Dactilografia
(19.12.1933)
Destacado e Nítido - Fernando Pessoa
Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea de vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.
Outrora.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...
Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.
O despertador toca, e o dia começa, hoje, ontem e amanhã.
Hoje, ontem e amanhã, estou, estive e estarei aqui, no mesmo caminho.
Na minha consciência noutro sitio qualquer. O sonho... haverá sempre o sonho.
Quando temos seis anos e somos pequenos olhamos muito para o espelho. Mas não nos vemos como somos. Passamos lá horas, rimos, dançamos, falamos. Há nossa volta existem Castelos e Princesas e temos asas que se formam nas nossas costas e nos fazem voar.
Quantos de nós parecemos aquilo que não somos. Os que sonham?
A simplicidade de pensamento está fora do nosso percurso, as ilusões, os desejos e as fantasias... os sonhos! Bem! Os sonhos estarão sempre lá.
Mas o tempo. Esse! Encarrega-se de dizer que os sonhos são só sonhos, e a nossa segunda vida (a falsa), só nos cega, apenas cega para a desilusão diária.
Com o tempo deixamos de parar em frente ao espelho... mas não deixamos de sonhar, eu acredito que não!
Sem comentários:
Enviar um comentário