29 de julho de 2022

 


O ENVIADO - MARIA ISABEL BARRENO



Fui à biblioteca e trouxe-o debaixo do braço; lamento que não seja meu.
Tenho um sentimento de posse no que toca a livros; um defeito consumista desenvolvido ao longos dos anos. De presença habitual na biblioteca, passei a ignorá-la quando deixou as suas instalações nos velhos edifícios do Parque D. Carlos I; com vista para o lago, com montes de relva adjacentes e o correto ao fundo. Na nova biblioteca, mais perto de casa, a vista é desinteressante, o edifício transpira modernidade e vazio. Conjugado a tudo isto, cresci, arranjei casa e trabalho, passei a  dispor de alguns trocos para os livros e construi estantes.  
Quando voltei lá, não foi por mim, mas pela filha e vou descobrindo de quando em quando, o caminho das suas estantes - confesso que me confundem por vezes -, a última paragem deu direito a trazer "O Enviado" de Maria Isabel Barreno debaixo do braço. 

Livro de contos breves, exploram o desacerto da raça humana; da sua incompreensão perante um mundo extremamente adverso.
Há uma tentativa de repor a ordem, ela, está à vista de todos, mas os nossos olhos desabituaram-se das hesitações, da simplicidade e do amor.
Maria Isabel Barreno serve-se do imaginário, da realidade inexistente para personificar, não o ideal da existência, mas o ideal da capacidade de encontrarmos o sentido do que somos.
Em cada conto, antevejo-lhe a procura; seríamos todos seres mais completos se procurássemos apenas.
... chegando ao coração da rosa, da rosa de ouro, da rosa ígnea, desaparece para sempre o caminho que até aí conduziu.
É um pequeno tesouro, este livro.
Destaco "O Enviado", uma metáfora aos dias de hoje e à realidade de consumo que substituí qualquer valor moral e ideológico; a  personificação de encaixar Deus em qualquer contexto. Deus representará sempre o bem e o mal; Ele não é bom nem mau, mas expõem o significado entre as duas dualidades. E o que fazemos com isso? Contextualizamos as certezas e as convicções, a dualidade de critérios, o simbolismo dos ideais e agradecemos a Deus todas as vitórias.
Deus sabe tudo. Não têm os apóstolos e seus sucessores o poder de dar a absolvição após confissão dos pecados? Hoje em dia, e porque o mundo mudou, a absolvição vem na forma de dinheiro.
"A Busca", trás outra subtileza; o culto da pessoa como unidade, separada do sentido de comunidade. Como ser indivíduos no emaranhado das sociedades, qual a nossa capacidade de tolerância e despreendimento com os outros? Qual a nossa capacidade de compreendermos que as nossas irritações, intolerâncias e personificações com o outro, são apenas o espelho dos nossos defeitos que não queremos e não podemos assumir.   

Em todos os contos a mulher é retratada como Deusa, ou apenas despida desse conceito. É dificil definir a posição que Isabel Barreno lhe quer dar, mas quando lhe dá os meios, quando fomenta as suas capacidades ela termina o conto como Deusa. 

Talvez não tenha compreendido nada; talvez tenha seguido um carreiro diferente nas linhas de Isabel Barreno e o meu entendimento esteja seriamente corrompido. São os mais altos que tem o poder de mudar todas as coisas na face do tempo, e eu, estou no ponto mais baixo. 

Quem quer ler?


27 de julho de 2022

 


O CORAÇÃO DAS TREVAS - JOSEPH CONRAD


Sem encher as medidas, longe da espetacularidade que lhe idealizei, O coração das trevas, é um livro sobre o Universo masculino, as suas lutas existenciais e a degradação do ser humano subjugado por outros.
Essa particularidade; a maneira como a expõem, quase sem nos apercebermos do mal que o homem branco infligiu na raça negra, nomeadamente no Congo é o único ponto de interesse do livro.
Não se iludem com as minhas palavras, elas apenas refletem os meus gostos literários e as minhas tendências atuais que infelizmente para O coração das trevas estão muito longe de tudo que o livro nos quer dizer. 
Talvez lhe tenha pegado em má altura iludida pela sua fragilidade e possibilidade de rápida leitura, mas as suas páginas não me trouxeram nenhuma alegria ou tristeza, nenhuma solidez ou textura.
As personagens apresentam-se tão dúbias e distantes na última página como na primeira.
Mas não se prendam pelo que escrevo aqui, dediquem-se também um pouco a este livro e digam-me por favor que eu estou errada no meu juízo.   


23 de julho de 2022

 


O FUNERAL DA NOSSA MÃE - CÉLIA CORREIA LOUREIRO



O amor é um sentimento ambíguo, esponjoso, volátil, maligno, mas redime.
Amar alguém pode ser destrutivo, apaziguador ou cruel. 
Célia Correia Loureiro encontrou esse caminho nesta história; estas personagens demoraram a sair da pele, com toda a certeza. 
Classifico-o, no mínimo como intenso. 
Não gosto de dar pontuações, como se fosse uma professora dos bancos de escola em que avalio e atribuo notas diante do meu discernimento. Não tenho competência para isso, e tenho para mim que os livros não devem ser avaliados, nem tão pouco comparados entre si.
Gosto de carregá-los de adjetivos, pisando as regras do bom escrever que nos ensina a moderar.

Um desfile perante as possibilidade da palavra amor; até que ponto ele nos condena ou absolve? Seremos puros quando experimentamos o amor, ou é nesse ponto que o deixamos de o ser?
Confesso que a determinada altura temi pela existência de história a mais - algures na descoberta do filho da outra - e, com tantas páginas por ler, tive uma leve sensação de mais, em detrimento do menos.
Que essa história a mais iria acabar por se diluir e perder no emaranhado de tantas memórias comprometedoras.
Célia Correia Loureiro parecia ter descoberto a tampa do poço da imaginação e não sentiu necessidade de a voltar a fechar, deu livre arbítrio às escolhas que a história lhe dava e cedeu a todas as suas vontades - acabo de ler um post da Célia em que escreve "não sou eu que mando na escrita, é ela que manda em mim"

E o que é esta história? O amor destrutivo.
Perante tantos disparates nunca consegui condenar a Carolina. O amor tem trilhos que não se coadunam com a honestidade. Não todos os dias, não em todos os momentos. Acima de todos os males ela era pura e amava.
Foi claro para mim que Lourenço também a amava, sempre a ela e nunca à outra. Tão claro que a outra também o sentiu quando os viu juntos pela primeira vez; tão claro que cedeu sem luta. 
Ingrid nunca lutou por um amor demasiado frágil; aos seus olhos cresciam sentimentos que ela não experimentara e dos quais Lourenço não compreendia. 
Ele não compreendeu de imediato a grandeza do amor que se estendia a seus pés, mas sentiu qualquer coisa dentro de si para não a rejeitar poucos momentos depois de ter rejeitado a outra.  
Quando a classifico de pura, também o faço pela maneira como se puniu, acredito que Carolina nunca se perdoou a si própria e considerava o seu ato tão vil que nunca teve palavras para o justificar. A forma como se justificou foi tão parca que denotava a falta de fé em si própria.  
A história acaba por se revelar não a mais, mas com a sabedoria de quem sabe encaixar as peças do puzzle com a medida certa.
O caminho que se fez com os pais até se chegar aos filhos. 
Elas e ele; filhos do mesmo pai, de mães diferentes que carregam os traços, as virtudes e os defeitos de quem os gerou.
Também eles não fogem à imensidão da palavra amor e de toda a sua vulnerabilidade.
Gostei muito @celiacorreialoureiro

14 de julho de 2022

 


AS INSEPARÁVEIS - SIMONE DE BEAUVOIR



Pode-se morrer de inconformismo? Revolta? Tristeza? Solidão? Amor infeliz?
Pode-se morrer porque se é excecional e os tempos não permitem exceções? Pelo cansaço, a falta de liberdade?
A indignação e a dúvida entre o bem e o mal?
O privilégio é uma palavra e uma acção dúbia, o amor tem diversas formas. Os Gregos tinham diferentes palavras para diferentes tipos de amor.

Início do século XX, o mundo e a sociedade tinham uma textura diferente. Fim da primeira guerra mundial, acredito que as convicções e certezas estavam um pouco confusas. Submergiam entre o antes - casto - e o depois - louco.
Não existem meio termos neste mundo. As que fogem às normas (sejam elas quais forem), são loucas, as que se submetem a elas serão castas até à loucura.

O que poderia ser uma mulher neste Universo? Acredito que ainda longe da transição entre um simples objeto e um ser humano.
A identidade, a resistência, liberdade, escolha, são lutas recentes e que se desvanecem quando à alma não lhe é permitido aceder.
O peso da culpa e do pecado, a assunção autoritária da bondade ou maldade de Deus.
O homem com livre arbítrio do julgamento da necessidade.
Como ao homem é dado a primazia da escolha? Como pode um homem afirmar amor, quando não se dispõem a abdicar?
E porquê abdicar? Que pensamento tão feminino!
Pode-se morrer de dor, não física mas emocional; pode-se morrer por desistência ou cansaço.
Pela privação do ser.

Este testemunho de Simone ficcionado em novela revela a candura do amor inocente dos bancos de escola. Digo inocente, mas será talvez, o mais puro e verdadeiro, desabrochado na verdade e ausente de interesses.
Simone de Beauvoir poderá ser considerada privilegiada à luz do seu tempo; sendo ou não, Simone alcançou sem esforço a primazia do amor que nada exige, a tudo se dá e encontra a alegria na rosa desabrochada do outro.
Zaza, ficcionada de Andrée não... pode-se morrer pela privação do ser. 
    


12 de julho de 2022

 


RENASCER

DIÁRIOS E APONTAMENTOS - SUSAN SONTAG


Não é Susan Sontag, mas não deixa de ser Susan Sontag. Na verdade é mais do que Susan Sontag, é a própria Susan Sontag.
Como refere, algures; o hiato entre Susan Sontag e "Susan Sontag"
Considerada a última estrela literária dos Estados Unidos, o seu diário e apontamentos mostra uma mulher distante da palavra estrela, próxima de um ser humano fascinante. Fascinante mesmo.
O texto de Benjamin Moser na revista Ler de Inverno 2021, complementa a dedicação que pretendo dar à sua obra.
As ideias sobre escrita, o ardente e incessante desejo de aprofundar e expandir a sua instrução. Uma mulher inspiradora. Compreendo o fascínio pela personagem. Susan Sontag poderia até ser, um grande logro ao vivo e a cores, mas teve e terá, muitos outros a espelharem-se em si.
O único tipo de escritora que posso ser é a que se expõe... escrever é expandirmo-nos. Mas até agora eu não tenho gostado nem do som do meu próprio nome. Para escrever eu tenho de gostar do meu nome. O escritor está apaixonado por si próprio... e faz o seu livro desse encontro e dessa violência."
O espelho e o fascínio começa aqui. Como qualquer diário a repetição é notória.  
Susan Sontag repete-se, expõem-se, fragiliza-se, humaniza-se. A conduta exploratória é que a sobressaí de todas as páginas. A mulher que luta pelo ideal de que a vida e a cultura, eram algo por que valia a pena morrer. 
Alguém que timidamente e de forma determinada se foi criando a si própria à imagem dos seus desejos.
O fim deste diário leva-me ao ponto inicial; porquê Susan Sontag é tão fascinante e impõe quase sem me aperceber a necessidade de procura e de espelhar-me em si?
No diário; (1947-1963), Susan Sontag não é uma estrela, mas uma rapariguinha prestes a sair da secundária e a iniciar a faculdade. Dezasseis anos separam o fim do principio e Sontag alimenta diversas experiências, sentimentais e emocionais. Assistimos ao nascimento de um ser humano consciente das suas limitações, ambições e desejos.
Tudo é conhecimento - aperfeiçoa-te - o contexto está adulterado quando retiro a palavra do parágrafo a que pertence, mas apenas esta palavra interessa - aperfeiçoa-te.
Susan Sontag grita-o a cada página que escreve, nas experiências vividas até ao limite, na leitura de um livro, ávida, decomposta, releitura; a sua listagem de obras, as comparações, o empenho; as interpretações filosóficas, o cinema, o casamento e o filho, a mãe e as vivências amorosas. 
A arte não estava separada da vida para Susan Sontag, daí o seu molde ser tão convincente e a imitação necessária a quem a admira, mas pouco convincente.
Acredito que ninguém conseguirá ser Susan Sontag, nem sequer tocar ao de leve no hiato "Susan Sontag" 

Depois desta leitura, tudo quero saber de Susan Sontag, a tudo vou-me agarrar.
Leio novamente estes cadernos de apontamentos. Como são tristes e monótonos! Será que nunca conseguirei escapar deste interminável luto por mim própria? O meu inteiro ser parece tenso - expectante..."


P.S - A pesquisa sobre a personalidade Susan Sontag é diversa. Ela é descrita como uma das mais importantes intelectuais norte-americanas da segunda metade do século XX, escritora, professora, ativista na defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos, ensaísta, cineasta, filósofa e crítica de arte.



8 de julho de 2022

 


OBRAS COMPLETAS MARIA JUDITE DE CARVALHO - LIVRO II



Se no primeiro volume, o memorável "Tanta Gente Mariana" e "Palavras Poupadas", foram contos que nunca irei esquecer, aqui não posso deixar de referir "Paisagens sem Barcos", um conto perfeito sobre a solidão permanente, e "Armários Vazios", uma história poderosa sobre a compreensão do luto, as subtilezas dos outros, as relações entre pessoas que nada tem em comum, mas que se mantém unidas em nome de alguém desaparecido. O amor dedicado a quem morreu é o móbil para uma vida por metade.
Em "Armários Vazios", compreendemos que o luto vai para além do próprio amor, ou o que se julga dele, mas da convicção plena que a vida tem esse sentido e sempre terá.
Somos a nossa própria clausura, carregada de momentos de felicidade que arrumamos nos armários tão vazios de roupa como de desejo, vida e sonho. Tudo se perde com os anos e a entrega a todos e a tudo menos a si próprios. 
"Armários Vazios", fala da dedicação do ser humano, especificamente a mulher na relação e na falta dela com os outros. Esses, são só gente que estão depois da linha que divide a vida. Dora Rosário anula-se como ser humano e dedica-se ao marido inútil e à filha. Quando ele morre, ela mantém a linha que separava a sua vida ou não-vida dos outros, como se eles fossem, aí está, apenas gente inalcançável.
Li-o com a lentidão merecida, na esperança realizada de encontrar em cada palavra o caminho da alma feminina complexa, distante e capaz de surpreender.

Muito à dizer sobre estes contos. Sobre Maria Judite de Carvalho, espero que as vozes nunca se calem.
Com um prefácio interessantíssimo de Batista-Bastos; "distante dos rataplãs da publicidade; não vai a sessões de autógrafos, não cultiva as encenações de actor em que muito autores (e alguns bons autores) se travestiram. Recusa a vida parda, a existência polvilhada de futilidades."
Achei graça à palavra rataplãs, comparando com a actualidade, este texto de Batista-Bastos, escrito em 1989, tem um quê de modernidade e não deixará de ser uma reflexão sobre o verdadeiro objetivo do escritor. 
Maria Judite de Carvalho escreveu, deixou a promoção da sua obra a outras instâncias; as mesmas, hoje, não deixam esquecer o seu trabalho e a prova são estes seis volumes com toda a sua obra publicada. 
Valerá toda ela a pena, a julgar por estes dois primeiros volumes. 
É para ler devagar, é para descobrir a mulher portuguesa do século XX nas suas linhas. É para olharmos para a fotografia da nossa avó, bisavó (desconheço a vossa idade) e para o rosto da nossa mãe, e reconhecê-las nestas linhas tristes, solitárias e belíssimas. Vão descobrir semelhanças que nunca deram conta.


Isso. Amar de mais.

Depois, a pouco e pouco, fui-me encontrando comigo própria. Mais tarde apareceu o Duarte. E depois desapareceu. Fiz o possível por segurar a sua imagem, a sua recordação. Mas com que esforço! Era preciso estar sempre alerta, nunca me distrair. Distraí-me por fim. Obrigaram-me a isso.

Todos acham um pouco estranho este género de atitudes, embora esperem pela desistência para começarem a censurar-nos.   

Nunca havia horas tão importantes como aquelas em que estava sozinha. As outras eram igualmente ficção e só depois, a sós consigo própria, adquiriam uma certa consistência e uma atualidade relativa.