O QUE SABE O VENTO - AMY HARMON
"Quando ficares velha e grisalha e cheia de sono e cabeceares junto da lareira, pega neste livro e lê devagar, e sonha com o olhar macio e as sombras profundas que os teus olhos tinham antes; quantos amaram os teus momentos de graça alegre, e amaram a tua beleza com um amor falso ou verdadeiro, mas um homem amou a tua alma peregrina, e amou as mágoas que alteravam o teu rosto." W.B. Yeats
Tenho de ler este livro outra vez. Num futuro não muito distante, daqui a alguns meses, ainda este ano, terei de o ler outra vez.
O livro está repleto de poemas de William Butler Yeats. Comecei por procurar o poeta e descobri que não existem edições portuguesas dos seus livros. Porquê, meu Deus! Ganhou o prémio Nobel em 1923. Não temos nada dele em Português.
Depois temos a Irlanda e a Revolta da Páscoa em 1916, e um Michael Collins retratado na primeira pessoa.
Mas a história de Anne Gallagher, mexe com a minha capacidade para absorver uma narrativa.
Hoje, incrivelmente li esta frase que não é minha, mas que descreve de uma forma perfeita esta sensação de se ser leitor de corpo e alma.
"Somos histórias, e os livros são uma das nossas vozes possíveis (um leitor é, mal abre um livro, um autor: ler é uma maneira de nos escrevermos)"
Posso definir a personagem Anne assim, a minha voz possível, a minha forma de escrever-me a mim própria. A capacidade reveladora que cada um tem de se transportar para dentro de um livro, fazendo parte dele sem estar nele.
Anne esteve dentro de mim, assim que caiu ao lago e apareceu num tempo desconhecido.
Só podia apiadar-me dela. Embalá-la no meu colo e soprar-lhe ao ouvido que estava tudo bem. Iria ficar tudo bem, por mais dificil que parecesse.
Anne é sem dúvida aquilo que cada um de nós sonha ser. Alguém simplesmente inesquecível. Alguém profundamente amada.
"...mas a tua doçura é linda. Olhos doces. Caracóis macios. Voz suave. Um sorriso leve e caloroso."
Querem que comece do princípio?
"Ah, não lamentes, disse ele,
Que estejamos cansados, pois outros amores nos aguardam;
Odeia e ama ao longo de horas serenas.
Diante de nós estende-se a eternidade; as nossas almas
São amor, e um perpétuo adeus."
Anne Gallagher é neta de Eoin, um Irlandês que foi estudar medicina para os Estados Unidos e nunca mais voltou à Irlanda.
Eoin criou a sua neta desde os 6 anos, quando esta perdeu os pais e ficou órfã. São só os dois, sozinhos no mundo, agarrados como uma âncora.
A relação de amor entre avô e neta é uma das primeiras preciosidades deste livro. Esta capacidade de amar alguém mesmo quando o tempo passa. Anne tem um profundo amor pelo seu avô e fica ao seu lado até à sua morte. Com 30 anos a mesma diz-lhe no meio do seu choro que amava-o tanto que não estava preparada para o deixar ir. Ela é linda, inteligente e rica. Era suposto que tivesse uma vida para além dos livros que escreve e para além do seu avô.
Quando Eoin morre deixa-lhe uma última vontade a ser cumprida e alguns objetos para ela começar a destapar o véu. Anne terá de ir à Irlanda onde o avô nunca quis ir com ela, alegando que ainda não tinha chegado o tempo, e espalhar as suas cinzas num lago na região onde este viveu até aos dezoito anos.
Anne apesar de ter sido profundamente amada pelo avô e de o ter amado de igual forma, pouco sabe da vida de Eoin no tempo em que ele era uma criança.
Quando espalha as cinzas no lago, algo estranho acontece, um nevoeiro forma-se e Anne perde a noção do espaço e do tempo e quando se apercebe da transformação já alguém lhe deu um tiro, e está a ser retirada do lago por um estranho que a confunde com a sua bisavó.
De repente deixamos de estar em 2001, e passamos a estar em 1921.
Esta é a parte fantástica da história, principalmente pela perfeição como a escritora constrói este enredo, esta roda dentada.
Anne não assume nesta transformação a pessoa de ninguém, continua a ser ela própria. A Anne de 2001. Mas para poder justificar a sua existência em 1921, aceita o mais lógico - devido à parecença física - a identidade da sua bisavó com o mesmo nome.
De um momento para o outro, Anne deixa de ser a neta e passa a "ser" a mãe de Eoin, que tem 6 anos e está sentado em cima da sua cama quando ela acorda.
" A porta fechou-se cuidadosa e silenciosamente e deixei-me tombar noutro sonho, uma escuridão segura onde os avós não se transformavam em meninos com cabelos carmesim e sorrisos cativantes."
Imagine-se criada na emancipação do fim do século XV e ver-se transportada para 1921?
Esta é a parte engraçada do livro! Um dia de compras num mundo irreal.
Anne atravessa estes estados e estas provações intimamente cheia de medo e por vezes em pânico. Se alguém repara? É subtil o seu estado.
"Gemi, com mais medo do que dor. Aterrorizava-me poder denunciar-me. Eu não era a mulher que ele pensava que eu era e, acima de tudo, estava súbita e desesperadamente receosa de lhe dizer que cometera um erro terrível."
Para todos ela é Anne, a mãe de Eoin. Só voltou um pouco louca, depois de ter desaparecido na Revolta da Páscoa em 1916, no dia em que o marido morreu.
Eoin é um órfão, é-o desde o primeiro ano de vida. Quem o cria é a avó e um amigo do pai. Thomas Smith. Médico. O Thomas Smith.
O livro tem também uma forte componente histórica, retratando o período histórico da Irlanda entre 1916 e 1922. Uma Irlanda em luta com a Inglaterra pela independência e uma Irlanda fragmentada à beira de uma guerra civil.
Michael Collins, líder revolucionário Irlandês, é até uma personagem do livro como amigo do médico Thomas Smith.
Vários acontecimentos históricos são retratados no livro, levando-nos também a nós a palmilhar aquela urgência por independência.
Tudo isto dá substância a esta história. Os poemas de W.B. Yeats. A revolução Irlandesa neste período da Revolta da Páscoa e os anos seguintes, e acima de tudo o amor entre a Anne de 2001 e Thomas Smith.
É uma narrativa corrida, com um texto fluído que gera uma urgência na leitura.
Tinha pressa em seguir em frente, tenho tanta pena que tenha terminado!
"Não consigo conceber que todos os homens amem as suas mulheres como eu amo a Anne. Se assim fosse, as ruas estariam vazias e os campos ficariam incultos. O trabalho industrial cessaria e os mercados cairiam enquanto os homens se vergavam aos pés das sua mulheres, incapazes de notar ou sentir a falta de algo que não elas. Se todos os homens amassem as sua mulheres como eu amo a Anne, seríamos uns inúteis, ou talvez o mundo conhecesse a paz. Talvez as guerras terminassem, e as lutas cessassem quando concentrássemos as nossas vidas em amar e ser amados."
Amar e ser amados! Aqui está o essencial deste livro.
Thomas Smith e Anne Gallagher descobrem o amor da forma mais doce. Aceitam-se como são. Ela a luz dos olhos dele, ele, aquele porto seguro onde ela pode repousar. Como é bom ter alguém onde podemos repousar...
" - Tive um professor que me ensinou que a ficção é o futuro. A não-ficção é o passado. Uma pode ser moldada e criada. A outra não(...)
-Por vezes são a mesma coisa. Tudo depende de quem conta a história (...)
- O meu nome é Anne Gallagher. Não nasci na Irlanda, mas a Irlanda esteve sempre dentro de mim(...) Era a lenda de Oisín e Niamh, onde o tempo não era simples e linear, mas constituído por camadas e interligado, um círculo que traçava o seu caminho repetidamente, geração após geração, partilhando o mesmo espaço, mas não a mesma esfera (...)
-Nasci na América em 1970, filha de Declan Gallagher, que recebera o mesmo nome do seu avô paterno (...)
-Trocamos de lugar, eu e o Eoin (...)
-O meu avô morreu recentemente. Ele foi criado em Dromahair, mas partir quando era jovem e nunca mais voltou. Não sei porquê... mas começo a acreditar que o fez por mim(...)
-Eoin. Chamava-se Eoin Gallagher e eu amava-o muito (...)
-Ele fez-me prometer que traria as suas cinzas de volta para a Irlanda, para o Lough Gill. E foi o que eu fiz(...)
-Atravessei o lago, e agora não posso voltar, pois não? (...)
Ela ainda estava enrolada no meu colo, mas levantou a cabeça afastando-se do meu peito, para poder olhar-me nos olhos, as madeixas ondulantes do seu cabelo criando um tumulto macio em torno do seu bonito rosto. Queria enterrar as mãos naquele cabelo e puxar a boca dela para a minha, para extinguir com beijos aquela loucura e a infelicidade, a dúvida e a desilusão."
Como disse, esta história é uma roda dentada muito bem construída. Para a Anne poder viver a sua história em 1921, terá de existir em 2001, e para isso acontecer não poderá ficar para sempre em 1921.
Invariavelmente o seu caminho é o caminho de volta ao lago e ao ano de 2001. Aqui, vê-se sozinha e o seu desconsolo é ainda mais desconcertante do que o seu pânico quando entrou em 1921.
Anne dentro dos seus destroços de mulher completamente só, descobre que Eoin tinha mais para lhe dizer e deixar do que propriamente tudo aquilo que lhe disse e ensinou, e Anne vê-se novamente na casa onde passou 10 meses em 1921. Agora é a sua casa.
Aqui, descobre os restantes diários de Thomas Smith e partilha nas suas leituras a vida que perdeu quando deixou todo aquele mundo. Aqui, descobre que a partir dali tudo foi construído com base no que contou a Thomas do futuro e que o que teria de ser, seria.
O livro está contado em duas vozes... Anne vai-se descobrindo para quem a lê, fala na primeira pessoa e os seus sentimentos são cristalinos. Esta é uma razão porque a personagem é tão forte. Ela "despiu-se" física e emocionalmente para quem a queira ler.
No entremeio temos as passagens do diário de Thomas Smith, que nos mostra a visão, os sentimentos, a profundidade daquele que amou.
Cada um dos dois - Eoin e Thomas - teve o seu tempo para a Anne. Tirando os 10 meses em 1921 em que todos viveram juntos, Eoin teve de esperar pela neta para voltar a ter Anne consigo até à sua morte, e Thomas teve de esperar pelo tempo após a morte de Eoin para encontrar Anne.
Anne é sem dúvida o caminho e o consolo.
É um livro belo e puro! Gostei muito e recomendo muito.
P.S - Não se esqueçam de W.B.Yeats. O livro tem vinte e sete poemas do poeta. São extraordinários! Deixei-vos dois nesta opinião. Vamos descobrir os outros!
Fiquei muito curiosa!! :)
ResponderEliminarjiaescreve.blogspot.com
Obrigada, não conhecia.
ResponderEliminarE um livro lindíssimo e inesquecível.
ResponderEliminar