30 de abril de 2023

 


LENÇOS PRETOS, CHAPÉUS DE PALHA E BRINCOS DE OURO




 

 

Sinopse: Um relato de viagem que tem como guia As Mulheres do meu país, escrito no final dos anos 1940 por Maria Lamas, figura de proa do activismo político em Portugal.


Talvez Maria Lamas não previsse esta utilidade tão pessoal do seu livro no futuro. Isto é, agora.

 

Maria Lamas viaja para denunciar a falta de condições de vida. Escreve sobre pobreza, fome, maus-tratos. Excesso de trabalho. Analfabetismo. Ignorância. Isolamento. Mas também escreve – com satisfação e algum choque – sobre a música e o riso, a vitalidade que encontra por todo o lado (…) Grande parte das mulheres sobre as quais escreve são raparigas e aqueles anos de juventude são o tempo mais alegre da vida delas. Seja o que for para o país.

 

Portanto, não ocorre à minha filha que algumas pessoas nunca tenham vivido nessa terra de brincadeira e de encanto. Assim como é difícil para ela entender que, mesmo para as meninas que trabalhavam, se levantavam às cinco da manhã para tratar dos animais e apanhavam quando se atrasavam, a infância ainda fosse o tempo mais feliz.

 

Não sei quando é que me dei conta de que a minha avó só tinha a terceira classe, ou quando é que isso me pareceu estranho.

 

Esperam por quê?

A resposta prática é que esperam pelos outros: esperam que a comida termine de cozinhar, esperam que seja hora de ir buscar os filhos à escola, esperam que alguém termine de comer para levantarem a mesa, esperam que alguém se levante para elas se sentarem, esperam nove meses, esperam que os filhos cresçam, esperam até poderem comprar uma casa melhor, esperam por oportunidades de carreira, esperam pela reforma. Mas a melhor resposta talvez seja que esperam que o mundo lhes seja mais favorável, que esperam por dias melhores.

Antes como agora.

Aqui como em todo o mundo.

 

Acabo de ler este livro; é extraordinário. Fui à Biblioteca ver o livro de Maria Lamas, digo ver e não ler, porque o livro de raro não pode ser requisitado. A minha avó era analfabeta e era, também ela, o retrato vivo das mulheres do meu país de Maria Lamas. Parte da minha mãe é-o ainda e as suas “franjas” dissolvidos em costumes, sacrifícios, esperas e silêncios. Desfazer esta origem é corromper o que somos sem saber de onde vimos.


3 de novembro de 2022

 



A OUTRA VENEZA - PREDRAG MATVEJEVITCH


Um livrinho pequenino que trouxe da feira do livro de Lisboa. Veneza, a outra Veneza foi o primeiro livro que li desta coleção da Terra Incognita da Editora Quetzal.

Confesso que já espreitei as outras obras e existe por lá um título ou outro que figurará nas minhas estantes.
Porque veio este e não outro? Porque não as praias de Portugal ou os banhos das Caldas? Porque Veneza é Itália e Itália é um luxo na minha imaginação.

Não é este livro que nos abre os olhos para Itália dos sonhos românticos, mas tem um quê de inocência e prazer associado a uma maneira de viajar e conhecer outras paragens que encanta-me.
De que nos serve visitar uma cidade num dia; os seus monumentos e pontos turísticos se de lá nada registamos. 
Quantos de nós conhece Óbidos para além das duas ruas principais?
Este breve livro de Predrag Matvejevitch explica isso mesmo; não nos dá uma visão panorâmica de Veneza, mas um deslumbre das sombras que nela habitam. Fala-nos do nascer e por do sol, do vento, dos reflexos, da ferrugem e da patine; as cores e as suas nuances. Os filtros da bruma que não veremos em nenhuma cidade, nem mesmo na nossa se não nos dispusermos a olhá-la.
Fala dos jardins, flores, arvores e plantas; refere o esquecimento.
Tem palavras doces com que trata a Sereníssima.
Não esquece o mar e os marinheiros; os judeus, eslavos e o entrelaçado de línguas e culturas que construíram Veneza.
Fala do pão; O pão dos judeus, dos otomanos dos arménios e dos venezianos - o pão das lágrimas, o pão da nostalgia, o pão do exílio e o pão da humildade; não esquecer o pão de Pádua e o pão da paciência.  
Relembra os albergues e tabernas, os asilos psiquiátricos onde "os internados nessa instituição, como relata uma das suas crónicas, acusavam-se mutuamente de não regularem bem da cabeça, troçando uns dos outros. Cada doente andava à procura de outro mais doente que ele, cada louco de outro mais louco."
E fala dos barbeiros, "Em Veneza, mais do que em qualquer outra cidade, dava-se-lhes o nome de figari."
"Em parte alguma ele eram mais numerosos, mais hábeis ou mais loquazes, nem sequer em Sevilha."

Para conhecer esta Veneza ou qualquer cidade do mundo a lógica da nossa própria existência teria de ser diferente. A quem o consiga só posso apelidar de afortunado; muitas vezes passamos os olhos e não vemos.

31 de outubro de 2022

 


A IDADE DA INOCÊNCIA - EDITH WARTON



Releitura.
Li-o pela primeira vez ainda adolescente, ainda dependente dos livros da Biblioteca Municipal.
Essa primeira impressão não recordo, mas tenho presente que o li - e isso, no emaranhado de livros que peguei e larguei e li e reli nessa altura e que hoje não dou conta tem o seu significado.
Vi o filme; tinha que ver - sou fã de Michelle Pfeiffer.

Confesso, estou com alguma dificuldade em fazer a opinião deste livro; avassalou-me por completo.
Abriu fissuras que tento reparar nestes dias seguintes; o desinteresse por qualquer outra leitura, pela escrita, pelos hábitos adquiridos.
É dificil explicar o impressionismo simples da dignidade de uma mulher; Ellen Olenska.
Tudo o mais é supérfluo e acessório.
O essencial está nas entrelinhas desta história.

Terminei-o há dois dias e ainda estou a remoê-lo. A idade da inocência; o tempo em que acreditamos que seremos capazes de tudo, e o limite de compreendermos que nada conseguimos.
 



25 de outubro de 2022

 


BARTLEBY, O ESCRIVÃO - HERMAN MELVILLE



Dar uma opinião sobre Bartleby? 
Preferia que não.

Livro de renúncia; poderá ser filosófico ou apenas utopia. Provavelmente foi um momento hilariante de Herman Melville.
Com uma pitada de moralidade e imoralidade diz-nos tudo e não quer dizer quase nada. 
Como Bartleby responde; preferia que não.   




23 de outubro de 2022

 


O DESPERTAR - KATE CHOPIN





"O pássaro que se alcandorar acima do plano horizontal da tradição e do preconceito tem de ter asas fortes. É um triste espectáculo ver os que fraquejam adejarem de volta à terra, contundidos e exaustos."

Um dos melhores livros que li este ano. Esta história simples contada com subtileza sobre a condição da mulher numa sociedade feita por homens e para homens. 
Eles decidem até ao fim; dispõem as cartas e baralham as ilusões e o pássaro que tenta voar, que se predispõem a inverter a tradição e o preconceito acaba por cair.
O triste espectáculo final faz lembrar um comentário que ouvi em tempos sobre os contos de Maria Judite Carvalho; "por mais que tentem, elas, nunca conseguem."

Edna nada consegui; não porque não tentasse. 
Nestas páginas assistimos à tentativa de transformação da mulher; a visão clara, as perceções e as realidades mais primitivas. 
Edna caminhou sobre elas com a inocência da descoberta, ciente dos olhos reprovadores da sociedade que a poderia marginalizar. 
Bem perto do fim, Edna responde a Robert aquilo que eu esperava ouvir da sua boca quase desde o inicio do livro. 
Falhava-me a compreensão; como esta mulher teria a capacidade de redescobrisse a si própria, apenas para servir outro homem, ou outro amor?
"Foste um rapaz muito, muito pateta, perdendo o teu tempo a sonhar com coisas impossíveis, quando falas em que o Senhor Pontellier me libertar! Eu já não sou um dos pertences do Senhor Pontellier de que ele possa ou não servir-se. Eu dou-me a quem eu quiser. Se ele dissesse, "Toma, Robert, fica com ela e sê feliz: ela é tua", eu ria-me na cara dos dois."

Pois é! A descoberta ia para além da palavra servir, e a Robert outros valores demoníacos soaram mais fortes; Edna sem opções - voltar a trás estava fora dos limites da sua natureza - restou-lhe o sacrifício de si própria em troca de si mesma. 
Eu sei! É uma dualidade o que acabo de escrever, mas são duas coisas diferentes. O eu como pessoa e o eu como alma humana; o estar e o estar sem estar.
Edna já não estaria por isso cedeu.  
    


 


DEUSES DE BARRO - AGUSTINA BESSA-LUÍS



O meu principio com Agustina Bessa-Luís é o seu princípio. 
Deuses de Barro foi escrito pela escritora aos dezanove anos e manteve-se até hoje inédito.
No prefácio, Mónica Baldaque refere que Agustina enviou-o ao escritor Sousa Costa, pedindo-lhe um prefácio ao qual ele lhe responde que não o faria e aconselha-a; "a que escreva um novo romance, a que nos dê um novo trabalho a prova real das suas possibilidades"

Escreve outra coisa Agustina, mas não deixes de escrever, parece-me a mim o que está implícito na sua resposta. Talvez a frase que em consciência qualquer escritor amador/iniciado precisa de ouvir.
Agustina fez-lhe a vontade e escreveu, escreveu muito.

Deuses de Barro não é um livro que ficará na memória; escrito em três ou quatro meses quando Agustina tinha apenas dezanove anos.
Nenhuma personagem é digna de lembrança ou sequer transmite piedade, complacência, amor ou generosidade. 
Nenhuma delas figurará no quadro daquelas personagens que nos machucam e deslaçam. 
A pobreza e a riqueza que as coloca estanques em cada submundo, não lhe dá nenhum travo amargo ou doce, e a Ana, o José Maria e a Maria José são apenas futilidades presas à condição de si mesmas. 

Agustina apanha esse vazio; aí está a genialidade desta narrativa. O retrato perfeito do mundo de castas e sociedades. A educação que cria abismos entre seres e os difere e limita. 
Nem os Deuses nivelaram a humanidade, só poderiam ser Deuses de Barro.  


22 de outubro de 2022

 



TEORIA KING-KONG - VIRGINIE DESPENTES



O livro é controverso; não digo para o mundo mas para mim. Quando terminei de lê-lo apenas o silencio sobressaiu dele.
Tentei perceber porquê e não encontrei a resposta. Foi necessário esquecê-lo na mesa para chegar à conclusão da relutância em escrever sobre ele. Talvez os ideais estejam intrincadamente nítidos nas suas páginas e aflorá-lo pede também que os meus ideais sejam nítidos.
Nunca dei grande importância em exprimi-los, em deixar clara a minha posição ou julgamento; fui ensinada a estar calada e a submeter os meus julgamentos para o meu íntimo. 
Talvez haja relutância em compreender porque nos calamos ainda, mas a verdade é que o fazemos.
A maioria da população portuguesa foi criada dentro de um regime fascista; esses ideais morreram com o 25 de Abril e com a liberdade mas não morreram dentro das paredes das casas. Não se mata uma educação com um cravo na lapela. Se para muitos o dia da liberdade foi o primeiro dia das suas vidas, para outros foi um dia igual ao anterior - nasci dois anos depois e sempre recordei o dito da minha mãe quando lhe perguntavam sobre aquele dia; não dei por nada, foi o vosso pai que me contou quando chegou a casa do trabalho - esta mulher que não deu por nada porque cuidava da casa, não tinha TV e, nem ligava o rádio, não foi tão servil assim quando anos antes escreveu com o seu punho uma carta a Marcelo Caetano, já este primeiro ministro, reclamando os meses excessivos que o seu marido passava na guerra; 36 meses a aguardar que o seu pelotão fosse rendido. Não obteve resposta e foi seguida pela PIDE. Consigo imaginar o tom da reclamação quando a observo, também consigo imaginar que aos dias de hoje a reclamação subiria de grau, seria mais vincada e torpe.
Esta viragem que deu lugar à revolta e ao cansaço não reclama ideais que se alteraram mas mágoa e arrependimento.
O que muitas vezes altera a nossa maneira de ser; a espontaneidade da esposa, a luta e o próprio amor é a mágoa de nos deixarmos calar. É o lugar secundário onde nos colocam, é o espelho onde se querem ver refletidos, amados e considerados.
É desgastante olhá-los dia após dia e presenciar ao seu alienamento por questões tão básicas como a substituição do eu pelo nós; falo de questões básicas. Imaginem questões básicas, não falo sequer de assuntos essenciais.

Teoria King-Kong será ainda controverso; esse olhar para o outro lado do espelho, não para vê-lo a ele, mas para nos vermos a nós próprias com outros olhos e despidas de preconceitos e sofismo.
Muitas de nós teremos de nascer de novo.
Mas quem são elas? De quem falo eu afinal?
Falo das caladas; das ainda caladas; das que morrem às mãos dos homens; das velhas e coxas que são humilhadas na via pública pelo velho, coxo e nojento marido; por todas aquelas que são apelidadas de cabras num banco do jardim porque foram viver a sua vida e ele não gosta.
Podem dizer que os direitos femininos são hoje uma realidade nunca antes presenciada, mas tenham cuidado com a alegria e a liberdade.
Essa realidade das caladas atravessa gerações de gerações e miúdas com acesso a educação e a exemplos continuam a calar a sua voz numa relação com outro homem. Não nos consideramos superiores, muitas vezes não nos consideramos iguais; os homens tem tendência a exaltar-se e as mulheres a eliminar-se.
Temos tendência também a vermos coisas diferentes; numa loja de roupa a minha mãe admira um vestido cumprido e encontra-lhe sedução, para mim é apenas um trapo. Nunca veremos coisas iguais.