16 de agosto de 2020

(NOTICIAS - LIVROS)
(Retirado da Revista Expresso edição 8 de Agosto de 2020 - Texto de Luís M. Faria)



Nunca virei a minha bitola para os livros científicos, ou de investigação, ou mesmo livros de jornalista que falam sobre temas específicos da sociedade.
Já deu para perceber que a minha escolha recai, apesar de com os anos se alargar em várias áreas, sempre dentro daquilo que é a imaginação e a produção literária do escritor.
Ou seja, sem mais rodeios, apenas me interesso por literatura e o resto passa-me ao lado, talvez por incompetência minha.
O melhor que consigo, são alguns livros de Teologia e autores específicos como José Tolentino Mendonça, Tomás Halik, e o próprio Papa Francisco.
Mas este livro que vos apresento aqui, não sendo literatura quero muito ler. Ainda não li, outra novidade no Blogue, mas depois de ler a publicação na revista do Expresso no passado dia 8 de Agosto fiquei com a certeza que quero mesmo ler este livro.
Provavelmente não vou conseguir ler até ao fim como aconteceu com o livro de António Damásio "O Sentimento de Si", mas vou com a esperança que sim, e que no fim saberei um pouquinho mais sobre aquilo que nos rodeia hoje em dia.
Porque hoje em dia, apenas vivemos de dúvidas, de muitas dúvidas.


(texto completo da Revista Expresso)

ESTAVA LÁ TUDO
Uma obra exemplar de divulgação científica cuja mensagem podia ter poupado muitas vidas.


"Em entrevistas dadas recentemente, David Quammen tem dito que a maior surpresa em relação à pandemia não é o facto de estar a acontecer, mas de nos termos preparado tão pouco para a sua chegada. Com efeito, ela não só era previsível como foi expressa e repetidamente prevista por muitos cientistas - e por divulgadores da ciência como ele. Um dos avisos inequívocos foi justamente "Contágio", publicado em 2012.
Com um background em literatura, que se reflecte na qualidade da sua escrita, Quammen tem colaborado em revistas como a Harper´s, a The Atlantic e a Nacional Geographic. O presente livro explora a história de vírus como o Ébola, o Hendra (um vírus que atinge cavalos e se transmite a humanos), o VIH, o Machupo, o Nipah, o SARS, a gripe... Além dos vírus, há outras doenças transmissíveis de animais para humanos que Quammen também refere. No conjunto, as chamadas zoonoses são responsáveis por cerca de 60% das doenças infecciosas que atingem os humanos. Isso devia bastar, ou ter bastado, para a importância do assunto ser compreendida, mesmo que a terrível ameaça não tivesse agora concretizado.  
Em 2012, Quammen escrevia "A Próxima Grande Pandemia [...] é um assunto abordado pelos cientistas que estudam doenças em todas as partes do mundo. Pensam sobre ela, falam sobre ela e estão habituados a responder a perguntas sobre ela. Enquanto trabalham ou discutem pandemias do passado, a Próxima Grande Pandemia está directa ou indirectamente a rondar-lhes os pensamentos." Agora que ela chegou, o livro não vale apenas por nos repetir coisas que tivemos de aprender nos últimos meses, mas por contar histórias que não sabíamos. Frequentemente são puras histórias de detective.
A procura das origens da sida é um bom exemplo. A posta aparentemente decisiva para determinar o momento em que o vírus passou de animais para humanos foi a divergência evolutiva entre diferentes estirpes do VIH-1 do grupo M. detectadas em restos humanos. Sendo conhecida a taxa média de mutação do vírus, explica Quammen, chegou-se a uma data estimada de 1908, ou seja, muito antes do que anteriormente se julgava.
Não menos fascinante é a história do vírus Hendra, que abre o livro, ou a do Ébola, onde Quammen encontrou a imagem particular que o impressionou - 13 gorilas mortos. Essa imagem nem sequer lhe surgiu directamente, mas através do relato de três habitantes locais no Gabão. Apesar disso, foi suficiente para lhe vincar de forma indelével a inter-relação entre humanos e animais quando se trata de vírus, em especial de vírus emergentes, lançando-o na sua aventura de descoberta.
O declínio da imprensa tradicional está a destruir a possibilidade de fazer jornalismo a um certo nível, e os relatos de Quammen são uma boa demonstração daquilo que se perde. O tipo de viagens que ele fez e de acesso que teve provavelmente não serão possíveis daqui a algum tempo, mesmo depois da pandemia passar. A sua abordagem é tão competente na descrição de aspectos pessoais como na explicação de evoluções e conceitos científicos. Sobre a questão do vírus serem ou não serem vivos, ele é agnóstico, chamando-lhes "atalhos mecânicos para o próprio principio da vida" e notando as estratégias complexas que usam para se auto preservar e multiplicar, como qualquer ser vivo. "Os vírus só podem replicar-se no interior das células vivas de outro organismo", escreve Quammen. "Costumam habitar num tipo de animal ou planta, com o qual as suas relações são íntimas, muito antigas e frequentemente (mas nem sempre)comensais. Ou seja, dependentes mas benignas.
Não têm vida independente. Não causam comoção. Podem matar alguns macacos ou aves de vez em quando, mas essas carcaças são absorvidas depressa pela floresta. Nós, humanos, raramente temos oportunidade de notar [...]. Mas agora a perturbação dos ecossistemas parece estar a libertar esses micróbios num mundo mais amplo e com uma frequência cada vez maior. Quando as árvores caem e os animais nativos são abatidos, os germes voam como poeira de um armazém demolido. Um micróbio parasita assim sacudido, despejado, privado do seu hospedeiro habitual, tem duas opções: encontrar um novo hospedeiro, um novo tipo de hospedeiro, ou extinguir-se. Eles não nos escolhem de propósito como alvos. O que acontece é que nos pomos aberta e abundantemente á sua disposição."
Crescimento enorme da população humana ao longo das últimas décadas, disrupção de habitats naturais, conectividade cada vez maior das sociedades humanas. Estas são variáveis decisivas das epidemias, talvez mais do que a própria evolução do vírus e as respectivas taxas de mutação (muito mais elevadas nos vírus de ARN, como SARS-CoV-2). Uma vez desencadeada a pandemia, o comportamento humano volta a ser decisivo, mas agora os actos do dia a dia, que, multiplicados, afectam de forma decisiva o progresso da doença.


Há semanas, o economista Paul Krugman publicou um texto intitulado "A América bebeu o futuro das crianças". Nele dizia que o á vontade com que os americanos voltaram aos hábitos gregários pré-confinamento, em parte devido á irresponsabilidade de políticos, tinha levado a uma subida drástica das infecções que provavelmente iria tornar impossível reabria as escolas no outono.
Como a escolaridade presencial é essencial para as crianças realmente aprenderem, a irresponsabilidade de muitos adultos poderá ter comprometido irreversivelmente o futuro de uma geração ou pelo menos das usas faixas menos desfavorecidas.
O paradoxo é que, numa altura em que finalmente começa a ser aceite a noção de que a soma de milhões de comportamentos individuais tem efeitos sobre o fenómeno difuso como o aquecimento global, muitas das mesmas pessoas que evitam plásticos de utilização única parecem não ter escrúpulos em sair à noite para beber em estreita proximidade com um grupo de amigos ás vezes numeroso. E o fatalismo com que alguns deles justificam esses comportamentos ("de qualquer forma, todos vamos apanhar o vírus") não é menos irracional do que a atitude anticientifica dos negacionistas das alterações climáticas que eles próprios criticam. 
Tal como uma epidemia de um vírus, uma epidemia da desinformação é contagiosa, e uma das suas estirpes mais perigosas é a ignorância deliberada.
Conforme lembra Quammen num artigo de Janeiro que esta edição do livro já inclui "a pandemia não foi um acontecimento novo ou um infortúnio que nos aconteceu". Continua a não ser.

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