SKIFF
A catraia entrou em casa enrolada numa toalha e eu fiz um ar de desconfiança. Não fazia parte dos meus planos ter uma bola de pelo ambulante a cirandar pela casa, com um caminhar frenético e um miar de piedade.-Tens a certeza que isto! - olhei-a de esguelha - Isso! - apontei-lhe o dedo inquisidor - é boa ideia?
Ele encolheu os ombros e sorriu timidamente. Encostou-a mais ao peito. O animal tremia de frio ou de medo, não sei.
-É linda.
-Vai sujar tudo, deixar a casa cheia de pelos, subir para o sofá, rasgar os cortinados. Vai tomar posse. Eu não sei lidar com isso.
-Só faz o que deixarmos que faça - fez a sua melhor expressão. Ele claramente esforçava-se.
Eu, ao contrário dele, tinha pouca capacidade para contrariar alguém. Pouca capacidade para argumentar com alguém, e pouca habilidade para ignorar aquele olho azul que era o reflexo do meu.
-Tem de tomar banho. Não a quero cá em casa sem banho. - Acabei por dizer em pleno juízo da minha ruína. Já não conseguia olhar para ela.
-É um gato! Banho?
-Sem banho não há gato!
-Gata. É uma fêmea.
Olhei-o de esguelha. Ele queria baralhar-me ou estaria admirado com a facilidade da vitória.
-E come na cozinha. Necessidades na copa das máquinas.
-Estás a ouvir catraia? - Ele sorriu radiante. Já não era um sorriso tímido cheio de condicionantes, era um sorriso vencedor. Enquanto o fazia olhava-a com ternura e puxava-lhe levemente a orelha.
A catraia foi ficando. Acredito que lhe tenha desarranjado o espírito nos primeiros tempos.
Encurralada na casa das máquinas para aprender onde se fazia as necessidades, apreendeu a comer na cozinha, a tomar banho todas as semanas e a dormir no sofá da sala em cima de uma manta. Ali, e só ali.
Eu fazia o possível para ignorá-la e esperava que ele fosse o seu dono.
Mas ela prendia os seus olhos nos meus desde que eu saía do quarto. Seguia-me abnegadamente.
Eu estranhei esta atitude e pensei que seria um teste. Ela queria provocar-me.
Mas se ela quisesse provocar-me só teria de subir os cortinados, correr pela casa ou rebolar pelas escadas.
Não! Ela não fazia nada disso. Seguia-me pela casa ou esperava por mim no sofá.
Subia o parapeito da janela quando o cortinado estava desarredado e olhava pela janela. Dormia horas ali ao Sol da tarde.
Enrolava-se nas minhas pernas, colocava a sua cabeça no meu colo, olhava-me enlevada sem pestanejar.
Eu sou distraída e perdida nos meus papéis, não a vi descer do parapeito da janela e apenas senti o roçar do seu pelo nas minhas pernas. O Sol já fugia, ela deu conta, eu não. Olhei-a profundamente distraída e quase por favor, mas ela exigiu atenção. Miou freneticamente.
-O que tu queres Skiff?
Foi a primeira vez que a chamei assim. Não era diferente de catraia. Era o seu significado em Italiano.
Ela não estranhou, não mostrou que não era com ela. Não negou o nome. Olhou para mim e miou. Olhou para a cadeira ao meu lado.
Queria a sua manta em cima da cadeira.
Pedia a minha permissão para sentar-se ali, mesmo ao meu lado.
Exigia que eu fizesse parte da sua vida. Foi a mim que ela escolheu.
Ela estava disposta a ser velha antes do tempo. Pachorrenta e submissa se preciso fosse. Ela entregava-me toda a minha vontade em troca da sua posse.
Ela queria possuir-me.
Assim a minha Skiff respondia ao meu chamado, ouvia os textos que eu escrevia, as palavras que eu traduzia e os desabafos que eu sussurrava como se falasse para o mundo.
Respondia com miados surdos e sussurrantes e perdia-se deitada no chão da casa de banho à espera do banho.
Com seis meses a Skiff era mais velha, lenta e paciente que qualquer gatarão das redondezas que dormia ao Sol o dia todo.
Ela era o meu rosto, a mentalidade de um idoso, encerrado num corpo jovem e cansado.
texto inédito
Que lindo :)
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