o quotidiano desta Mariana com a vida enganada.
O que nos quer dizer, na maioria das vezes, nós não queremos ouvir.
A solidão, de habitarmos num mundo carregado de outros, feitos da mesma matéria. O movimento da existência fragmentado em pequenos nadas, que nada nos dá.
Tanta Gente, Mariana é um grito surdo das mulheres de ontem, de hoje, e inevitavelmente, nas do amanhã. 
Utopias à parte, a mulher têm ficado sempre, com a pior parte da equação ilegitimamente distribuída.
É neste ciclo vicioso que saímos do primeiro conto e entramos nos outros, carregados de protagonistas femininas, do seu papel na sociedade Portuguesa no século XX.
Da sua eterna solidão.
Ainda existe esta mulher definida por Maria Judite Carvalho. Acho que existirá sempre. 
Escondidas, no luto da cor da roupa que carregam, na lentidão dos gestos, na postura altiva e desafiante, nas suas tardes de monotonia pelas ruas sem afazeres aparentes, nos seus amanheceres apressados, na mesa do café em que só elas ocupam uma cadeira, dia após dia, após dia. Fechadas nas suas casas, entre a sala e o quarto, habituadas ao silêncio, à lentidão, ouvem até o som da sua respiração. Na alegria dos dias de pagarem as contas, porque podem sair de casa, do olhar complacente, paciente que fazem perante a resposta arrogante do marido. O deixarem-se estar, "Estou a incomodar, menina?"; "Posso sentar-me aqui um bocadinho menina?" e falam até mais não, ou calam, "Gostam tanto de si, menina.", sem me conhecerem de lado nenhum.
Muitas trazem ausência, alegria, paciência, ou falta dela, todas, solidão.

Não quero terminar esta opinião sem referir o conto "As Palavras Poupadas". 
Pessoalmente, considero-o de extrema beleza e simplicidade. Toca, como sempre no que já referi, solidão. Toca, para além disso, na culpa.
Também ela, é o veneno que nos corroí os dias.

É o primeiro livro que leio de Maria Judite de Carvalho, e a profundidade da sua tristeza, o modo lúcido como retrata a mulher portuguesa cativou-me.
A minha lista de escritoras portuguesas, está cada vez mais bonita. 

Agora que sei o que me espera, acho-lhe qualquer coisa de morte, pelo menos qualquer coisa de intermédio, de nebuloso. Ainda não é morte, mas já não é inteiramente vida. Nunca o foi, suponho eu. Vida verdadeira já eu não seria capaz de viver, porque lhe perdi o hábito.

Gostava de dizer muitas coisas que no fundo não sentia, porque era e seria sempre, um resultado da educação que tivera.

Talvez o amor nas mulheres seja mais elástico e mais passivo do que nos homens. Eles escolhem, nós quase sempre vimos a gostar de quem nos escolheu.

Sozinha na cidade enorme para onde viera estudar, embriagara-se com uma liberdade que não utilizava porque não sabia que fazer dela.
 

11 de maio de 2022

 


DISCURSO DE ESTOCOLMO - JOSÉ SARAMAGO




Na arrumação das minhas gavetas, encontrei uma cópia do discurso de Estocolmo de José Saramago.
Já não recordo quando foi lá parar, mas sei que a votei ao fundo da gaveta para leitura futura.
Procurei-a num acesso de curiosidade, quando a palavra "Direitos Humanos", foi tema do dia nos noticiários. Relembrei, a voz de Saramago nesse especifico ponto.
Infelizmente, tenho muita facilidade em esconder nas gavetas tudo o que é papel, dou-lhe uma aparência de organização que não tenho.

Dispôs-me a olhar para Saramago, tarde. Mais tarde ainda, olhei e olharei para outros, mas falaremos desses noutra altura. 
Teimosia, impertinência, ignorância. Não posso, sequer, desculpar-me com distração.
Devo dizer que a sete de Dezembro de 1998, enquanto Saramago discursava na Academia Sueca, eu fingia que não via. 
Hoje, títulos como "As Pequenas Memórias"; "Levantados do Chão"; "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e "Todos os Nomes", figuram na minha lista de obras inesquecíveis. 
Sem surpresa iniciei a leitura deste discurso e Saramago recorda o seu avô e a sua avó que não sabiam ler nem escrever.
A ternura que Saramago coloca em cada palavra dita, um prémio Nobel, um escritor, relembra a sabedoria e simplicidade de quem nunca soube ler, nem escrever. Um voltar às origens, como um todo. Na década de 30, do século anterior, 61% da população era analfabeta. A minha geração, formada e letrada descende de avós e bisavós que não sabiam ler nem escrever.

"As Pequenas Memórias", foram a minha porta de entrada para a obra de Saramago. Ainda me falta muitas linhas do que ele escreveu, mas já não olho com indiferença para os seus títulos.
Quando li este especifico livro, recordei o meu avô e avó maternos. Também eles eram analfabetos. Alguns tios, também o foram.
O meu avô, não era o mais sábio, e a distância que separava a sua velhice e o meu eu criança, era tão grande que eu não recordo sequer a sua voz. Recordo os seus límpidos olhos azuis, a barba rala e branca, o seu gorro de lã e o seu cajado. A sua escusa na convivência, ou a minha timidez desproporcionada. Ele ensinou-me o significado da palavra morte, o costume da aldeia no tempo remoto de 1986, a vigília noturna, o homem que habita o seu espaço até ao fim, as vozes que se silenciam, o som que fecha sussurrante, o compasso de espera quando o corpo abandona a sua casa, e as pessoas, todas as pessoas, muitas pessoas.
Não revivo o seu sorriso. José Paulo, não era homem de sorrir.   
Maria Joaquina tinha, contudo, um cheiro diferente. Aprendeu a juntar as letras por teimosia. Pediu-me um dia para a corrigir enquanto juntava o "a" com o "c", o "b" com o "e". Fazia-o, com uma revista esquecida lá em casa. Ler propriamente, acho que não o conseguiu. 
A diferença de idades, também com ela, continuava a ser assustadora. A minha avó teve treze filhos e a minha mãe é das mais novas, casou tarde, e teve filhas, ainda mais tarde.
Resta-me a proeza, nesta abundância de sobrenome Paulo, de ser a neta mais nova.
Da avó "Quina" eu tenho uma profunda certeza. Ela amava-me.
Para uma criança pequena que não sabe muito bem onde colocar os pés, é quase como o mapa do trilho do caminho de casa.
E era assim que eu me sentia sempre que a visitava. De regresso a casa. 
No meu tempo de miúda silenciosa, os galinheiros e as coelheiras estavam vazias. O curral das vacas também. O largo da casa era feito de silêncio e do canto dos pássaros. A cozinha, conservava o lume acesso na lareira alta, onde as refeições ganhavam cheiros.
Eu, sempre vi a minha avó da mesma maneira.
As rugas acentuadas, o olhar meigo, o sorriso doce, o tom de voz baixo e meloso. As mãos dela nas minhas mãos. Eu crescia, aparentava sabedoria que não tinha, e com as suas mãos nas minhas mãos, eu acreditava que podia beber a aprendizagem de algo tão simples como, gentileza, paciência. 
Podia, se quisesse.
No seu corpo gravavam-se palavras como resistência, mulher, mãe, vida, sofrimento. Era uma mulher da aldeia, atravessou o século XX, num ambiente rural. Eu só lhe conheci a paz. Um dia vos contarei.
A sete de Dezembro de 1998, enquanto Saramago discursava na academia Sueca, eu ainda lambia as feridas da sua morte e fingia que não via.
A minha cegueira tinha dois sentidos. Um completo desinteresse por Saramago e uma saudade imensa de uma mulher que me amou.
Se lhe tivesse prestado atenção, encontraria a voz da minha avó na sua voz. O seu sorriso fácil. O seu corpo seco e insuflado de sabedoria.
Só existe uma maneira de os manter eternamente vivos. Saramago interpretou-o muito bem, ao transformar pessoas comuns em personagens literárias. Deu-lhes a eternidade dos Deuses. Quem dera, que fossemos todos Saramagos.
Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.

Saramago relembra o aniversário da declaração dos direitos humanos.
Nos dias de hoje, com mais de setenta anos, esta declaração Universal dos Direitos Humanos faz todo o sentido. Fará sempre, dirão vocês!
Há mais de vinte anos atrás Saramago disse corajosamente que os governos e as empresas, não estavam a cumprir o seu dever. 
Nós, como cidadãos, também não. E porque não estamos?
Porque não reivindicamos o dever dos nossos deveres. Deveres.
Há algumas semanas, ouvi uma criança na TV, dentro de um bunker, com a câmara e o microfone à sua frente, mostrar a sua incredulidade perante algo tão ilógico como a guerra, em pleno século XXI.
O mundo que deveria ser livre e democrático, soberano como povo, humano como direito, não passa de uma autêntica utopia. 
Apenas assistimos. É uma criança que nos diz isso.

5 de maio de 2022

 



O INFINITO NUM JUNCO - IRENE VALLEJO



Este é dos difíceis. Ainda percorri uns passos no corredor para trás e para diante, no pânico gritante do vazio da inspiração.
As primeiras linhas, são a beleza possível para continuarem a ler. São elas o combustível para o desbaratar das minhas humildes opiniões. 
Por isso, dou mais uns passos no corredor, perante a dificuldade imensa, em condensar tudo o que aprendi neste livro, em breves palavras. O mundo exige que nos limitemos, que se reduza ao essencial, tudo o que queremos dizer. Dificil, é sublimar esse essencial. Por isso, e sem mais delongas, não começo pelo principio mas pela minha origem, e ela, terá que resumir a importância do próprio livro no meu centro.
Qual o significado do livro para mim?
Faço também essa pergunta a quem, neste ponto, ainda aí está. Conto com a vossa resposta.

É talvez, a minha maior armadilha. O objeto onde guardo os sonhos e as desilusões. Onde encontro o que quis esconder. As vozes que sussurram. O alento.
Objeto? Sim. Começa sempre por ser um objeto, disso, eu não tenho dúvidas. Sobrepõem-se a modas, ao vício e ao prazer.
Ele, o livro, supera as fleumas dentro da minha casa, ganha espaço próprio, expande-se sorrateiramente, ocupa. Nesta casa, o livro tem uma atitude de ocupação. 
Reconheço-lhe a coragem. Numa família de três, uma sucumbe a outros poderes, o outro nunca se sentiu atraído por eles. Sobro eu, e o meu silêncio, e os meus livros e os meus livros. Eles, os livros, são permissivos, silenciosos, respeitosos, até aduladores, e as estantes nascem por todo o lado.
Distraio-me, bem sei! 

O livro! O que é o livro?
Conotá-lo de objeto é apenas um principio, ficarmos por aqui é limitá-lo.
Um pequeno instrumento de obsessão. Um sentimento de posse. É um pouco desvirtuoso, mas é verdade. 
Posse e obsessão por uma realidade fora de mim, ocupada por seres imagináveis que ganham vida quando se abre um livro. Cada vez que o abrimos, elas florescem e insuflam de alento.
Lá, eternizamos o momento para não o deixarmos morrer. Como fuga da finitude, está muito bem conseguido. Perfeito.
Este é o principio da minha estrada com este livro. Devo dizer que quem me escolheu foi ele e não o contrário.
Levo isso de ânimo leve, acontece com frequência, e desarranja-me as dinâmicas listas que construo com particular atenção e frequência. A maioria, servem para fazer tudo ao contrário.
Também as tenho para livros e leituras, arrumadinhos para serem os seguintes, e depois passo o olho pela estante (olhar demoradamente é a pior coisa que se pode fazer), e lá está! Fico rabugenta pela intromissão, mas já nada posso fazer. 
Irene Vallejo caí-me assim no colo, apesar da necessidade de algo mais pequeno. Aqui as necessidades sobrepõem-se, e o que eu penso ou quero é diferente do que preciso e aceito.
Não sei se deram conta, mas continuo a definir o livro e é possível que já estejam fartos de mim. Ainda nada disse de importante, bem sei, e resumi o livro a um objeto, um vício, uma obsessão e uma posse. 

Este específico livro, confirma a minha ignorância. Os escritores que continuam a passar-me ao lado, (vão sempre passar, bem sei!) e o mais importante de tudo, que o livro, aquele que para mim é um objeto, um vício, uma obsessão e uma posse tem uma história de vida invejável e eterna.
E o que é o livro, senão a palavra. Ela está gravada nas suas páginas, sejam elas feitas de tabuinhas, junco, papiro ou papel.  
Palavras como liberdade, democracia, eternidade, feminismo, cultura, sabedoria, humildade, arte, podem ser banidas da sociedade mas não dos livros.
Que a destruição do mundo, e as suas várias alterações cíclicas, (curioso como o ser humano se repete na maldade, na destruição, na dor, no ódio) apenas quebram o livro, não o matam. Renascimento é outra palavra que o pode definir.
Como a Fénix do famoso feiticeiro de "Harry Potter", o livro renasceu das cinzas e continua a renascer. 
Aqui para nós que ninguém nos ouve, eu acredito que muita coisa do mundo moderno, acabará por eclodir. O ser humano vai colapsar, diante do constante movimento.

A palavra  mantém a luminosidade de um livro, diz a autora; "as palavras, que são apenas um sopro de ar; as ficções que inventamos para dar sentido ao caos e sobreviver nele; os conhecimentos verdadeiros, falsos e sempre provisórios que vamos arranhando na dura rocha da nossa ignorância." 
Irene Vallejo pede-nos boleia para contar-nos uma história épica. Tão histórica como os heróis de Odisseia e Homero.
Foram os colecionadores de livros, em anos tão distantes como 323 a.C, que deslumbramos a paixão pelos livros. Foram eles, que descobriram e construíram conceitos como Biblioteca, bibliotecário, copista, peregrinos, idólatras e loucos.
A transformação da palavra e do livro ao longo do tempo é surpreendente, e aqui volto a referir a palavra renascer.
Ele, o livro, renasceu, renasce e renascerá dos escombros, do fogo, da ruína, da miséria, do desespero e da literacia, continuamente.

Mantido ao redor de ricos e privilegiados, o livro entre a Grécia de Aristóteles, (o primeiro apaixonado por livros) e o poderoso Império de Roma, soube adaptar-se, transformar-se e progredir.
A globalização, a vanguarda, a democracia não são palavras modernas, mas realidades em Atenas, Alexandria e Roma.
"Naquele tempo os livros eram frágeis."
Sofreu várias transformações até chegar a este belo objeto, que cabe na minha mochila, na minha mão, abraçada a ele.
Desde as tabuinhas, ao junco, pergaminho, papiro. Desde os copistas, que copiavam letra a letra e criavam cada exemplar único, à versão impressa que permitiu a massificação, o livro compreendeu a arte da paciência, benevolência, da espera.
Ele está cá! Ele, atravessou caminhos inóspitos, e enquanto existir o leitor o livro perdurará. Dele, emerge a voz nunca silenciada.

Vamos falar de outra coisa, o reverso. Pessoas analfabetas. 
No contexto actual, creio que é difícil imaginarmos a sua existência. Acreditem! Existem. Relativamente novos até. Em plena cidade. Não falo sequer, das zonas mais remotas, nem de população mais idosa. 
Na Grécia antiga e no Império Romano, pouquíssimas pessoas sabiam ler e escrever. O que hoje é incomum, em civilizações tão antigas como a Grega era o mais comum. Na proporção da literacia entre estas duas realidades, o livro era e é, alimentado por muito poucos.
O livro não é um produto de massas mas de paixões, não é um objeto de moda mas "a extensão da memória e da imaginação"; citando Borges.
O resmungão do Sócrates, (não fui eu que o apelidei de resmungão, mas Irene Vallejo) não acreditava na palavra escrita. Esta, produziria esquecimento, seria uma aparência da sabedoria, e não a sua verdade.
Sócrates não podia imaginar, a estranheza em que se transformaria o mundo, e sim, a palavra escrita fala connosco, roça-se como íntima, parece e é inteligente e responde a todas as nossas perguntas. 
Quem lê, compreende este livro. Acredito que quem não lê, poderá apaixonar-se.
Como ciosa do meu mundo e dos meus livros (meus = posse), fragmento os seus pontos de vista, as variações da minha própria leitura, o que ela me transmite e ensina.
Tudo se resume a simplicidade. A ingenuidade, credulidade, franqueza, candura de compreender-me dentro dele. Descobrir o que sou e o que nunca poderei ser e no que teimo em concretizar. 
Em sentir-me em muitas palavras que leio em silêncio e compreender o que não compreendi até ali.
Faço parte da mínima percentagem dos amantes de livros, legado deixado por Aristóteles e seguido por outros até aos nossos dias. Nunca foram a maioria e nunca o serão. 
Sei, para além de tudo isto, que a comunidade do livro nunca deixará, que este se apague.