4 de dezembro de 2020

 


Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado 

(28-08-1927)


Destacado e Nítido - Antologia Inédita - Fernando Pessoa


Não venhas sentar-te à minha frente, nem ao meu lado;
    Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
    E quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
    Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
    A não ser ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
    Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
    Escrevi numa página em branco, <fim>.

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas, 
    Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
    Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales.
    Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales - 
    Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
    As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
    Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
    Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
    Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
    Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
    Que não sabia nadar.


Que cansada que estou. Não estamos?!
Cansada de tudo. Por isso se vieres, não te sentes ao meu lado nem fales.
Tenho a cabeça cheia, de vozes, de gritos de desordem... de opiniões. De "importantes" que sabem tudo e tem apreciação para tudo e mais alguma coisa.
Podem desligar a televisão, por favor? Cancelar as notícias... aferrolhar as redes sociais... matar a palavra que persiste, continua e incessante.
E esta música de Natal constante nas ruas o dia todo, como se a festa tivesse mesmo de continuar!

Indiferença! Preciso daquela indiferença ao habitualismo. De saber que estou cá sem cá estar. Sem estar ligado, conectado, relacionado.
Preciso que o Sol nasça porque assim é e por mais nada.
Não me peças nada, nem digas que sou má, não me atires à cara o meu alheamento.
Respeita o meu espaço... respeita o meu silêncio... hoje só quero não estar aqui.




Na escrita de Fernando Pessoa é comum e repetitivo em várias frases e vários versos que eu já li, este tipo de texto...
"Nunca soube querer, nunca soube sentir, nunca soube pensar"
Encontra-se com muita frequência na sua escrita, este tipo de pensamento e sentimento. Parece que Pessoa se sentia verdadeiramente incapaz perante estes sentimentos... se os tinha ou não não sei, mas escrevê-los, isso ele sabia fazê-los e muito bem!





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