19 de janeiro de 2022

 


LITÂNIA DA SABEDORIA 

(Um conto inédito)




Este padre que aqui está é novo. Relativamente novo. 
Bem! Os seus cabelos brancos já apareciam aqui e acolá.
Nos últimos meses tomavam de assalto o seu cabelo escuro encaracolado, mas a D.ª Beatriz dizia que o Padre Luís iria ter sempre aquela cara de menino. Ela gostava muito dele e, se a D.ª Beatriz gostava do padre, poder-se-ia dar a discussão sobre o assunto terminada.
Não agradou a todos quando chegou. Oriundo de uma província ainda mais distante, a sua cara demasiado nova e os seus gestos demasiado benevolentes foram o rastilho para conversas intermináveis que só o tempo ajudaram a curar.
Era novo, era bem-parecido e escudava-se há batina na rua. Mantinha a clérgima de um branco imaculado, a camisa preta e o seu casaco de bom corte, mas as suas calças eram de ganga, na maioria das vezes os sapatos de sola pretos davam lugar a umas sapatilhas gastas ou a umas galochas até aos joelhos no Inverno. 
Têm paciência. É um homem de uma enorme generosidade e paciência. Era a conversa recorrente sobre o padre Luís naquelas ruas empedradas e estreitas.
E isso realmente, não lhe faltava.
As beatas ocupavam a Igreja como rebanhos e ele, com a sua paciência desmesurada, ensinou-lhes que aquilo era a Casa de Deus e que o Senhor, na sua infinita misericórdia precisava de silêncio.
“Se não houver silêncio dificilmente o Senhor ouvirá os fiéis que se sentam neste bancos a orar e a suplicar, não vos parece, minhas queridas?”
Por isso elas deixaram de aparecer em rebanhos, mas timidamente. À vez. Um dia limpava uma, noutro dia limpava outra.
Não mudou os hábitos, não mudou as crenças nem as tradições. Aliás, alimentava-se profundamente delas.
A missa de Aleluia era perfeita nos seus lábios e nos seus gestos. Ele encarava-a como uma bênção que o Senhor lhe deu.
Ele era um padre agradecido e alegre. Nunca se desviava de ninguém.
Não tinha contemplações e quando a Maria Joaquina morreu na véspera de Natal. Perdão! Na véspera da véspera de Natal, fez uma homilia carregada do valor da dedicação.
Só quem não quis é que não compreendeu a maneira escandalosamente dissimulada como ele atirava farpas a um viúvo desinteressado e ardiloso.
Sofria também com os outros.
Sofreu profundamente quando enterrou a filha da Conceição. Sofria pelo sofrimento da amiga que ali à sua frente se resignava ao in resignado.
Admirava-lhe a conduta e aceitava a culpa que a Conceição trazia na voz e nos gestos. Nunca tentou iludi-la. Nunca tentou explicar-lhe que o ser humano não é dono de outro ser humano. Que ela não se poderia culpar das escolhas da própria filha.
Ele tinha o bom senso e a prudência de não a magoar mais do que ela já estaria magoada, mas não estava disponível para ilusões.
Quanto ao perdão, não era um fardo, mas uma bênção.
“Tens de perdoar-te! Tens outra criança em casa. Precisas de te perdoar.”
Por vezes parecia um velho nos gestos. Com pouco mais de quarenta anos andava ligeiramente curvado na rua. Mãos atrás das costas, como os miúdos pequenos numa visita de estudo a um museu. Chapéu. Sempre de chapéu. Ainda andou dois a três anos com uma boina, mas voltou ao seu chapéu Fedora de lã preta no Inverno e ao Panamá de palha no Verão.
Perde-se no convívio do Parque João José Luiz com os velhos da vila e, as tardes inteiras no Lar da Misericórdia com as viúvas traquinas.
Almoça com frequência na tasca do António na rua direita. Têm com ele uma amizade constante e profunda. Ele, o António não frequenta os bancos da Igreja.
Compreende os seus longos momentos de melancolia, as suas alterações de humor, a timidez num homem encorpado, forte e retraído. Faz um bitoque delicioso e trata os turistas com indiferença.
Frequenta a Fotovila com a ciência de um jornaleiro ávido de conhecimento diário que os jornais alimentam.
Detesta falatórios, coisa que circula com abundância naquelas ruas.
Homens e mulheres entretém-se assim, com mais ou menos fervor. Não considera um mal dos lugares pequenos.
Recorda os sete meses que foi padre em Espinho. A tagarelice, o falatório, as conversas à boca pequena. O disse que disse, ganhavam uma dimensão assustadora com a dimensão do povoado. Por isso, não! Não concorda quando lhe dizem que aquele mal deve-se ao meio pequeno e tacanho, à ignorância das gentes, à falta do que fazer.
Não! Isso para ele tinha um nome e não uma designação regional ou local. Isso para ele era solidão. E mais não dizia.
As pessoas ali tinham o trato simples, mas não deixavam escapar uma novidade. Não foi com surpresa que o padre mandou calar o grupo de catequistas quando as apanhou a falar da Professora Alice.
A conversa era um pouco estranha e ele ainda não a conhecia. Não queria juízos de valor dentro da casa do Senhor.
Elas calaram a boca e encolheram os ombros, sorriram entre si. Andava triste e irritado o padre, comentavam.
Todos sabiam porquê. Todos compreendiam e partilhavam a sua dor.
A Esther tinha morrido há quatro pares de meses, o José Paulo era uma pálida imagem do homem poderoso que sempre fora e a vila choraria eternamente a perda da Professora Esther. Os seus meninos estavam vazios.
O padre Luís não era alheio a tudo isto. Era íntimo dos dois, apesar dos dois serem judeus.
Inicialmente compreendeu a dor e o isolamento do José Paulo. Perder a mulher daquela maneira, repentinamente, sem aviso prévio, deveria ter revolvido qualquer capacidade de o amigo entender a existência.
As cerimónias fúnebres foram dolorosas para todos. O Padre chorou no altar.
Houve um momento de profundo silêncio na Igreja repleta de gente quando o padre calou-se a meio da sua homilia e chorou.
Ele não teve vergonha de o fazer. Bem! Conteve-se de início, fez um esforço sub-humano para segurar o peso das lágrimas, mas quando elas começaram a fugir-lhe dos olhos, quando compreendeu que não havia nada a fazer e que aquela dor também era dele, chorou.
Sentiu-se indecoroso e fixou os seus olhos num José Paulo ausente à sua frente. Viu no amigo a bondade no olhar e deixou que as lágrimas escorressem pelo seu rosto.
O povo deixou-o chorar. Em silêncio chorou com ele.
Só a Esther saberia provocar um sentimento coletivo tão profundo.
Os judeus tem ritos e costumes diferentes. Apesar de judia, Esther era presença habitual na missa.
Ela era, (para além de muitos outras coisas) uma mulher entregue ao mundo e às suas paixões. Aos seus meninos. A todas as crianças que via e ajudava a medrarem para um mundo ávido de conhecimento.
José Paulo acompanhava-a por contumácia. Não tinha nenhum interesse numa missa, mas adorava as longas conversas com o padre Luís, muitas vezes nos bancos da Igreja ou numa mesa de um café, ou até na sua própria casa.
Conversavam horas, distraídos na sua própria religiosidade.
Com a morte da Esther tudo isso acabou. O padre considerou natural nos primeiros tempos, mas os meses foram passando e a atitude distante e apática do José Paulo transformou-se numa profunda dor.
O amigo dificilmente voltaria a ser o mesmo e isso entristecia-o. A ele e a todos o que o viam passar agarrado à sua bengala, com os olhos parados no chão, com a sua expressão dolorosamente só. Ele sentia que não perdera só um para a morte, mas os dois.
Mas o padre Luís era um homem benevolente.
A Maria Francisca não podia queixar-se da sua benevolência. Aparecia para confessar-se dia sim, dia não e o padre tratava o assunto com paciência e benevolência.
“Perdoe-me padre, pois eu pequei!”
Maria Francisca sentia-se em pecado constante e o padre Luís retirou-a do confessionário. Recebia-a nos bancos da Igreja e dizia-lhe sem o dizer “ eu estou aqui, minha filha”, “o que te atormenta?”
Maria Francisca não pecava constantemente, vivia em constante tormento.
Ele precisava de a libertar e, não permitir que ela se fechasse no confessionário era a maneira mais direta de o fazer.
O seu rebanho era disperso, manso, autêntico, ingénuo na maioria das situações e profundamente agradecido.
Aceitavam a dor na mesma proporção que aceitavam a benesse. O Espírito Santo caminhava com eles alegre e ligeiro.
Eram brejeiros e tinham contudo, por vezes, maldade.
Faz parte do barro que nos fez como seres humanos. Há os desviantes e os desviados.
Fazia-lhe espécie que o Manuel Sousa, motorista da carreira para Portalegre não trocasse mais do que duas falas com ele.
Não parava na Igreja, mas o padre nunca fez caso desses comportamentos. A porta estava aberta, só entrava quem queria.
Mas não passar do bom dia ou boa tarde já era desusado.
“O Manuel Sousa é gago padre. Parece um esgrouviado quando diz mais de duas palavras”
Ele matutou na explicação, mas não se deixou abalar. Perdeu tempo do seu tempo e comprou um bilhete para Portalegre na carreira da manhã.
Uma vez lá chegado e já com a carreira vazia o padre manteve-se sentado, mesmo ao lado do Manuel Sousa. Teriam tempo para conversar até a carreira voltar para Castelo de Vide, tempo que o padre iria usar para mostrar ao Manuel Sousa que ele não era nenhum esgrouviado se dissesse mais do que duas palavras.
Ligeiramente curvado na rua, andava desmesuradamente por aquelas ruas. Cumprimentava as velhas que sorriam à porta de casa ao Sol, os miúdos que brincavam ao ar. Entrava na casa de quem o chamava. Fazia homilias como ninguém. Os traquinas davam a hóstia nas suas missas.
Falava do Senhor como íntimo. Falava com o Senhor, como se o Senhor fosse a sua mulher e o seu confessionário a sua alcova.
Compreendia o olhar de uma mulher bonita. Compreendia o seu ser libertador e a sua marotice. Não tocava, mas compreendia.
“Bom dia Joana.”
“Bom dia padre Luís.”
A criança deixava de ser criança. Ele olhou-a de perfil e reteve-a na sua memória. Estaria porventura a raiar os doze anos? Ainda recordava o dia em que a batizou. Um dos primeiros atos religiosos que realizou naquela vila. Teve um profundo pesar quando encarou a mãe. Quando deu conta da sua destruição.
Deveria ter sido bonita em tempos. Ainda mantinha um ligeiro olhar matreiro, mas tudo o resto estava destruído.
Naquele tempo a Conceição ainda o olhava de lado, esquiva e pouco cooperante. Sentiu-lhe um cansaço e uma esperança nos gestos que dedicava à neta.
Essa esperança a Conceição ainda mantêm e a Joana já deve estar quase com doze. Quase de certeza.
“E o padre, o que vai tomar hoje?”
“Um café e podes trazer uma boleima. A tua avó? Não está?”
“Foi com o Vicente e outra senhora até à casa da Praça.”
“Aí sim!”
“Parece que vem uma professora de Lisboa dar aulas no Politécnico de Portalegre. É amiga do Vicente.”
“E vai morar aqui?”
Joana encolheu os ombros pouco interessada e o padre sorriu perante essa possibilidade. Não compreendeu porque se sentia iluminado, por isso não se deteve muito tempo nestas sensações.
A sua ida ali tinha outro propósito.
Joana tinha-se perdido algures na incapacidade de assimilar a morte. Sem pai, sem mãe e agora sem a Esther, o que seria que corria solto dentro daquele pensamento que tinha uma tristeza e uma indolência acumulada.
A Conceição já o tinha comentado. A preocupação pelo distanciamento da neta. Os longos silêncios, a sua constante procura de solidão. Tudo isto em tempos a Esther tinha tirado do corpo à Joana. Há muito tempo atrás.
Seria para o padre Luís resolver? Seria para ele tentar pelo menos.
“Como te sentes Joana?”
O padre tinha pouca disponibilidade para subterfúgios. Era tão direto que não permitia escapatória.
“Bem. Porque pergunta isso padre?”
Ele olhou-a de perfil. Era teria doze? Se não tivesse, estava lá perto. Nada na sua imagem ou postura, a poderia definir. Não tinha corpo de doze, era magra e pequena, e não tinha mente, espirito de doze. Esse estava muito além, até do seu próprio entendimento.
Como os diamantes brilhavam na mão da Esther, pensou o padre.
“Queres sentar-te? Preciso de falar contigo?”
Joana acedeu contrariada. Deduzia uma reprimenda da avó se chegasse e a visse sentada em vez de tomar conta do que é seu.
“Tens razão! Não perguntei por perguntar.”
“O que precisa padre?”
“Tenho saudades da Esther, e tu?”
A menina colocou os olhos no chão. Ela não sabia o que sentia. Ou melhor, não tinha grande capacidade de compreender esta irracionalidade. Sentia-se egoísta pela perda. Sentia que estava a fazer tudo mal. Que os castigos do Senhor eram fortes demais. E sim, tinha muitas saudades da Esther. Mas como dizê-lo? Calou-se.
O padre deu-lhe espaço e manteve-se em silêncio, mas a Joana não disse nada. Sim! Seria para ele resolver.
“A culpa não é tua, nem o Senhor pretende castigar-te a ti. Todos temos um tempo. Por vezes esse tempo do outro é discordante do nosso. No mínimo isso traz-nos mágoa. Quando a vida passa por nós serenamente, por volta dos trinta, quarenta anos, começamos a ver os outros a desaparecer. Acho que é nessa altura que compreendemos que a nossa infância e a nossa inocência terminou, – respirou fundo e fechou ligeiramente os olhos - infelizmente a tua infância e a tua inocência está a desaparecer. E parece-me que cedo demais.”
A Joana não disse nada mas tirou o olhar do chão e olhou o padre diretamente nos olhos.
“Já não és criança Joana. Lamento. A minha única alegria é que tu serás uma grande esperança. – Chegou-se para a frente e segredou-lhe ao ouvido – Em cada porta que se fecha, há outra que se abre. Honra-a como se ela estivesse aqui. Ela nunca morrerá.”
As lágrimas apareceram nos olhos da criança mas ela não cedeu. A infância estava estragada nela.
Ela levantou-se e beijou o padre no rosto. Ele contudo, ainda não tinha terminado.
“A tua vida não está definida nem marcada pelas atitudes e comportamentos da tua mãe. Tu és única. Tu és mais do que isso. Por isso, deixa-os falar, deixa-os olhar-te em cada gesto que fazes. A tua finitude não te diminuirá.”
Joana ouviu tudo isto já em pé, com as mãos atrás das costas, com a necessidade de abandono. O seu perfil já era fugidio, mas a dúvida atormentava-a e o padre até poderia ter a resposta.
“Padre, eu posso pedir ao Senhor que me mande alguém?”
“Como assim? Não te compreendo!”
“Alguém que tenha o mesmo tom que a Esther. Alguém que olhe para mim e veja aquilo que o padre vê e a Esther também via. Alguém que esteja ao meu lado, que cuide de mim, que olhe para mim, e enfim, que deixe que eu cuide um pouco dela.”
O padre sorriu e baixou os olhos. Encantado! Estava encantado com tanta inocência, e tanta maturidade.
“O que tu quiseres Joana. Acredita! Ele vai ouvir-te.”
Haveriam de se encontrar com a frequência diária de quem vai tomar o café e de quem serve esse mesmo café.
O padre tinha um sorriso fácil e a benevolência dos justos. E ele alegrava-se de vê-la medrar-se. Os seus momentos de lucidez crescida, o seu revirar de olhos, a sua atitude traquina e marota.
Também ele pediu ao Senhor alguém para a Joana. Descreveu as qualidades e os defeitos desse alguém. Não podia ser um herói porque a Joana também queria tomar conta. Pediu por isso, um anjo caído ou em queda. Mas um anjo.
Um dia encontrou-a a conversar com a Professora Alice, numa das mesas do café.
Reparou com cuidado no distanciamento das duas com os outros. Notou que nem uma que não o conhecia, nem a outra que lhe falava todos os dias dera pela sua passagem, nem sentiram que ele se sentara na mesa ao lado. Compreendeu toda a conversa e estremeceu com o azul profundo dos olhos da Alice. O seu coração descompassou quando ela distraidamente olhou para ele sem o ver.
Apercebeu-se no revirar de olhos de uma Joana iluminada e que a outra pelos seus gestos e tom de voz era o tal anjo em queda.
Não voltou a falar do assunto com o Senhor. Ele não era homem de chatear ninguém. Ele tinha olhos e via.
 

Sem comentários:

Enviar um comentário