30 de setembro de 2020

 

Excerto do O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa





"Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida.
Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.

Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.

Outros, de melhor estripe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. 
Impossível esforço, em quem não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.

Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.

Mas outros. Raça do fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelos menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir."


Durante muitos anos tentei ler O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa sem o conseguir. Peguei e larguei o livro anos e anos a fio sem compreender a verdadeira capacidade do mesmo. 
Das críticas que lemos, dos anos que passaram, do escritor que foi e é, não temos dúvidas. Não há dúvidas que Fernando Pessoa é sobejamente grande.
Hoje, acredito que o não compreender as suas palavras ao longo de anos e anos, não era defeito do próprio que as escreveu, mas defeito meu.
A minha incapacidade de ver o mundo como ele o via.
O Livro do Desassossego é o reflexo da desordem da alma e se nós próprios não tivermos a alma em desordem, não seremos capaz de nos desassossegar. 
É preciso acreditar que nada que nos rodeia e nos atinge faz realmente sentido. É preciso deixar de ter ilusões e vermo-nos a nós próprios como aquilo que realmente somos, a raça do fim, estagnados na nosso própria mediocridade.
Viver doí... não viver doí mais ainda!



Sem comentários:

Enviar um comentário