Aniversário (15-10-1929)
Destacado e Nítido - Antologia Inédita - Fernando Pessoa
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas-doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não pensas! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Somam-se os dias, apenas e só! O dia de anos não passa de um dia que se soma ao outro. A infância está lá distante e os outros estão mortos.
Tudo mudou! As perspetivas do que era e do que sou não passam de manchas nas paredes da casa que não apanha Sol.
Somam-se apenas os dias, mais nada!
Esqueci-me de empacotar, todos os cheiros e sabores desses dias em que a inocência não trazia mais do que a alegria no canto dos lábios. Esqueci-me de recordar as grandes esperanças que povoavam esses dias. Esqueci-me de abandonar num canto qualquer a melancolia, e transformei-a na ordem natural das coisas.
Tenho uma grande ternura por este poema. Recorda-me a minha infância. Faz-me lembrar os meus aniversários felizes. E sim, nos meus aniversários felizes ninguém estava morto.
Acredito que a nossa inocência perante a vida termina no dia que nos morre a primeira pessoa que preenche o nosso mundo, o nosso contexto.
Mas isso é quando somos novos, crianças e até a morte é algo "novo" e assustador.
Com o passar do tempo, dos anos, dos desgostos e desilusões, com os dias que correm a morte é mais um número, não passa de uma fatalidade.
Hoje tenho saudades da inocência do dia dos meus anos em que a morte não existia. Pelo menos eu não a via.
Acredito que o que mais me faz falta é ser criança e fazer anos!
Sem comentários:
Enviar um comentário