31 de janeiro de 2022

 


FINITUDE


Dizem que a primeira infância termina aos seis anos. 
A partir daí ser criança, significa outra coisa qualquer.
Ela já tinha feito seis anos em Dezembro, mas o seu mundo era idêntico. Se lhe perguntassem se ela se sentia uma criança ou algo mais do que uma criança, ela responderia que já era crescida, que já sabia atar os atacadores dos sapatos e escovar os dentes sozinha. Que já limpava o fogão, empoleirada num banco de plástico a cantarolar uma música do trecho de um filme. Quanto ao resto não sabia, nem queria saber. O cheiro que lhe saía do corpo era igual, o conforto dos braços dos outros era ainda muito necessário, e ainda acordava aborrecida e agradecida.
O reboliço da Creche era igual. Bem! Não bem igual. Ela já não dormia a sesta, já tinha deixado de o fazer ainda com cinco anos. Era uma sensação estranha aquilo que lhe queriam impor com conversas de gente adulta. 
Contrariada foi a palavra que a educadora utilizou no primeiro dia daquele último ano. Ela queria subir com os mais novos e dormir, em vez disso colocaram-lhe um livro á frente cheio de letras e desenhos e passou momentos intermináveis a olhar para eles.
Um aborrecimento diga-se a verdade.
Ela gostava mais de estar em casa da avó. Gostava mais daquelas férias de Verão intermináveis e maçadoras. Do cheiro do silêncio. De saber o sítio das coisas. De passear de vez em quando com o seu chapéu na cabeça e os seus óculos de sol.
Ela gostava mais daquele caminho intermédio entre a realidade e o sonho. A floresta encantada. A primeira infância deve ter-se perdido aí. 
Em vez disso, tinha de estar ali. Não era mau de todo! Por favor, não a interpretem mal. 
Ela adorava o passeio de camioneta entre casa e a Creche no meio da aldeia. Ela adorava o cheiro a terra que circundava aquele território e ela adorava as possibilidades.
Já não caminhava atrás dos mais crescidos, mas tinha os mais pequenos atrás dela.
E não lhe faltava a amiga da sala ao lado para brincar nos intervalos. Para se esconderem debaixo do escorrega no cochicho uma com a outra.
Tinha um sequio de miúdas pequenas atrás dela. Não se lembrava de ela própria, ser assim tão insistente. De ser tão carente, de necessitar de tanta atenção.
Recordava-se sim, do seu colega de sala, os dois filhos do menino Jesus. Ela nasceu de manhã, ele de tarde.
Era parceiros de sala, e ele só a queria a ela, no primeiro ano. Ele encontrava nela a paz que o seu espirito e a sua doença não lhe davam. A floresta encantada dele era mais sombria.
Ela perdeu aí um pouco da sua primeira infância e foi generosa. Ofereceu-lhe as cores vivas e garridas da sua própria floresta encantada. Estendeu-lhe a mão e caminhou com ele.
Quando ele se desinteressou por ela no ano seguinte aprendeu o que é a mágoa de ser esquecida. Não reagiu muito bem!
Por ela estaria em casa da avó. 
Lá estaria a salvo destes contratempos. A avó é benévola. Gosta de dar, perdoa as faltas mas não as deixa passar. 
É uma santa e uma ingénua.
Ela era feliz quando estava ao pé da avó. Porquê? Nunca lhe tinham perguntado, mas já que teve de pensar no assunto, provavelmente porque sentia a avó feliz ao seu lado.
A avó tinha um primo. Homem de meia idade. Um pouco inconveniente. Um pouco machista. Bem! Muito machista. Um ser com outros pensamentos, mas a miúda alegrava-se ao pé dele. 
Tratava-a como uma princesa, comprava-lhe um gelado e não alterava o seu vocabulário só porque ela estava sentada no sua mesa do café.
Ela aprendeu a conhecer as nuances daqueles momentos. Compreendeu que o ser humano não é todo a preto e branco. 
Que os homens são um pouco tolos. Que ele deveria ter ficado na primeira infância porque era muito teimoso. Só pode! Ele dizia coisas que a faziam pensar. Ele fazia coisas que a faziam pensar. Era contraditório. 
Ele era por vezes muito desinteressante e deixava-a desinteressada. Nunca percebeu se ele era, foi, ou estava disposto a ser feliz. Estava para além do seu entendimento.
Quando ele morreu ela estava a meio caminho entre o fim da primeira infância e o inicio de outra coisa qualquer. Ela calou-se perante este facto.
Talvez na sua cabecinha a ausência teve um gosto diferente. Esse gosto, agridoce estava fora dos limites da floresta encantada e ela só via uma solução. Ignorar!
Mas como ignorar a morte quando reconhecemos-lhe o cheiro?
A finitude da primeira infância tinha começado.  


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