29 de setembro de 2020

 O Labirinto dos Espíritos - Carlos Ruiz Zafón




Comecei por considerar A Sombra do Vento um livro fantástico. Já o aqui tinha referido. 
Descobri o autor noutras andanças, longe desta saga e depois descobri que fantástico não era  A Sombra do Vento mas o escritor Carlos Ruiz Zafón.
Marina, foi o nome do livro que me desvaneceu a alma e rendeu-me definitivamente a este escritor espanhol que desafortunadamente morreu já este ano, vitima de doença.

Para este O Labirinto dos Espíritos, não tenho propriamente palavras. As personagens são o que de mais rico este escritor cria, e apesar de em todos os livros desta saga desfilarem personagens inesquecíveis, neste último livro temos o desdobrar daquelas que para mim são as melhores personagens criadas pelo escritor. Fermin Torres e Alicia Griss.

Fermin Torres, o bom do Fermin que atravessa a saga por inteiro. Com uma história de vida surpreendente e como personagem tão rica, tão presente, tão figura que dificilmente a esquecerei algum dia. Os melhores textos e os melhores diálogos incluem o Fermin Torres. Palavras sábias, palavras eloquentes, graças e troças. O senhor dos sugus de limão, o que cumpre as suas promessas.
"Na hora de mentir, há que ter em conta não a plausibilidade do embuste mas a cobiça, a vaidade e a estupidez do destinatário. Nunca mentimos às pessoas. Elas mentem a si mesmas. Um bom mentiroso dá aos tolos o que eles querem ouvir. É esse o segredo."
"As pessoas sejam por medo, por interesse ou tolice, acostumam-se de tal maneira a mentir e a repetir as mentiras dos outros que acabam por mentir até quando julgam estar a dizer a verdade. É o mal do nosso tempo. A pessoa honesta e sincera é uma espécie em vias de extinção."
" Aprender a diferençar entre a razão por que fazemos as coisas e a razão por que dizemos fazê-lo é o primeiro passo para nos conhecermos a nós mesmos."

A saga dos quatro livros que compõem esta saga do cemitério dos livros esquecidos, tem sempre uma personagem feminina forte. No primeiro livro temos Núria Monforte, no segundo livro temos a Isabella que se tornaria Isabella Sempere, no terceiro livro voltamos há recordação de Isabella Sempere, e no quarto livro temos Alicia Griss. Uma alma nascida das sombras.
"A verdade é um acordo que permite aos inocentes não precisarem de conviver com a realidade."
Não vos quero tirar o prazer de ler o livro mas Alicia suplanta a capacidade de se reinventar e sobreviver. É sim, uma criatura das trevas, que a vida transformou em trevas, mas com uma capacidade de despreendimento para o bem dos outros e não seu, que suscita paixões e uma gula enorme em não parar de ler.
Alicia Griss é o motor deste livro, e a sua combinação com Fermin que nas mais de 800 páginas é curta é o melhor que o livro tem.
"- A família Sempere esta segura? O Daniel, a Bea, o avô, o Julian?
- Agora sim.
- E a que infernos teve de descer para assegurar-se de que inocentes podem viver em paz, ou pelo menos numa plácida ignorância?
- A nenhum que não me ficasse em caminho, Fermín."
Uma mulher fria, com o lado mais negro, com um passado de dor, que se sacrifica para o bem. Uma mulher que vive na amargura daquilo que não pode ter.
"Minha querida Alicia, criatura das trevas, não te martirizes a sonhar com ser a princesinha da casa que espera o regresso do campeão e cuida dos adoráveis rebentos dando saltinhos de alegria. Tu e eu somos o que somos, e quanto menos nos olharmos ao espelho melhor."
Apesar da sua capacidade de sobrevivência e da sua atitude fria e calculista não deixa de ser a mais frágil de todas as criaturas criadas pelo escritor, e é esta ambiguidade que torna Alicia a mais rica das personagens femininas.
"Alicia procurava-o com o olhar, os olhos velados de lágrimas e um frágil sorriso nos lábios. Fermín suplicou ao diabo coxo a que sempre encomendava os seus impossíveis que não a levasse ainda."
No final o seu caminho é um pouco abandonado e o peso que têm em toda a história é renegado para segundo plano para o bem dos Sempere.


Li algures que todos os homens Sempere pareciam e foram criados como uns "pãezinhos sem sal".
Pessoalmente concordo com a afirmação porque ao longo da narrativa, são as personagens menos interessantes. 
Apesar de a trama rodar toda há volta da livraria Sempere, e esta família ser o ponto principal para todas as outras personagens, todas elas crescem e grande parte delas tornam-se inesquecíveis.
Os Sempere são geração após geração demasiado pálidos. São no entanto o motor de busca.

Considero que o grande propósito do ler um livro, é a capacidade que ele têm de nos transformar também a nós e de nos colocar dentro desse livro. Se não for assim, para mim não é livro.
Se eu não souber rir, nem sofrer com as personagens, se elas não forem suficiente vivas para saltarem das páginas e se sentarem ao meu lado, o livro não passará de um mero monte de folhas datilografadas.
Também acredito que em cada livro existe um espaço próprio e um filho próprio, porque aquilo que me pode agradar e absorver não tem necessariamente de estimular o outro. 
Todas as histórias são precisas e todos os livros tem um destino e alguém a quem fazer sonhar, a fazer sentir. Não acham? 


Não quero deixar de transcrever o prefácio de O Labirintos dos Espíritos, que se encontra na página 779 deste livro.
"Uma história não têm principio nem fim, só portas de entrada. Uma história é um labirinto infinito de palavras, imagens e espíritos esconjurados para nos revelar a verdade invisível a respeito de nós mesmos. Uma história é, em última análise, uma conversa entre quem a narra e quem a escuta, e um narrador só pode contar até onde lhe chega o ofício e um leitor só pode ler até onde leva escrito na alma.
É esta regra mestra que sustenta todo o artificio de papel e tinta, porque quando as luzes se apagam, a música se cala e a plateia se esvazia, a única coisa que importa é a miragem que ficou gravada no teatro da imaginação que todos os leitores têm na mente. Isso e a esperança que todo o fazedor de contos acalenta: que o leitor tenha aberto o coração a alguma das suas criaturas de papel e lhe tenha estregado qualquer coisa de si para torná-la imortal, ainda que seja só por uns minutos.
E dito isto com mais solenidade do que a ocasião provavelmente merece, mais vale aterrar no fim da página e pedir ao amigo leitor que nos acompanhe até ao fim desta história e nos ajude a encontrar o mais dificil para um pobre narrador apanhado no seu próprio labirinto: a porta de saída."

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