SKIFF - "A DOENÇA"
TEXTO INÉDITO
Ela é quente e sadia, e toma-me nos seus braços. Vigia-me com os seus passos sorrateiros, como se da sua atenção desmesurada dependesse a salvação do mundo. Tem um olhar compenetrado de menina atenta.
Eu, pouco colo lhe dou. Desleixo-me com os seus olhares, desfaço em nada as suas necessidades, finjo que não a vejo ou sinto.
Ela enrosca a sua cabeça no meu peito, descansa os olhos nos meus joelhos, encosta o seu nariz ao meu nariz.
Por vezes, também eu encosto os meus cotovelos ao parapeito da janela, curvo-me ao seu nível e encontro o seu olhar diante do meu.
Somos idênticas nessa cor de olhos de um profundo azul escuro que se materializa e sossega com coisa nenhuma.
A Skiff é uma menina bem comportada que promove o sossego. Tem o sangue apaziguador dos justos e ama-me.
Nem sempre é fácil compreender e aceitar que nos amam.
Skiff ama-me sem condições, eu amo-a com muitas exigências.
Não lhe dediquei grandes esperanças quando entrou nesta casa. Apliquei-lhe a derrota à partida, ainda o deslumbramento da meta era inalcançável.
Ela, por sua vez, deve ter achado que eu era um Deus. Deus não! Talvez um anjo. Porventura em queda. Ela não deu conta.
E como se quebra a ligação? Como se explica que não podemos estar, que a possibilidade de ausência é grande e que não dominamos a vida, o espaço, a matéria, o sopro...
Skiff miou toda a noite à porta do quarto. A inexistência doía-lhe.
Não foi abandono, nem sempre temos consciência. Skiff não poderia saber que o Sol não brilha sempre, que a pele amarela, que o coração pode bater mais devagarinho, que o nosso cheiro pode condensar, que a respiração pode mudar de camada. Que a inexistência pode ser uma palavra permanente, definitiva.
Acredito que a ofensa roeu-lhe o espírito. O pânico inicial foi substituído por uma indiferença da realidade. Se eu não estava, ela não estava.
Dormia enroscada no sofá. Tapava-se com a manta e escondia a cabeça. O mundo não existia. A janela deixou de ser um entretenimento. Também a janela deixou de existir.
Ele sossegou-a no seu colo. Nas noites frias, nas noites ventosas. Ele chamava-a para a nossa cama e ela recusava entrar no quarto.
Ele acabava no sofá com a Skiff ao colo. Ela miava, ele puxava-lhe ao de leve a orelha. Ela chorava e gemia numa clara atitude de não resignação, ele apertava-a nos seus braços.
Como podemos não amar quem nos ama?
Ter-se-ia desintegrado, dissolvido na estreiteza dos dias constantes e vazios.
Só o meu regresso a trouxe de volta.
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