O Jogo do Anjo - Carlos Ruiz Zafón
"Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar sobre as suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se mais forte. Neste lugar, os livros de quem já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar às mãos de um novo leitor, um novo espírito..."
Ler Zafón é sempre uma estrada difícil de percorrer. Zafón mete-se dentro da nossa pele.
Com "Marina", foi assim, o melhor que li de Zafón até agora. Com "A Sombra do Vento" o mesmo.
Zafón tem um estilo único. Histórias fantásticas a raiar o sub-natural dentro de uma Barcelona de outros tempos. Esta é a formula. O narrador é um homem, mas são as personagens femininas que me marcam.
No caso de "O Jogo do Anjo", são duas, Cristina e Isabella.
A história apesar de ser, ou estar inserida no "Cemitério dos Livros Esquecidos" e de ser o segundo volume está num tempo anterior ao primeiro livro.
Há personagens já conhecidas, como Dom Anacleto, Barceló, Sempere Filho e o próprio Cemitério dos livros esquecidos que não é uma personagem, mas onde todos param em alguma parte da sua vida. É o chamamento dos livros.
Este livro é uma história e demónios, de casas malditas e de pessoas amaldiçoadas. Mas é também uma história de amor profundo e de amigos para sempre.
Confesso que demorei mais tempo a ler o livro do que esperava. É um livro mais difícil de interpretar.
Certas personagens tiveram um caminho doloroso e estranho, e é difícil continuar caminho com esses acontecimentos. Saí daqui sem perceber a realidade da ilusão. Que fiquei no limbo sem saber se o "Patrão" é um Deus ou o próprio Lucifer.
Duvidei da realidade, e terminei o livro duvidando das acções das personagens.
Hesitei e hesito naquilo que David Martin sabe que fez ou sequer fez.
No meio disto tudo estão os livros, e os livros também, podem ser uma espécie de fé ou religião. Podem ser um caminho para a nossa redenção ou para a nossa loucura.
O sermão do padre rebelde e desobediente no enterro de Sempere pai é um verdadeiro hino a Deus e aos livros;
"- O senhor Sempere e eu fomos amigos durante quase quarenta anos, e em todo esse tempo só falámos de Deus e dos mistérios da vida numa ocasião. Quase ninguém sabe, mas o amigo Sempere não entrara numa igreja desde o funeral da sua esposa Diana, para junto da qual o acompanhamos hoje a fim de que jazam um ao lado do outro para sempre. Talvez por isso todos o consideravam um ateu, mas ele era um homem de fé. Acreditava nos amigos, na verdade das coisas e em algo a que não se atrevia a dar nome nem rosto porque dizia que para isso serviam os padres. O Senhor Sempere acreditava que fazíamos todos parte de algo e que, ao deixar este mundo, as nossas recordações e os anseios não se perdiam, passando a ser recordações e os anseios dos que vinham ocupar o nosso lugar. Não sabia se tínhamos criado Deus à nossa imagem e semelhança ou se ele nos criara a nós sem saber muito bem o que fazia. Acreditava que Deus, ou fosse o que fosse que aqui nos trouxera, vivia em cada uma das nossas acções, em cada uma das nossas palavras, e se manifestavam em tudo aquilo que nos fazia ser mais do que simples figuras de barro. O Senhor Sempere acreditava que Deus vivia em pouco, ou muito, nos livros, e por isso dedicou toda a sua vida a partilhá-los, a protegê-los e a assegurar-se de que as sua páginas, como as nossas recordações e os nosso anseios, nunca se perdessem, porque acreditava, e fez-me acreditar a mim também, que enquanto houvesse uma única pessoa no mundo capaz de os ler e os viver, haveria um pedaço de Deus ou de vida. Sei que o meu amigo não teria gostado que nos despedíssemos dele com orações e cânticos. Sei que lhe teria bastado saber que os amigos, os muitos que hoje aqui vieram despedir-se, nunca o esqueceriam. Não tenho dúvidas de que o Senhor, embora o velho Sempere não o esperasse, receberá a seu lado o nosso querido amigo e sei que viverá para sempre nos corações de todos os que hoje aqui estamos, de todos os que um dia descobriram a magia dos livros graças a ele e de todos os que, mesmo sem o conhecerem, um dia atravessaram as portas da sua pequena livraria onde, como gostava de dizer, a história acaba de começar."
Eu adorei, mas eu adoro Carlos Ruiz Zafón.
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