14 de dezembro de 2020

 


ADIAMENTO

                                    (14.4.1928)



Destacado e Nítido - Fernando Pessoa


Depois de amanhã, só depois de amanhã…

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não…

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico…

Esta espécie de alma…

Só depois de amanhã…

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;

Mas só conquistarei o mundo depois e amanhã…

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…

 

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã…

Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…

 

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital…

Mas por um edital de amanhã…

Hoje quero dormir, redigirei amanhã…

Por hoje qual é o espetáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…

Antes, não…

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

Só depois de amanhã…

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…

Sim, talvez só depois de amanhã…

 

O porvir…

Sim, o porvir…


Sim, amanhã ou depois de amanhã será o dia de todas as minhas conquistas.
Antes, não... hoje, não. Hoje não daria certo, não é o dia indicado. Hoje não estou preparada.
É preciso parar e traçar um plano e hoje acordei muito cansada.
Deixemos os sonhos para amanhã, ou melhor, para depois de amanhã. Hoje o dia não é bom.
Hoje não me sinto capaz. Hoje a papelada pode acumular-se na secretária. Amanhã ou depois e amanhã tudo se resolverá.
Eu levanto Castelos, movo montanhas, cumpro objetivos, eu sou capaz, claro que sou capaz!
Mas não hoje. Amanhã ou depois de amanhã.
Amanhã serei outra. Amanhã serei a Princesa e o meu futuro estará manchado de glória. Mas não hoje, sempre amanhã.




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