11 de maio de 2022

 


DISCURSO DE ESTOCOLMO - JOSÉ SARAMAGO




Na arrumação das minhas gavetas, encontrei uma cópia do discurso de Estocolmo de José Saramago.
Já não recordo quando foi lá parar, mas sei que a votei ao fundo da gaveta para leitura futura.
Procurei-a num acesso de curiosidade, quando a palavra "Direitos Humanos", foi tema do dia nos noticiários. Relembrei, a voz de Saramago nesse especifico ponto.
Infelizmente, tenho muita facilidade em esconder nas gavetas tudo o que é papel, dou-lhe uma aparência de organização que não tenho.

Dispôs-me a olhar para Saramago, tarde. Mais tarde ainda, olhei e olharei para outros, mas falaremos desses noutra altura. 
Teimosia, impertinência, ignorância. Não posso, sequer, desculpar-me com distração.
Devo dizer que a sete de Dezembro de 1998, enquanto Saramago discursava na Academia Sueca, eu fingia que não via. 
Hoje, títulos como "As Pequenas Memórias"; "Levantados do Chão"; "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e "Todos os Nomes", figuram na minha lista de obras inesquecíveis. 
Sem surpresa iniciei a leitura deste discurso e Saramago recorda o seu avô e a sua avó que não sabiam ler nem escrever.
A ternura que Saramago coloca em cada palavra dita, um prémio Nobel, um escritor, relembra a sabedoria e simplicidade de quem nunca soube ler, nem escrever. Um voltar às origens, como um todo. Na década de 30, do século anterior, 61% da população era analfabeta. A minha geração, formada e letrada descende de avós e bisavós que não sabiam ler nem escrever.

"As Pequenas Memórias", foram a minha porta de entrada para a obra de Saramago. Ainda me falta muitas linhas do que ele escreveu, mas já não olho com indiferença para os seus títulos.
Quando li este especifico livro, recordei o meu avô e avó maternos. Também eles eram analfabetos. Alguns tios, também o foram.
O meu avô, não era o mais sábio, e a distância que separava a sua velhice e o meu eu criança, era tão grande que eu não recordo sequer a sua voz. Recordo os seus límpidos olhos azuis, a barba rala e branca, o seu gorro de lã e o seu cajado. A sua escusa na convivência, ou a minha timidez desproporcionada. Ele ensinou-me o significado da palavra morte, o costume da aldeia no tempo remoto de 1986, a vigília noturna, o homem que habita o seu espaço até ao fim, as vozes que se silenciam, o som que fecha sussurrante, o compasso de espera quando o corpo abandona a sua casa, e as pessoas, todas as pessoas, muitas pessoas.
Não revivo o seu sorriso. José Paulo, não era homem de sorrir.   
Maria Joaquina tinha, contudo, um cheiro diferente. Aprendeu a juntar as letras por teimosia. Pediu-me um dia para a corrigir enquanto juntava o "a" com o "c", o "b" com o "e". Fazia-o, com uma revista esquecida lá em casa. Ler propriamente, acho que não o conseguiu. 
A diferença de idades, também com ela, continuava a ser assustadora. A minha avó teve treze filhos e a minha mãe é das mais novas, casou tarde, e teve filhas, ainda mais tarde.
Resta-me a proeza, nesta abundância de sobrenome Paulo, de ser a neta mais nova.
Da avó "Quina" eu tenho uma profunda certeza. Ela amava-me.
Para uma criança pequena que não sabe muito bem onde colocar os pés, é quase como o mapa do trilho do caminho de casa.
E era assim que eu me sentia sempre que a visitava. De regresso a casa. 
No meu tempo de miúda silenciosa, os galinheiros e as coelheiras estavam vazias. O curral das vacas também. O largo da casa era feito de silêncio e do canto dos pássaros. A cozinha, conservava o lume acesso na lareira alta, onde as refeições ganhavam cheiros.
Eu, sempre vi a minha avó da mesma maneira.
As rugas acentuadas, o olhar meigo, o sorriso doce, o tom de voz baixo e meloso. As mãos dela nas minhas mãos. Eu crescia, aparentava sabedoria que não tinha, e com as suas mãos nas minhas mãos, eu acreditava que podia beber a aprendizagem de algo tão simples como, gentileza, paciência. 
Podia, se quisesse.
No seu corpo gravavam-se palavras como resistência, mulher, mãe, vida, sofrimento. Era uma mulher da aldeia, atravessou o século XX, num ambiente rural. Eu só lhe conheci a paz. Um dia vos contarei.
A sete de Dezembro de 1998, enquanto Saramago discursava na academia Sueca, eu ainda lambia as feridas da sua morte e fingia que não via.
A minha cegueira tinha dois sentidos. Um completo desinteresse por Saramago e uma saudade imensa de uma mulher que me amou.
Se lhe tivesse prestado atenção, encontraria a voz da minha avó na sua voz. O seu sorriso fácil. O seu corpo seco e insuflado de sabedoria.
Só existe uma maneira de os manter eternamente vivos. Saramago interpretou-o muito bem, ao transformar pessoas comuns em personagens literárias. Deu-lhes a eternidade dos Deuses. Quem dera, que fossemos todos Saramagos.
Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.

Saramago relembra o aniversário da declaração dos direitos humanos.
Nos dias de hoje, com mais de setenta anos, esta declaração Universal dos Direitos Humanos faz todo o sentido. Fará sempre, dirão vocês!
Há mais de vinte anos atrás Saramago disse corajosamente que os governos e as empresas, não estavam a cumprir o seu dever. 
Nós, como cidadãos, também não. E porque não estamos?
Porque não reivindicamos o dever dos nossos deveres. Deveres.
Há algumas semanas, ouvi uma criança na TV, dentro de um bunker, com a câmara e o microfone à sua frente, mostrar a sua incredulidade perante algo tão ilógico como a guerra, em pleno século XXI.
O mundo que deveria ser livre e democrático, soberano como povo, humano como direito, não passa de uma autêntica utopia. 
Apenas assistimos. É uma criança que nos diz isso.

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