TRAGO DENTRO DO MEU CORAÇÃO
22.05.1916
Destacado e Nítido - Fernando Pessoa
[...]
Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas, e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
Entre tombos e perigos e ausência de manhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso
Como o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida...
[...]
Assim, fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo...
[...]
"Trago dentro do meu coração", é talvez dos meus poemas preferidos de Fernando Pessoa. O poema é extenso, mas existem dois excertos que me sobrepõe e afundam.
É essa transcrição que faço agora, e por mais que os leia e relei-a não sei o que dizer.
A mais das vezes a escrita de Fernando Pessoa inspira-me a dizer ou a escrever alguma coisa. Leva-me sem dúvida a pensar, a comparar frases e textos, poemas, com vidas vividas, e aquilo que ele diz (escreve) é-me tão real e tão próximo que recorro com demasiada frequência aos seus livros.
Por vezes nem eu sei se a vida é pouco ou de mais para mim, não sei se o que sinto é muito ou pouco, nem sei se o cansaço é fraqueza de espirito, ou falta de vontade de caminhar.
Ás vezes acho que faço muito, outras acho que brinquei com a vida. Tenho-me por alguém com alguma inteligência, mas não raras as vezes, sinto-me tremendamente ignorante.
Quando olho para trás, sei que já fui extremamente arrogante, que me faltou humildade, e que nem sempre a amabilidade fez parte do meu currículo.
A vida é sem dúvida um misto de incertezas, e as horas mais negras habitam o nosso coração sem préstimo.
Fazemos doer... não somos feitos para sofrer, mas não sabemos ser felizes. Nem sabemos agradecer.
Será a descrença? Será que esperamos demais da vida? No entanto esperamos tão pouco de nós!
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