4 de setembro de 2020


Nós criámos a epidemia do coronavírus*





Há bem pouco tempo falei-vos de um livro cuja crítica apareceu na revista do Expresso que eu queria muito ler.
É um livro que foge dentro dos meus padrões de leitura, mas chamou-me muito à atenção e já comecei a ler. Chama-se CONTÁGIO de David Quammen.

Ainda vou no início mas o livro aborda vários vírus que assolaram o mundo ao longo dos anos, mais propriamente nas últimas décadas. Neste momento estou a ler um capítulo que fala sobre o Vírus Ébola, e estamos a falar de datas que se iniciam em 1976 até 2014.

Este livro foi dos poucos livros que eu referi no Blogue sem o ler, e queria muito partilhar convosco o primeiro capítulo do mesmo. Depois de tudo o que estamos a passar e depois de tudo o que lemos e ouvimos na televisão e noutros meios de comunicação social, acho que estamos todos perdidos dentro de um labirinto de incertezas.
Os poderes políticos mundiais servem-se a seu belo prazer e puxam as cordas conforme lhes dá jeito e hoje o que é grave e perigoso, amanhã por milagre deixa de ser, e depois volta a ser.
Há bem poucos dias, dei por mim completamente perdida na realidade e até comentei com alguém próximo que não percebia o que se estava a passar. Afinal o que é certo e o que é errado? Porque fomos encurralados em casa em Março, limitados nos nossos movimentos por causa de um vírus e depois chegamos a Agosto e tudo é permitido quando continuamos a conviver com esse vírus? Acho que são este tipo de perguntas que cada um de nós faz todos os dias, porque estamos tremendamente mal informados, tremendamente empacotados com informação avulso que os jornais e a TV passa como entende, ou como o poder político pretende que passe. É a educação das massas dentro dos limites impostos por quem está no poder. Chama-se Democracia. Hoje em dia, tudo é manipulável, e as noticias, as realidades, a própria verdade mais ainda.

Percebemos o vírus? Não. Temos consciência do que nos espera? Não. Porque isto aconteceu e agora? Ninguém quer saber. Apenas queremos saber quando podemos andar na rua e entrar num café sem usar mascara na cara porque ”temos falta de ar”. E quando tivermos realmente falta de ar, o que faremos? E quando os nossos hospitais não tiverem uma maca ou um ventilador para nós, ou para os nossos? E quando os nossos morrerem sozinhos, vamos continuar a dizer que tudo isto são questões políticas que nos privam a liberdade? 

David Quammen é um jornalista que acompanha há muitos anos as pesquisas feitas por virologistas em todo o mundo. O que ele pretende não é ensinar-nos a viver, mas a mostrar-nos de uma forma leve, o que se faz no mundo da ciência quando um vírus aparece. Os capítulos que li são bastantes interessantes por isso mesmo, aprendemos de uma forma lúdica algo bastante sério para todos nós.

O primeiro capítulo é o único dedicado ao novo Coronavírus e em comparação com os outros um capítulo bastante pequeno. Foi retirado de um artigo publicado em 28 de Janeiro de 2020 no New York Times numa altura em que muito pouco se sabia sobre ele.
O texto para mim e perante tudo o que ouvimos e lemos nos últimos tempos é surpreendente e realmente acho que é importante partilhar, e partilhar e partilhar…. Por isso e espero que não achem um exagero reproduzir aqui este capítulo:
Lembro que o artigo é datado de 28 de Janeiro e que dessa altura até aos nossos dias muita coisa mudou, incluindo a certezas de que o nCoV-2019 é uma pandemia a nível mundial. Aos dias de hoje, essa é a primeira meta não alcançada, tudo o resto será o rufar do tambor!




Nós criámos a epidemia do Coronavírus*

Ela pode ter começado com um morcego numa caverna, mas foi a actividade humana que a desencadeou.

O mais recente e assustador vírus que captou a atenção horrorizada do mundo, que causou o isolamento de 56 milhões de pessoas na China, que interrompeu planos de viagem e provocou uma corrida às máscaras de protecção é conhecido provisoriamente como “nCoV-2019”. É um nome desgracioso para uma ameaça sinistra.
O nome escolhido pela equipa de cientistas chineses que isolaram e identificaram o vírus, depois de ele ter infectado seres humanos no final de 2019 num mercado de marisco e animais vivos de Wuham, na província de Hubei, é uma abreviatura de “novo coronavírus de 2019”. Isso significa que ele pertence à família dos coronavírus, um grupo conhecido pela sua má reputação. A epidemia de SARS de 2002-2003, que infectou 8098 pessoas em todo o mundo matando 774, foi causada por um coronavírus, assim como o surto MERS que começou na Península Arábica em 2012 e ainda está activo (2494 pessoas infectadas e 858 mortes até Novembro de 2019).
Apesar do nome do novo vírus, e como bem sabem as pessoas que o baptizaram, o nCoV-2019 não é tão novo quanto se possa imaginar. Foi encontrado há vários anos algo muito parecido com ele numa caverna de Yunnan, uma província distante cerca de 1,6 mil quilómetros de Wuhan, por uma equipa de investigadores perspicazes, que notaram a sua existência com preocupação. A disseminação rápida do nCoV-2019 – mais de 4500 casos confirmados, com pelo menos 106 mortes, até à manhã do dia 14 de Janeiro, e os números terão aumentado quando isto for lido – é espantosa, mas não imprevisível. Que o vírus tenha vindo de um animal – provavelmente um morcego, e possivelmente depois de ter passado por outro ser -, pode parecer estranho, mas não surpreende de forma nenhuma os cientistas que estudam estas coisas.
Uma dessas cientistas é Zheng-Li Shi, do Instituto de Virologia de Wuhan, principal autora do artigo (disponível até ao momento apenas numa versão preliminar, não revista pelos pares) que deu ao nCoV-2019 a sua identidade e nome. Foram Shi e os seus colaboradores que, em 2005, mostraram que o agente patogénico do SARS era um vírus de morcego que se transmitia aos seres humanos. Ela e os colegas têm rastreado o coronavírus em morcegos desde então, alertando para o facto de alguns deles serem particularmente adequados a causar pandemias humanas.
Num artigo de 2017, depois de quase cinco anos a recolher amostras fecais de morcegos na caverna de Yunnan, informaram que haviam encontrado coronavírus em vários indivíduos de quatro espécies diferentes de morcegos, entre eles um chamado morcego-de-ferradura-intermédio, devido à aba semioval de pele que se projecta como um pires em torno das narinas. Shi e os colegas anunciaram agora que o genoma desse vírus é 96 por cento idêntico ao vírus de Wuhan encontrado recentemente em seres humanos. E os dois constituem um par distinto de todos os outros coronavírus conhecidos, inclusive aquele que causa a SARS. Nesse sentido, o nCoV-2019 é novo, e possivelmente ainda mais perigoso para os seres humanos do que os outros coronavírus.
Digo “possivelmente” porque, até agora, não só não sabemos quão perigoso ele é, como também não temos como saber. Os surtos de doenças virais novas são como as esferas de aço de um flíper: podemos atingi-las com as palhetas, abanar a máquina e bater nas bolinhas para ouvir o tilintar do flíper, mas o sítio onde elas acabam por cair depende de muitas variáveis, bem como de qualquer coisas que façamos. Isso ocorre principalmente com os coronavírus: eles sofrem mutações frequentes à medida que se replicam, e podem evoluir tão rapidamente quanto um espírito maligno saído de um pesadelo.
Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma organização privada de investigação com sede em Nova Iorque que estuda as ligações entre saúde humana e vida selvagem, é um dos parceiros de longa data de Shi. “Há quinze anos que alertamos para estes vírus.”, disse-me ele na sexta-feira, 17 de Janeiro, com uma frustração tranquila. “Desde o SARS”. Foi co-autor do estudo sobre morcegos e SARS de 2005, e também do artigo de 2017 sobre os múltiplos coronavírus do tipo SARS da caverna de Yunnan.
Daszak contou-me que, durante o segundo estudo, a equipa de campo recolheu amostras de sangue de dois mil habitantes de Yunnan; cerca de quatrocentos viviam perto da caverna. Aproximadamente três por cento deles tinham anticorpos para coronavírus relacionados com a SARS. “Não sabemos se ficaram doentes. Não sabemos se foram expostos quando criança ou adultos”, disse Daszak. “Mas o que isso diz é que esses vírus estão a transmitir-se repetidamente de morcegos para seres humanos.” Por outras palavras, o surto em Wuhan não é novidade. Faz parte de uma sequência de contingências correlacionadas que remontam ao passado e avançam para o futuro, enquanto as actuais circunstâncias persistirem. Assim, quando o leitor tiver acabado de se preocupar com este surto, preocupe-se com o próximo. Ou então fala algo a respeito das actuais circunstâncias.
Entre as circunstâncias actuais está o perigoso comércio de animais selvagens para alimentação, com cadeias de abastecimento espalhadas pela Ásia, África e, em menor grau, Estados Unidos e outros locais. Esse comércio foi agora proibido na China, temporariamente, mas também foi proibido durante o SARS, e depois teve permissão para ser retomado, e morcegos, civetas, porcos-espinhos, tartarugas, ratos-do-bambu, muitos tipos de aves e outros animais voltaram a ser empilhados, juntos, em mercados como o de Wuhan.
As circunstâncias actuais também incluem 7,6 mil milhões de seres humanos famintos: alguns pobres e desesperados por proteínas; alguns abastados, perdulários e com recursos para viajar de avião para onde quiserem. Estes factores não têm precedentes no planeta Terra: sabemos por registo fóssil, pela ausência de evidências, que nenhum animal de grande porte alguma vez esteve perto de ser tão abundante quanto os seres humanos são agora, para não falar da sua eficácia em apropriar-se dos recursos naturais. E uma consequência dessa abundância, desse poder e das consequentes perturbações ecológicas é o aumento das trocas virais – primeiro de animal para ser humano, depois de humano para humano, às vezes à escala pandémica.
Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens que abrigam imensas espécies de animais e plantas – e dentro desse seres, imensos vírus desconhecidos. Derrubamos as árvores; matamos os animais ou engaiolamo-los e enviamo-los para os mercados.
Destruímos os ecossistemas e libertamos os vírus dos seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas vezes, somos nós.
A lista dos vírus que surgem em seres humanos soa como um rufar fúnebre de tambor: vírus Machupo, Bolívia, 1961; vírus Marburgo, Alemanha, 1967; vírus Ébola, Zaire e Sudão, 1976; VIH, identificado em Nova Iorque e na Califórnia, 1981; uma forma de hantavírus (agora conhecida como Sin Nombre), sudoeste dos Estados Unidos, 1993; vírus Hendra, Austrália, 1994; gripe aviária, Hong Kong, 1997; vírus Nipah, Malásia, 1998; vírus do Nilo Ocidental, Nova Iorque, 1999; SARS, China, 2002-2003; MERS, Arábia Saudita, 2012; Ébola novamente, África Ocidental, 2014. E isto é apenas uma amostra. Agora temos o nCoV-2019, o mais recente rufo do tambor.
As circunstâncias actuais também incluem burocratas que mentem e ocultam más notícias, além de autoridades eleitas que se gabam de derrubar florestas para criar empregos na indústria madeireira e na agricultura ou de reduzir orçamentos para a saúde pública e a investigação. A distância de Euhan ou da Amazónia até paris, Toronto ou Washington é curta para alguns vírus, medida em horas, tendo em conta que se dão muito bem a apanhar boleia em aviões de passageiros. E se acha que financiar a preparação para a pandemia é caro, espere até ver o custo final do nCoV-2019.
Felizmente, as circunstâncias actuais também incluem cientistas brilhantes e dedicados e pessoal médico de resposta a surtos, como tantos no Instituto de Virologia de Wuhan, na EcoHealth Alliance, no Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, no CDC chinês e em inúmeras outras instituições. São pessoas que entram em cavernas de morcegos, pântanos e laboratórios de contenção de alta segurança, muitas vezes arriscando a vida, para extrair fezes, sangue e outros indícios preciosos de morcegos, a fim de estudar sequências genómicas e responder às principais perguntas.
Enquanto aumenta o número de casos de nCoV-2019 e de mortos, a taxa de mortalidade permanece bastante estável até agora: em torno ou abaixo de três por cento. Até 21 de Janeiro, menos de três em cada cem casos confirmados haviam morrido. Isto é uma boa sorte relativa – pior do que na maioria das estirpes de gripe, melhor do que a SARS. Mas a boa sorte pode não durar. Ninguém sabe aonde a esfera do flíper irá parar. Daqui a quatro dias, o número de casos poder estar na casa das dezenas de milhares. Daqui a seis meses, a pneumonia de Wuhan pode começar a desaparecer da nossa memória. Ou não.
Estamos diante de dois desafios mortais, a curto e longo prazo.
Curto prazo: devemos fazer tudo o que pudermos, com inteligência, calma e total comprometimento de recursos, para conter e extinguir este surto de nCoV-2019 antes que ele se torne, como é possível uma pandemia global devastadora. A longo prazo: devemos lembrar, quando a poeira assentar, que o nCoV-2019 não foi um acontecimento novo ou um infortúnio que nos aconteceu. Fez – e faz – parte de um padrão de escolhas que nós, os seres humanos, estamos a fazer.

* Artigo publicado em 28 de Janeiro de 2020 no New York Times, logo no início do que viria a ser a pandemia de COVID-19, antes de o vírus ter recebido o seu nome definitivo. (N. da T.)



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