31 de janeiro de 2022

 


FINITUDE


Dizem que a primeira infância termina aos seis anos. 
A partir daí ser criança, significa outra coisa qualquer.
Ela já tinha feito seis anos em Dezembro, mas o seu mundo era idêntico. Se lhe perguntassem se ela se sentia uma criança ou algo mais do que uma criança, ela responderia que já era crescida, que já sabia atar os atacadores dos sapatos e escovar os dentes sozinha. Que já limpava o fogão, empoleirada num banco de plástico a cantarolar uma música do trecho de um filme. Quanto ao resto não sabia, nem queria saber. O cheiro que lhe saía do corpo era igual, o conforto dos braços dos outros era ainda muito necessário, e ainda acordava aborrecida e agradecida.
O reboliço da Creche era igual. Bem! Não bem igual. Ela já não dormia a sesta, já tinha deixado de o fazer ainda com cinco anos. Era uma sensação estranha aquilo que lhe queriam impor com conversas de gente adulta. 
Contrariada foi a palavra que a educadora utilizou no primeiro dia daquele último ano. Ela queria subir com os mais novos e dormir, em vez disso colocaram-lhe um livro á frente cheio de letras e desenhos e passou momentos intermináveis a olhar para eles.
Um aborrecimento diga-se a verdade.
Ela gostava mais de estar em casa da avó. Gostava mais daquelas férias de Verão intermináveis e maçadoras. Do cheiro do silêncio. De saber o sítio das coisas. De passear de vez em quando com o seu chapéu na cabeça e os seus óculos de sol.
Ela gostava mais daquele caminho intermédio entre a realidade e o sonho. A floresta encantada. A primeira infância deve ter-se perdido aí. 
Em vez disso, tinha de estar ali. Não era mau de todo! Por favor, não a interpretem mal. 
Ela adorava o passeio de camioneta entre casa e a Creche no meio da aldeia. Ela adorava o cheiro a terra que circundava aquele território e ela adorava as possibilidades.
Já não caminhava atrás dos mais crescidos, mas tinha os mais pequenos atrás dela.
E não lhe faltava a amiga da sala ao lado para brincar nos intervalos. Para se esconderem debaixo do escorrega no cochicho uma com a outra.
Tinha um sequio de miúdas pequenas atrás dela. Não se lembrava de ela própria, ser assim tão insistente. De ser tão carente, de necessitar de tanta atenção.
Recordava-se sim, do seu colega de sala, os dois filhos do menino Jesus. Ela nasceu de manhã, ele de tarde.
Era parceiros de sala, e ele só a queria a ela, no primeiro ano. Ele encontrava nela a paz que o seu espirito e a sua doença não lhe davam. A floresta encantada dele era mais sombria.
Ela perdeu aí um pouco da sua primeira infância e foi generosa. Ofereceu-lhe as cores vivas e garridas da sua própria floresta encantada. Estendeu-lhe a mão e caminhou com ele.
Quando ele se desinteressou por ela no ano seguinte aprendeu o que é a mágoa de ser esquecida. Não reagiu muito bem!
Por ela estaria em casa da avó. 
Lá estaria a salvo destes contratempos. A avó é benévola. Gosta de dar, perdoa as faltas mas não as deixa passar. 
É uma santa e uma ingénua.
Ela era feliz quando estava ao pé da avó. Porquê? Nunca lhe tinham perguntado, mas já que teve de pensar no assunto, provavelmente porque sentia a avó feliz ao seu lado.
A avó tinha um primo. Homem de meia idade. Um pouco inconveniente. Um pouco machista. Bem! Muito machista. Um ser com outros pensamentos, mas a miúda alegrava-se ao pé dele. 
Tratava-a como uma princesa, comprava-lhe um gelado e não alterava o seu vocabulário só porque ela estava sentada no sua mesa do café.
Ela aprendeu a conhecer as nuances daqueles momentos. Compreendeu que o ser humano não é todo a preto e branco. 
Que os homens são um pouco tolos. Que ele deveria ter ficado na primeira infância porque era muito teimoso. Só pode! Ele dizia coisas que a faziam pensar. Ele fazia coisas que a faziam pensar. Era contraditório. 
Ele era por vezes muito desinteressante e deixava-a desinteressada. Nunca percebeu se ele era, foi, ou estava disposto a ser feliz. Estava para além do seu entendimento.
Quando ele morreu ela estava a meio caminho entre o fim da primeira infância e o inicio de outra coisa qualquer. Ela calou-se perante este facto.
Talvez na sua cabecinha a ausência teve um gosto diferente. Esse gosto, agridoce estava fora dos limites da floresta encantada e ela só via uma solução. Ignorar!
Mas como ignorar a morte quando reconhecemos-lhe o cheiro?
A finitude da primeira infância tinha começado.  


27 de janeiro de 2022

 


O BOM INVERNO  - JOÃO TORDO




Falar deste livro é muito complicado. É uma história virada ao contrário.
Um narrador sem nome. Um escritor que perdeu o caminho das linhas de um livro.
Acho graça ao seu despreendimento em relação a esse facto. Completamente disponível para entregar-se ao vazio.
Curioso também a maneira como sai dele.
A necessidade de dinheiro. A realidade que lhe bateu à porta e a necessidade de pagar contas. Somos sempre atropelados por esta conjuntura chamada dinheiro, deveres, obrigações.
A partir daí ele vai na irracionalidade da situação e tudo passa a ser irreal.
Estou inclinada a pensar que não passou de um sonho. Quem sabe o narrador sem nome nem saiu da sua cama e sonhou tudo isto. 
Podemos misturar-nos com o irreal, não podemos? Afinal um livro é um livro e um livro é único e o que eu li, não será, concretamente o mesmo que o outro leu.
Por isso eu estou inclinada para esse ponto. O narrador precisou de um fio condutor que o tirasse do vazio e o levasse de volta às linhas sólidas da criação e esta era a melhor estrada para o fazer. Fê-la tão bem que foi dos poucos que sobreviveu.

A escrita de João Tordo está lá. Porventura menos trabalhada, por vezes menos conseguida, mas o exemplar que eu tenho na minha estante já tem doze anos. Ele já caminhava e já tinha rasgos de genialidade.
Li este livro como leitura conjunta do "Clube Manta de Histórias".
Li-o em conjunto, provavelmente com centenas de pessoas que trocaram nas redes sociais opiniões especificas de determinadas páginas.
Como cada um somos apenas "um". Únicos como o autor diz a certa altura, invariavelmente a minha opinião será diferente das demais.
Voltando um pouco atrás, há parte da irrealidade, Bom Inverno foi um sonho, Bom Inverno nunca existiu.
Pelo menos terminou a sua angústia de não conseguir criar.
Pelo menos devolveu-lhe a saborosa sensação de sentir-se desperto daquele vazio que o consumia até aos ossos da perna.
Mas esta é apenas a minha humilde e despachada opinião.
E a vossa, qual é?

"Um marca de finitude"

"Vai àquela sala e pergunta a cada um deles onde é que fracassou; pergunta-lhes onde se encontra a sua prova de finitude. Todas a carregamos connosco de uma maneira ou de outra, porque estamos agora e para sempre predestinados ao fracasso."

Esta ideia de fim (finitude) e fracasso, como se o fim fosse o resultado do fracasso é interessante.
Nesta perspetiva todos nós fracassamos, porque a finitude faz parte do ser humano. 
É lá que se encontra a nossa passagem estreita que nos limita para todo o sempre.
Provavelmente nunca deveríamos perder de vista a possibilidade de finitude. Vê-la apenas como uma possibilidade é mantermo-nos ébrios perante a realidade. 
Mas esse é um jogo perigoso demais para o dia-a-dia. 
Esse é um jogo que nos poderá levar ao fraco domínio de nós próprios. Esse jogo não é para todos! 


24 de janeiro de 2022

 


QUAL É A IMPORTÂNCIA DE LER?




Fui procurar a definição na Internet e encontrei a seguinte frase;
"A leitura estimula o raciocínio, melhora o vocabulário, aprimora a capacidade interpretativa além de proporcionar ao leitor um conhecimento amplo e diversificado sobre vários assuntos. Ler desenvolve a criatividade, a imaginação, a comunicação, o senso crítico, e amplia a habilidade na escrita."

É uma frase bonita e com um fundo de verdade. Ler é tudo isto. 
Quando lemos temos acesso a tudo isto. Temos acesso a tudo e a mais alguma coisa. A um universo de ausência de limites.
Mas (vou sorrir um pouco pelo canto dos lábios), e a paixão!
E o intenso sentimento pelas personagens. Aquelas que sentamos ao nosso lado e por vezes até ao nosso colo.
E os suspiros de sofrimento e as lágrimas que derramamos pelas suas histórias. Pelas vidas.
Vidas insufladas como balões de ar ao vento. 
O escritor coze-as no lume brando do seu fogo. O leitor despe-as e coloca-lhes a roupagem que bem entende. A que mais se colar à sua própria pele.
Pois é! É uma bela frase, mas não fala da paixão.

23 de janeiro de 2022

 


Dia Mundial da Escrita à Mão



Saber-me, sentir-me.
A magia do papel aveludado.
O bico fino da caneta de aparo.
Chamem-me alienada, antiga, desenquadrada. Assarapantada.
Desusada se quiserem!
Cheirar o papel e acariciar a caneta nos meus dedos.
Compreender o tempo que a escrita permite.
Escrever à mão!
Que a mão nunca me fuga, por favor!


20 de janeiro de 2022

 


A VIDA NO CAMPO - OS ANOS DA MATURIDADE - VOL.II - JOEL NETO



Cheguei ao fim deste livro, sentada no sofá da minha sala, com a lareira acesa e a desejar estar noutro lugar qualquer. A desejar ser outra pessoa. Talvez não outra pessoa, mas a desejar ter outras opções de escolha.
Hum! Não será uma questão de opções de escolha. Será a capacidade de procurar essas opções de escolha.

Falamos de um diário. Este é o segundo volume, mas entra na pele e percorre as veias do meu sangue com tanta intensidade como o primeiro.
E tenho de parar a meio, para degustar as suas palavras na minha boca. Tenho de largá-lo a um canto e descansar os olhos noutras histórias ao mesmo tempo, que os diários de Joel Neto têm duas maneiras de ler.
Em degustação como fiz com a Primavera e o Verão e em compulsão como fiz com o Outono e o Inverno.
E qual é a primeira conclusão que eu tiro?
Que sinto-me um pouco invejosa!... Muito invejosa.
Que também eu queria esta "vida no campo" para mim.
Um bocado de chão. A promessa de um jardim e um pomar. O trabalho perfeito. Os livros, as linhas, as letras, as frases.
A sabedoria de alguém que já aceitou o caminho da aprendizagem. 
O tempo para a escrita.
A compreensão de quem está ao nosso lado porque está no nosso "eu".
Os outros!
Sempre os outros.
Quantas vezes parei e olhei as palavras e li mais do que aquilo que está escrito. O seu significado.
Inverno, necessário, possível, sublime.
Quase que lhe sinto o cheiro a terra quando a chuva caí.
Da minha janela tenho um deslumbramento de um rebanho de ovelhas. Para os tempos que correm, olhar para a janela e não ver o prédio do vizinho, nem o cinzento das ruas, nem o dilúvio das cidades em dias de chuva já é, por si só uma bênção.
E eu sou agradecida por isso. Mas por vezes, também essa pequena bênção, não me basta.
Dentro do meu corpo eu anseio por mais do que isto. Um planalto a perder-se de vista onde o barulho ensurdecedor dos balidos e chocalhos das ovelhas seja tão forte. A paz reconfortante da minha própria alma.

"Viver aqui também. Viver noutro lugar qualquer. Em qualquer lugar - em todos os lugares. Podíamos ter vivido tantas vidas. Podíamos ter sido tanta gente que já não seremos. Como é que as pessoas conseguem lidar com isto sem literatura, afinal?"
É uma pergunta que Joel Neto faz sensivelmente no início do Outono.
Eu não sei o que vai nas vossas cabeças, mas na minha não existe qualquer dúvida. 
Sem a literatura e a própria imaginação. Sem o paralelo de outras realidades e fantasias somos apenas seres incompletos.
Falo por mim, claro!


19 de janeiro de 2022

 


LITÂNIA DA SABEDORIA 

(Um conto inédito)




Este padre que aqui está é novo. Relativamente novo. 
Bem! Os seus cabelos brancos já apareciam aqui e acolá.
Nos últimos meses tomavam de assalto o seu cabelo escuro encaracolado, mas a D.ª Beatriz dizia que o Padre Luís iria ter sempre aquela cara de menino. Ela gostava muito dele e, se a D.ª Beatriz gostava do padre, poder-se-ia dar a discussão sobre o assunto terminada.
Não agradou a todos quando chegou. Oriundo de uma província ainda mais distante, a sua cara demasiado nova e os seus gestos demasiado benevolentes foram o rastilho para conversas intermináveis que só o tempo ajudaram a curar.
Era novo, era bem-parecido e escudava-se há batina na rua. Mantinha a clérgima de um branco imaculado, a camisa preta e o seu casaco de bom corte, mas as suas calças eram de ganga, na maioria das vezes os sapatos de sola pretos davam lugar a umas sapatilhas gastas ou a umas galochas até aos joelhos no Inverno. 
Têm paciência. É um homem de uma enorme generosidade e paciência. Era a conversa recorrente sobre o padre Luís naquelas ruas empedradas e estreitas.
E isso realmente, não lhe faltava.
As beatas ocupavam a Igreja como rebanhos e ele, com a sua paciência desmesurada, ensinou-lhes que aquilo era a Casa de Deus e que o Senhor, na sua infinita misericórdia precisava de silêncio.
“Se não houver silêncio dificilmente o Senhor ouvirá os fiéis que se sentam neste bancos a orar e a suplicar, não vos parece, minhas queridas?”
Por isso elas deixaram de aparecer em rebanhos, mas timidamente. À vez. Um dia limpava uma, noutro dia limpava outra.
Não mudou os hábitos, não mudou as crenças nem as tradições. Aliás, alimentava-se profundamente delas.
A missa de Aleluia era perfeita nos seus lábios e nos seus gestos. Ele encarava-a como uma bênção que o Senhor lhe deu.
Ele era um padre agradecido e alegre. Nunca se desviava de ninguém.
Não tinha contemplações e quando a Maria Joaquina morreu na véspera de Natal. Perdão! Na véspera da véspera de Natal, fez uma homilia carregada do valor da dedicação.
Só quem não quis é que não compreendeu a maneira escandalosamente dissimulada como ele atirava farpas a um viúvo desinteressado e ardiloso.
Sofria também com os outros.
Sofreu profundamente quando enterrou a filha da Conceição. Sofria pelo sofrimento da amiga que ali à sua frente se resignava ao in resignado.
Admirava-lhe a conduta e aceitava a culpa que a Conceição trazia na voz e nos gestos. Nunca tentou iludi-la. Nunca tentou explicar-lhe que o ser humano não é dono de outro ser humano. Que ela não se poderia culpar das escolhas da própria filha.
Ele tinha o bom senso e a prudência de não a magoar mais do que ela já estaria magoada, mas não estava disponível para ilusões.
Quanto ao perdão, não era um fardo, mas uma bênção.
“Tens de perdoar-te! Tens outra criança em casa. Precisas de te perdoar.”
Por vezes parecia um velho nos gestos. Com pouco mais de quarenta anos andava ligeiramente curvado na rua. Mãos atrás das costas, como os miúdos pequenos numa visita de estudo a um museu. Chapéu. Sempre de chapéu. Ainda andou dois a três anos com uma boina, mas voltou ao seu chapéu Fedora de lã preta no Inverno e ao Panamá de palha no Verão.
Perde-se no convívio do Parque João José Luiz com os velhos da vila e, as tardes inteiras no Lar da Misericórdia com as viúvas traquinas.
Almoça com frequência na tasca do António na rua direita. Têm com ele uma amizade constante e profunda. Ele, o António não frequenta os bancos da Igreja.
Compreende os seus longos momentos de melancolia, as suas alterações de humor, a timidez num homem encorpado, forte e retraído. Faz um bitoque delicioso e trata os turistas com indiferença.
Frequenta a Fotovila com a ciência de um jornaleiro ávido de conhecimento diário que os jornais alimentam.
Detesta falatórios, coisa que circula com abundância naquelas ruas.
Homens e mulheres entretém-se assim, com mais ou menos fervor. Não considera um mal dos lugares pequenos.
Recorda os sete meses que foi padre em Espinho. A tagarelice, o falatório, as conversas à boca pequena. O disse que disse, ganhavam uma dimensão assustadora com a dimensão do povoado. Por isso, não! Não concorda quando lhe dizem que aquele mal deve-se ao meio pequeno e tacanho, à ignorância das gentes, à falta do que fazer.
Não! Isso para ele tinha um nome e não uma designação regional ou local. Isso para ele era solidão. E mais não dizia.
As pessoas ali tinham o trato simples, mas não deixavam escapar uma novidade. Não foi com surpresa que o padre mandou calar o grupo de catequistas quando as apanhou a falar da Professora Alice.
A conversa era um pouco estranha e ele ainda não a conhecia. Não queria juízos de valor dentro da casa do Senhor.
Elas calaram a boca e encolheram os ombros, sorriram entre si. Andava triste e irritado o padre, comentavam.
Todos sabiam porquê. Todos compreendiam e partilhavam a sua dor.
A Esther tinha morrido há quatro pares de meses, o José Paulo era uma pálida imagem do homem poderoso que sempre fora e a vila choraria eternamente a perda da Professora Esther. Os seus meninos estavam vazios.
O padre Luís não era alheio a tudo isto. Era íntimo dos dois, apesar dos dois serem judeus.
Inicialmente compreendeu a dor e o isolamento do José Paulo. Perder a mulher daquela maneira, repentinamente, sem aviso prévio, deveria ter revolvido qualquer capacidade de o amigo entender a existência.
As cerimónias fúnebres foram dolorosas para todos. O Padre chorou no altar.
Houve um momento de profundo silêncio na Igreja repleta de gente quando o padre calou-se a meio da sua homilia e chorou.
Ele não teve vergonha de o fazer. Bem! Conteve-se de início, fez um esforço sub-humano para segurar o peso das lágrimas, mas quando elas começaram a fugir-lhe dos olhos, quando compreendeu que não havia nada a fazer e que aquela dor também era dele, chorou.
Sentiu-se indecoroso e fixou os seus olhos num José Paulo ausente à sua frente. Viu no amigo a bondade no olhar e deixou que as lágrimas escorressem pelo seu rosto.
O povo deixou-o chorar. Em silêncio chorou com ele.
Só a Esther saberia provocar um sentimento coletivo tão profundo.
Os judeus tem ritos e costumes diferentes. Apesar de judia, Esther era presença habitual na missa.
Ela era, (para além de muitos outras coisas) uma mulher entregue ao mundo e às suas paixões. Aos seus meninos. A todas as crianças que via e ajudava a medrarem para um mundo ávido de conhecimento.
José Paulo acompanhava-a por contumácia. Não tinha nenhum interesse numa missa, mas adorava as longas conversas com o padre Luís, muitas vezes nos bancos da Igreja ou numa mesa de um café, ou até na sua própria casa.
Conversavam horas, distraídos na sua própria religiosidade.
Com a morte da Esther tudo isso acabou. O padre considerou natural nos primeiros tempos, mas os meses foram passando e a atitude distante e apática do José Paulo transformou-se numa profunda dor.
O amigo dificilmente voltaria a ser o mesmo e isso entristecia-o. A ele e a todos o que o viam passar agarrado à sua bengala, com os olhos parados no chão, com a sua expressão dolorosamente só. Ele sentia que não perdera só um para a morte, mas os dois.
Mas o padre Luís era um homem benevolente.
A Maria Francisca não podia queixar-se da sua benevolência. Aparecia para confessar-se dia sim, dia não e o padre tratava o assunto com paciência e benevolência.
“Perdoe-me padre, pois eu pequei!”
Maria Francisca sentia-se em pecado constante e o padre Luís retirou-a do confessionário. Recebia-a nos bancos da Igreja e dizia-lhe sem o dizer “ eu estou aqui, minha filha”, “o que te atormenta?”
Maria Francisca não pecava constantemente, vivia em constante tormento.
Ele precisava de a libertar e, não permitir que ela se fechasse no confessionário era a maneira mais direta de o fazer.
O seu rebanho era disperso, manso, autêntico, ingénuo na maioria das situações e profundamente agradecido.
Aceitavam a dor na mesma proporção que aceitavam a benesse. O Espírito Santo caminhava com eles alegre e ligeiro.
Eram brejeiros e tinham contudo, por vezes, maldade.
Faz parte do barro que nos fez como seres humanos. Há os desviantes e os desviados.
Fazia-lhe espécie que o Manuel Sousa, motorista da carreira para Portalegre não trocasse mais do que duas falas com ele.
Não parava na Igreja, mas o padre nunca fez caso desses comportamentos. A porta estava aberta, só entrava quem queria.
Mas não passar do bom dia ou boa tarde já era desusado.
“O Manuel Sousa é gago padre. Parece um esgrouviado quando diz mais de duas palavras”
Ele matutou na explicação, mas não se deixou abalar. Perdeu tempo do seu tempo e comprou um bilhete para Portalegre na carreira da manhã.
Uma vez lá chegado e já com a carreira vazia o padre manteve-se sentado, mesmo ao lado do Manuel Sousa. Teriam tempo para conversar até a carreira voltar para Castelo de Vide, tempo que o padre iria usar para mostrar ao Manuel Sousa que ele não era nenhum esgrouviado se dissesse mais do que duas palavras.
Ligeiramente curvado na rua, andava desmesuradamente por aquelas ruas. Cumprimentava as velhas que sorriam à porta de casa ao Sol, os miúdos que brincavam ao ar. Entrava na casa de quem o chamava. Fazia homilias como ninguém. Os traquinas davam a hóstia nas suas missas.
Falava do Senhor como íntimo. Falava com o Senhor, como se o Senhor fosse a sua mulher e o seu confessionário a sua alcova.
Compreendia o olhar de uma mulher bonita. Compreendia o seu ser libertador e a sua marotice. Não tocava, mas compreendia.
“Bom dia Joana.”
“Bom dia padre Luís.”
A criança deixava de ser criança. Ele olhou-a de perfil e reteve-a na sua memória. Estaria porventura a raiar os doze anos? Ainda recordava o dia em que a batizou. Um dos primeiros atos religiosos que realizou naquela vila. Teve um profundo pesar quando encarou a mãe. Quando deu conta da sua destruição.
Deveria ter sido bonita em tempos. Ainda mantinha um ligeiro olhar matreiro, mas tudo o resto estava destruído.
Naquele tempo a Conceição ainda o olhava de lado, esquiva e pouco cooperante. Sentiu-lhe um cansaço e uma esperança nos gestos que dedicava à neta.
Essa esperança a Conceição ainda mantêm e a Joana já deve estar quase com doze. Quase de certeza.
“E o padre, o que vai tomar hoje?”
“Um café e podes trazer uma boleima. A tua avó? Não está?”
“Foi com o Vicente e outra senhora até à casa da Praça.”
“Aí sim!”
“Parece que vem uma professora de Lisboa dar aulas no Politécnico de Portalegre. É amiga do Vicente.”
“E vai morar aqui?”
Joana encolheu os ombros pouco interessada e o padre sorriu perante essa possibilidade. Não compreendeu porque se sentia iluminado, por isso não se deteve muito tempo nestas sensações.
A sua ida ali tinha outro propósito.
Joana tinha-se perdido algures na incapacidade de assimilar a morte. Sem pai, sem mãe e agora sem a Esther, o que seria que corria solto dentro daquele pensamento que tinha uma tristeza e uma indolência acumulada.
A Conceição já o tinha comentado. A preocupação pelo distanciamento da neta. Os longos silêncios, a sua constante procura de solidão. Tudo isto em tempos a Esther tinha tirado do corpo à Joana. Há muito tempo atrás.
Seria para o padre Luís resolver? Seria para ele tentar pelo menos.
“Como te sentes Joana?”
O padre tinha pouca disponibilidade para subterfúgios. Era tão direto que não permitia escapatória.
“Bem. Porque pergunta isso padre?”
Ele olhou-a de perfil. Era teria doze? Se não tivesse, estava lá perto. Nada na sua imagem ou postura, a poderia definir. Não tinha corpo de doze, era magra e pequena, e não tinha mente, espirito de doze. Esse estava muito além, até do seu próprio entendimento.
Como os diamantes brilhavam na mão da Esther, pensou o padre.
“Queres sentar-te? Preciso de falar contigo?”
Joana acedeu contrariada. Deduzia uma reprimenda da avó se chegasse e a visse sentada em vez de tomar conta do que é seu.
“Tens razão! Não perguntei por perguntar.”
“O que precisa padre?”
“Tenho saudades da Esther, e tu?”
A menina colocou os olhos no chão. Ela não sabia o que sentia. Ou melhor, não tinha grande capacidade de compreender esta irracionalidade. Sentia-se egoísta pela perda. Sentia que estava a fazer tudo mal. Que os castigos do Senhor eram fortes demais. E sim, tinha muitas saudades da Esther. Mas como dizê-lo? Calou-se.
O padre deu-lhe espaço e manteve-se em silêncio, mas a Joana não disse nada. Sim! Seria para ele resolver.
“A culpa não é tua, nem o Senhor pretende castigar-te a ti. Todos temos um tempo. Por vezes esse tempo do outro é discordante do nosso. No mínimo isso traz-nos mágoa. Quando a vida passa por nós serenamente, por volta dos trinta, quarenta anos, começamos a ver os outros a desaparecer. Acho que é nessa altura que compreendemos que a nossa infância e a nossa inocência terminou, – respirou fundo e fechou ligeiramente os olhos - infelizmente a tua infância e a tua inocência está a desaparecer. E parece-me que cedo demais.”
A Joana não disse nada mas tirou o olhar do chão e olhou o padre diretamente nos olhos.
“Já não és criança Joana. Lamento. A minha única alegria é que tu serás uma grande esperança. – Chegou-se para a frente e segredou-lhe ao ouvido – Em cada porta que se fecha, há outra que se abre. Honra-a como se ela estivesse aqui. Ela nunca morrerá.”
As lágrimas apareceram nos olhos da criança mas ela não cedeu. A infância estava estragada nela.
Ela levantou-se e beijou o padre no rosto. Ele contudo, ainda não tinha terminado.
“A tua vida não está definida nem marcada pelas atitudes e comportamentos da tua mãe. Tu és única. Tu és mais do que isso. Por isso, deixa-os falar, deixa-os olhar-te em cada gesto que fazes. A tua finitude não te diminuirá.”
Joana ouviu tudo isto já em pé, com as mãos atrás das costas, com a necessidade de abandono. O seu perfil já era fugidio, mas a dúvida atormentava-a e o padre até poderia ter a resposta.
“Padre, eu posso pedir ao Senhor que me mande alguém?”
“Como assim? Não te compreendo!”
“Alguém que tenha o mesmo tom que a Esther. Alguém que olhe para mim e veja aquilo que o padre vê e a Esther também via. Alguém que esteja ao meu lado, que cuide de mim, que olhe para mim, e enfim, que deixe que eu cuide um pouco dela.”
O padre sorriu e baixou os olhos. Encantado! Estava encantado com tanta inocência, e tanta maturidade.
“O que tu quiseres Joana. Acredita! Ele vai ouvir-te.”
Haveriam de se encontrar com a frequência diária de quem vai tomar o café e de quem serve esse mesmo café.
O padre tinha um sorriso fácil e a benevolência dos justos. E ele alegrava-se de vê-la medrar-se. Os seus momentos de lucidez crescida, o seu revirar de olhos, a sua atitude traquina e marota.
Também ele pediu ao Senhor alguém para a Joana. Descreveu as qualidades e os defeitos desse alguém. Não podia ser um herói porque a Joana também queria tomar conta. Pediu por isso, um anjo caído ou em queda. Mas um anjo.
Um dia encontrou-a a conversar com a Professora Alice, numa das mesas do café.
Reparou com cuidado no distanciamento das duas com os outros. Notou que nem uma que não o conhecia, nem a outra que lhe falava todos os dias dera pela sua passagem, nem sentiram que ele se sentara na mesa ao lado. Compreendeu toda a conversa e estremeceu com o azul profundo dos olhos da Alice. O seu coração descompassou quando ela distraidamente olhou para ele sem o ver.
Apercebeu-se no revirar de olhos de uma Joana iluminada e que a outra pelos seus gestos e tom de voz era o tal anjo em queda.
Não voltou a falar do assunto com o Senhor. Ele não era homem de chatear ninguém. Ele tinha olhos e via.
 

17 de janeiro de 2022

 


UM MUNDO À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS - MATT HAIG





Sem ser um livro de leitura compulsiva, garanto que deixa a sua própria marca.
O autor fala de muita coisa, aborda muitos temas, mas a mais presente, a que que melhor se enfia na pele é a vulnerabilidade.
Algures, já na parte final do livro, ele fala de livros. Diz uma coisa curiosa;
"A única coisa que um escritor pode fazer é oferecer um fósforo (e, de preferência, um fósforo seco). Depois, é o leitor que tem de acender essa chama e dar vida ao livro."
Um pensamento interessante dentro da perspetiva e que me reduz à insignificância sempre que tenho o triste hábito de falar de "nós" quando comento a leitura de um livro.
Falando em perspetiva reconheço-me um pouco perdida nas minhas possibilidade. É que perante as frases sublinhadas e os post´its que colei no livro elas são imensas de desmedidas.

Mas a verdade é que eu pouco sei por onde posso começar. 
Que estamos doentes como ser humanos? 
Sim.
Que o nosso planeta sofre?
Sim.
Que somos e sempre seremos indivíduos e apenas indivíduos?
Sim. 
Que a sobrecarga da vida não nos permite viver?
Sim.
Que até podes fazer trocadilhos com as palavras e que elas não são a formula da felicidade; merecer, obter, já, dar. Qual delas está mais próxima do nosso eu?
Não posso dizer que o livro arrebatou a minha alma, mas que o tomar consciência da sua própria realidade pode, por vezes e em certos momentos ser assustador.

O momento da sua leitura é tão perfeito como a sua escrita.
Que eu, e perdoem-me, não nós, só eu, cabe-me moldar o meu futuro e só o meu não o nosso.
Paz, bondade, amor, gratidão. Quantas destas palavras se podem aplicar ao fundamento da posse?

Volto ao principio da resenha da mesma maneira que volto às páginas finais do livro. A capacidade de cada história ser diferente para cada leitor.
É nesse ponto sensível que me encontro. Eu, não nós!
Na capacidade de ser um só, como uma vivência à escala humana.

Leiam, por favor! Não tenham vergonha de encher de riscos, post´its, comentários na lateral, nas bordas, no fim.
Sou apologista de todos esses recursos, menos de dobrar ou rasgar folhas. Não sentem os gritos de desespero quando fazem isso?
Deve ser o meu "eu" traquina que os ouve!

"Porém, enquanto as possibilidade de escolha se tornam infinitas, as nossas vidas continuam a ser medidas por intervalos de tempo limitado. Não conseguimos viver todas as vidas possíveis. Não conseguimos ver todos os filmes, ou ler todos os livros, ou visitar todos os locais que existem neste belo planeta. Em vez de nos sentirmos bloqueados pela possibilidade de escolha, temos de saber editar. Temos de descobrir o que faz bem e pôr o resto de parte. Não precisamos de outro mundo. Tudo aquilo de que precisamos já está neste, desde que abdiquemos de pensar que precisamos de tudo."

"Viver à escala humana. Concentrarmo-nos nas poucas coisas que poderemos fazer, em vez de nos milhões de coisas que nunca conseguiremos fazer. Não desejarmos ter vidas paralelas. Descobrirmos uma equação mais simples. Termos orgulho em ser um número primo indivisível. Termos orgulho em sermos um só."

"Só o amor nos poderá salvar."