LITÂNIA DA SABEDORIA
(Um conto inédito)
Este padre que aqui está é novo. Relativamente
novo.
Bem! Os seus cabelos brancos já apareciam aqui e acolá.
Nos últimos meses tomavam de assalto o seu cabelo
escuro encaracolado, mas a D.ª Beatriz dizia que o Padre Luís iria ter sempre
aquela cara de menino. Ela gostava muito dele e, se a D.ª Beatriz gostava do
padre, poder-se-ia dar a discussão sobre o assunto terminada.
Não agradou a todos quando chegou. Oriundo de uma
província ainda mais distante, a sua cara demasiado nova e os seus gestos
demasiado benevolentes foram o rastilho para conversas intermináveis que só o
tempo ajudaram a curar.
Era novo, era bem-parecido e escudava-se há
batina na rua. Mantinha a clérgima de um branco imaculado, a camisa preta e o
seu casaco de bom corte, mas as suas calças eram de ganga, na maioria das vezes
os sapatos de sola pretos davam lugar a umas sapatilhas gastas ou a umas
galochas até aos joelhos no Inverno.
Têm paciência. É um homem de uma enorme
generosidade e paciência. Era a conversa recorrente sobre o padre Luís naquelas
ruas empedradas e estreitas.
E isso realmente, não lhe faltava.
As beatas ocupavam a Igreja como rebanhos e ele,
com a sua paciência desmesurada, ensinou-lhes que aquilo era a Casa de Deus e
que o Senhor, na sua infinita misericórdia precisava de silêncio.
“Se não houver silêncio dificilmente o Senhor
ouvirá os fiéis que se sentam neste bancos a orar e a suplicar, não vos parece,
minhas queridas?”
Por isso elas deixaram de aparecer em rebanhos,
mas timidamente. À vez. Um dia limpava uma, noutro dia limpava outra.
Não mudou os hábitos, não mudou as crenças nem as
tradições. Aliás, alimentava-se profundamente delas.
A missa de Aleluia era perfeita nos seus lábios e
nos seus gestos. Ele encarava-a como uma bênção que o Senhor lhe deu.
Ele era um padre agradecido e alegre. Nunca se
desviava de ninguém.
Não tinha contemplações e quando a Maria Joaquina
morreu na véspera de Natal. Perdão! Na véspera da véspera de Natal, fez uma
homilia carregada do valor da dedicação.
Só quem não quis é que não compreendeu a maneira
escandalosamente dissimulada como ele atirava farpas a um viúvo desinteressado
e ardiloso.
Sofria também com os outros.
Sofreu profundamente quando enterrou a filha da
Conceição. Sofria pelo sofrimento da amiga que ali à sua frente se resignava ao
in resignado.
Admirava-lhe a conduta e aceitava a culpa que a
Conceição trazia na voz e nos gestos. Nunca tentou iludi-la. Nunca tentou
explicar-lhe que o ser humano não é dono de outro ser humano. Que ela não se
poderia culpar das escolhas da própria filha.
Ele tinha o bom senso e a prudência de não a
magoar mais do que ela já estaria magoada, mas não estava disponível para
ilusões.
Quanto ao perdão, não era um fardo, mas uma
bênção.
“Tens de perdoar-te! Tens outra criança em casa.
Precisas de te perdoar.”
Por vezes parecia um velho nos gestos. Com pouco
mais de quarenta anos andava ligeiramente curvado na rua. Mãos atrás das
costas, como os miúdos pequenos numa visita de estudo a um museu. Chapéu.
Sempre de chapéu. Ainda andou dois a três anos com uma boina, mas voltou ao seu
chapéu Fedora de lã preta no Inverno
e ao Panamá de palha no Verão.
Perde-se no convívio do Parque João José Luiz com
os velhos da vila e, as tardes inteiras no Lar da Misericórdia com as viúvas
traquinas.
Almoça com frequência na tasca do António na rua
direita. Têm com ele uma amizade constante e profunda. Ele, o António não frequenta
os bancos da Igreja.
Compreende os seus longos momentos de melancolia,
as suas alterações de humor, a timidez num homem encorpado, forte e retraído. Faz
um bitoque delicioso e trata os turistas com indiferença.
Frequenta a Fotovila
com a ciência de um jornaleiro ávido de conhecimento diário que os jornais
alimentam.
Detesta falatórios, coisa que circula com
abundância naquelas ruas.
Homens e mulheres entretém-se assim, com mais ou
menos fervor. Não considera um mal dos lugares pequenos.
Recorda os sete meses que foi padre em Espinho. A
tagarelice, o falatório, as conversas à boca pequena. O disse que disse,
ganhavam uma dimensão assustadora com a dimensão do povoado. Por isso, não! Não
concorda quando lhe dizem que aquele mal deve-se ao meio pequeno e tacanho, à ignorância
das gentes, à falta do que fazer.
Não! Isso para ele tinha um nome e não uma
designação regional ou local. Isso para ele era solidão. E mais não dizia.
As pessoas ali tinham o trato simples, mas não
deixavam escapar uma novidade. Não foi com surpresa que o padre mandou calar o
grupo de catequistas quando as apanhou a falar da Professora Alice.
A conversa era um pouco estranha e ele ainda não
a conhecia. Não queria juízos de valor dentro da casa do Senhor.
Elas calaram a boca e encolheram os ombros,
sorriram entre si. Andava triste e irritado o padre, comentavam.
Todos sabiam porquê. Todos compreendiam e
partilhavam a sua dor.
A Esther tinha morrido há quatro pares de meses,
o José Paulo era uma pálida imagem do homem poderoso que sempre fora e a vila
choraria eternamente a perda da Professora Esther. Os seus meninos estavam
vazios.
O padre Luís não era alheio a tudo isto. Era
íntimo dos dois, apesar dos dois serem judeus.
Inicialmente compreendeu a dor e o isolamento do
José Paulo. Perder a mulher daquela maneira, repentinamente, sem aviso prévio,
deveria ter revolvido qualquer capacidade de o amigo entender a existência.
As cerimónias fúnebres foram dolorosas para
todos. O Padre chorou no altar.
Houve um momento de profundo silêncio na Igreja
repleta de gente quando o padre calou-se a meio da sua homilia e chorou.
Ele não teve vergonha de o fazer. Bem! Conteve-se
de início, fez um esforço sub-humano para segurar o peso das lágrimas, mas
quando elas começaram a fugir-lhe dos olhos, quando compreendeu que não havia
nada a fazer e que aquela dor também era dele, chorou.
Sentiu-se indecoroso e fixou os seus olhos num
José Paulo ausente à sua frente. Viu no amigo a bondade no olhar e deixou que
as lágrimas escorressem pelo seu rosto.
O povo deixou-o chorar. Em silêncio chorou com
ele.
Só a Esther saberia provocar um sentimento
coletivo tão profundo.
Os judeus tem ritos e costumes diferentes. Apesar
de judia, Esther era presença habitual na missa.
Ela era, (para além de muitos outras coisas) uma
mulher entregue ao mundo e às suas paixões. Aos seus meninos. A todas as
crianças que via e ajudava a medrarem para um mundo ávido de conhecimento.
José Paulo acompanhava-a por contumácia. Não
tinha nenhum interesse numa missa, mas adorava as longas conversas com o padre
Luís, muitas vezes nos bancos da Igreja ou numa mesa de um café, ou até na sua
própria casa.
Conversavam horas, distraídos na sua própria
religiosidade.
Com a morte da Esther tudo isso acabou. O padre
considerou natural nos primeiros tempos, mas os meses foram passando e a
atitude distante e apática do José Paulo transformou-se numa profunda dor.
O amigo dificilmente voltaria a ser o mesmo e
isso entristecia-o. A ele e a todos o que o viam passar agarrado à sua bengala,
com os olhos parados no chão, com a sua expressão dolorosamente só. Ele sentia
que não perdera só um para a morte, mas os dois.
Mas o padre Luís era um homem benevolente.
A Maria Francisca não podia queixar-se da sua
benevolência. Aparecia para confessar-se dia sim, dia não e o padre tratava o
assunto com paciência e benevolência.
“Perdoe-me padre, pois eu pequei!”
Maria Francisca sentia-se em pecado constante e o
padre Luís retirou-a do confessionário. Recebia-a nos bancos da Igreja e
dizia-lhe sem o dizer “ eu estou aqui, minha filha”, “o que te atormenta?”
Maria Francisca não pecava constantemente, vivia
em constante tormento.
Ele precisava de a libertar e, não permitir que
ela se fechasse no confessionário era a maneira mais direta de o fazer.
O seu rebanho era disperso, manso, autêntico,
ingénuo na maioria das situações e profundamente agradecido.
Aceitavam a dor na mesma proporção que aceitavam
a benesse. O Espírito Santo caminhava com eles alegre e ligeiro.
Eram brejeiros e tinham contudo, por vezes,
maldade.
Faz parte do barro que nos fez como seres
humanos. Há os desviantes e os desviados.
Fazia-lhe espécie que o Manuel Sousa, motorista
da carreira para Portalegre não trocasse mais do que duas falas com ele.
Não parava na Igreja, mas o padre nunca fez caso
desses comportamentos. A porta estava aberta, só entrava quem queria.
Mas não passar do bom dia ou boa tarde já era
desusado.
“O Manuel Sousa é gago padre. Parece um
esgrouviado quando diz mais de duas palavras”
Ele matutou na explicação, mas não se deixou
abalar. Perdeu tempo do seu tempo e comprou um bilhete para Portalegre na
carreira da manhã.
Uma vez lá chegado e já com a carreira vazia o
padre manteve-se sentado, mesmo ao lado do Manuel Sousa. Teriam tempo para
conversar até a carreira voltar para Castelo de Vide, tempo que o padre iria
usar para mostrar ao Manuel Sousa que ele não era nenhum esgrouviado se
dissesse mais do que duas palavras.
Ligeiramente curvado na rua, andava
desmesuradamente por aquelas ruas. Cumprimentava as velhas que sorriam à porta
de casa ao Sol, os miúdos que brincavam ao ar. Entrava na casa de quem o
chamava. Fazia homilias como ninguém. Os traquinas davam a hóstia nas suas
missas.
Falava do Senhor como íntimo. Falava com o
Senhor, como se o Senhor fosse a sua mulher e o seu confessionário a sua
alcova.
Compreendia o olhar de uma mulher bonita.
Compreendia o seu ser libertador e a sua marotice. Não tocava, mas compreendia.
“Bom dia Joana.”
“Bom dia padre Luís.”
A criança deixava de ser criança. Ele olhou-a de
perfil e reteve-a na sua memória. Estaria porventura a raiar os doze anos?
Ainda recordava o dia em que a batizou. Um dos primeiros atos religiosos que
realizou naquela vila. Teve um profundo pesar quando encarou a mãe. Quando deu
conta da sua destruição.
Deveria ter sido bonita em tempos. Ainda mantinha
um ligeiro olhar matreiro, mas tudo o resto estava destruído.
Naquele tempo a Conceição ainda o olhava de lado,
esquiva e pouco cooperante. Sentiu-lhe um cansaço e uma esperança nos gestos
que dedicava à neta.
Essa esperança a Conceição ainda mantêm e a Joana
já deve estar quase com doze. Quase de certeza.
“E o padre, o que vai tomar hoje?”
“Um café e podes trazer uma boleima. A tua avó?
Não está?”
“Foi com o Vicente e outra senhora até à casa da
Praça.”
“Aí sim!”
“Parece que vem uma professora de Lisboa dar
aulas no Politécnico de Portalegre. É amiga do Vicente.”
“E vai morar aqui?”
Joana encolheu os ombros pouco interessada e o
padre sorriu perante essa possibilidade. Não compreendeu porque se sentia
iluminado, por isso não se deteve muito tempo nestas sensações.
A sua ida ali tinha outro propósito.
Joana tinha-se perdido algures na incapacidade de
assimilar a morte. Sem pai, sem mãe e agora sem a Esther, o que seria que
corria solto dentro daquele pensamento que tinha uma tristeza e uma indolência
acumulada.
A Conceição já o tinha comentado. A preocupação
pelo distanciamento da neta. Os longos silêncios, a sua constante procura de
solidão. Tudo isto em tempos a Esther tinha tirado do corpo à Joana. Há muito
tempo atrás.
Seria para o padre Luís resolver? Seria para ele
tentar pelo menos.
“Como te sentes Joana?”
O padre tinha pouca disponibilidade para
subterfúgios. Era tão direto que não permitia escapatória.
“Bem. Porque pergunta isso padre?”
Ele olhou-a de perfil. Era teria doze? Se não
tivesse, estava lá perto. Nada na sua imagem ou postura, a poderia definir. Não
tinha corpo de doze, era magra e pequena, e não tinha mente, espirito de doze.
Esse estava muito além, até do seu próprio entendimento.
Como os diamantes brilhavam na mão da Esther,
pensou o padre.
“Queres sentar-te? Preciso de falar contigo?”
Joana acedeu contrariada. Deduzia uma reprimenda
da avó se chegasse e a visse sentada em vez de tomar conta do que é seu.
“Tens razão! Não perguntei por perguntar.”
“O que precisa padre?”
“Tenho saudades da Esther, e tu?”
A menina colocou os olhos no chão. Ela não sabia
o que sentia. Ou melhor, não tinha grande capacidade de compreender esta
irracionalidade. Sentia-se egoísta pela perda. Sentia que estava a fazer tudo
mal. Que os castigos do Senhor eram fortes demais. E sim, tinha muitas saudades
da Esther. Mas como dizê-lo? Calou-se.
O padre deu-lhe espaço e manteve-se em silêncio,
mas a Joana não disse nada. Sim! Seria para ele resolver.
“A culpa não é tua, nem o Senhor pretende
castigar-te a ti. Todos temos um tempo. Por vezes esse tempo do outro é
discordante do nosso. No mínimo isso traz-nos mágoa. Quando a vida passa por
nós serenamente, por volta dos trinta, quarenta anos, começamos a ver os outros
a desaparecer. Acho que é nessa altura que compreendemos que a nossa infância e
a nossa inocência terminou, – respirou fundo e fechou ligeiramente os olhos -
infelizmente a tua infância e a tua inocência está a desaparecer. E parece-me
que cedo demais.”
A Joana não disse nada mas tirou o olhar do chão
e olhou o padre diretamente nos olhos.
“Já não és criança Joana. Lamento. A minha única
alegria é que tu serás uma grande esperança. – Chegou-se para a frente e
segredou-lhe ao ouvido – Em cada porta que se fecha, há outra que se abre.
Honra-a como se ela estivesse aqui. Ela nunca morrerá.”
As lágrimas apareceram nos olhos da criança mas
ela não cedeu. A infância estava estragada nela.
Ela levantou-se e beijou o padre no rosto. Ele
contudo, ainda não tinha terminado.
“A tua vida não está definida nem marcada pelas
atitudes e comportamentos da tua mãe. Tu és única. Tu és mais do que isso. Por
isso, deixa-os falar, deixa-os olhar-te em cada gesto que fazes. A tua finitude
não te diminuirá.”
Joana ouviu tudo isto já em pé, com as mãos atrás
das costas, com a necessidade de abandono. O seu perfil já era fugidio, mas a
dúvida atormentava-a e o padre até poderia ter a resposta.
“Padre, eu posso pedir ao Senhor que me mande
alguém?”
“Como assim? Não te compreendo!”
“Alguém que tenha o mesmo tom que a Esther.
Alguém que olhe para mim e veja aquilo que o padre vê e a Esther também via.
Alguém que esteja ao meu lado, que cuide de mim, que olhe para mim, e enfim,
que deixe que eu cuide um pouco dela.”
O padre sorriu e baixou os olhos. Encantado! Estava
encantado com tanta inocência, e tanta maturidade.
“O que tu quiseres Joana. Acredita! Ele vai
ouvir-te.”
Haveriam de se encontrar com a frequência diária
de quem vai tomar o café e de quem serve esse mesmo café.
O padre tinha um sorriso fácil e a benevolência
dos justos. E ele alegrava-se de vê-la medrar-se. Os seus momentos de lucidez
crescida, o seu revirar de olhos, a sua atitude traquina e marota.
Também ele pediu ao Senhor alguém para a Joana.
Descreveu as qualidades e os defeitos desse alguém. Não podia ser um herói porque
a Joana também queria tomar conta. Pediu por isso, um anjo caído ou em queda.
Mas um anjo.
Um dia encontrou-a a conversar com a Professora
Alice, numa das mesas do café.
Reparou com cuidado no distanciamento das duas
com os outros. Notou que nem uma que não o conhecia, nem a outra que lhe falava
todos os dias dera pela sua passagem, nem sentiram que ele se sentara na mesa
ao lado. Compreendeu toda a conversa e estremeceu com o azul profundo dos olhos
da Alice. O seu coração descompassou quando ela distraidamente olhou para ele
sem o ver.
Apercebeu-se no revirar de olhos de uma Joana
iluminada e que a outra pelos seus gestos e tom de voz era o tal anjo em queda.
Não voltou a falar do assunto com o Senhor. Ele
não era homem de chatear ninguém. Ele tinha olhos e via.