SKIFF - " O BANHO"
TEXTO INÉDITO
Dizem que os gatos não tomam banho. Que tem aversão a água e que se lavam com a própria língua.
Eu não consigo imaginar que um gato se sinta limpo depois de passar com a sua própria língua pelas suas partes íntimas.
E água sempre houve e os animais andam todos à chuva. Eles ainda pertencem à natureza com a sua definição muito própria das verdadeiras necessidades do espírito e da essência. Nós, humanos já perdemos o cheiro a terra, a mato e estamos longe do âmago da existência.
Nunca fui apreciadora de gatos. Nunca descortinei os seus comportamentos. Nunca dei conta se eles abrigam-se nalgum canto protegido sempre que chove.
Na realidade nunca vi tantos animais, domésticos ou livres como vejo por estes dias.
Lisboa esconde os seus animais e eu não fui feita para os observar. Aí está, eles estão demasiado próximos da natureza, eu, ao contrário deles, irremediavelmente longe desse domínio.
Depois existe a limpeza. A necessidade de sabão, da roupa lavada, do pó chantageado a um canto.
Mas eu já não estou em Lisboa. Há um par de anos que o barulho de fundo são o balido das ovelhas, o ladrar dos cães e os gatos nos parapeitos da janela.
Skiff aceitou o primeiro banho com a resignação dos justos.
A água escorria preta de tanta terra. Admito que senti pena dela quando a tirei do banho e a limpei com a toalha. Foi uma vã tentativa de a poupar ao frenético lamber de pelo que a sua língua fazia sem cessar.
Tremia tanto que liguei o secador para enxugar-lhe o pelo.
Ela, estranhamente, não teve medo. O seu olhar era de audácia fascinada.
Acho que ela não queria acreditar no que ninguém acreditava.
Sim! Os gatos tomam banho e gostam.
A sua disposição para esta empreitada varia conforme o humor. Descubro-lhe um humor refinado. Uma azia com o Universo permanente.
São estados de alma próprios de quem se sente solitário mesmo entre multidões.
O banho é-lhe útil, fundamental e ela aperfeiçoa-o.
Com tiques de princesa, coloca as patas dianteiras nas torneiras da banheira e deixa-se estar. A água como repuxo que escorre pelo seu lombo, quente, macia, vital.
Aquela tentativa frenética de se limpar com a própria língua como fez na primeira vez vai dando lugar a uma languidez pelo secador. Os olhos fecham-se, o calor artificial provoca-lhe estados de embriaguez.
Mia com frequência e roça-se nas minhas pernas. Chama-me com movimentos lânguidos do seu corpo até à porta da casa de banho.
-Então Skiff! Outro banho?
O seu miado é profundo, meloso, eterno, aperfeiçoado.
Ela é impenetrável e intimamente diabólica.
Ela é a minha Skiff do banho turco.
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